No fim de 2017, publiquei, com o teólogo Faustino Teixeira, um pequeno livro sobre os poemas do místico alemão Angelus Silesius (1624-1677). A editora Martelo deu espaço para uma edição bilíngue. Reproduzo uma parte do caderno de notas de minha primeira estadia em Colônia.
Caminho no convés da catedral, a bombordo, e a 50 nós, e não dou pela tripulação. Um navio fantasma, invisível, errante, voador, saudoso de terra e sem porto.
*
Silesius e Bashô me acompanham nesse território de pedra, em que tudo se concentra e dispersa. Não ouço o canto estridente dos sapos. Apenas o órgão da catedral. Já me limito a poucos saltos nesse inverno.
*
O segredo de todos os séculos mora nos harmônicos de um órgão-planetário. Deus criou o mundo sob as notas irrevocáveis desse instrumento feroz.
*
Assaltado por inúmeros pressentimentos, Silesius me parece um cordão umbilical, um fio de telefone que me ata ao Rio de Janeiro.
*
Passo meus dias no Instituto Petrarca. Frio. Neve. Solidão. Aventura solar, ao longo das páginas do Unendliche Sphären. Uma visada fascinante da tradição neoplatônica. Sempre no plural.
*
A inscrição matutina, eis o que me salva de tanta solidão: uma epifania (não sei de outra palavra) fractal. Leio artigos modelares dedicados a Mandelbrot. Talvez comece em breve uma pequena tradução de Silesius. Sem traço de união entre a experiência mística e o caos.
*
O caos e a estrela. Voltar ao martelo de Nietzsche e aos fragmentos da filosofia contemporânea.
*
Para combater a melancolia, um pouco de matemática, outro tanto de filosofia. Depois do professor Müller-Bochat, hoje, Silesius é meu amigo mais próximo.
*
As cantatas de Bach. A gênese da música: esplêndida telemaquia.
*
Depois da primeira aula que dei sobre Dante e o neoplatonismo, descubro o ouro do Reno: as jovens estudantes que se ocupam do Renascimento. Estudam a si mesmas, sem saber que o fazem, encantadoras, renascidas. O ideal grego do feminino. Mas não seriam todas bárbaras?
*
Não pode haver salvação longe do feminino. Desceram todas, as jovens de Colônia, como Goethe, da Alemanha para a Itália, como girassóis, atraídas pela fome de luz.
*
Quero o feminino e a matemática, contrário ao adágio studia la matematica e lascia le donne.
*
O Uno: modo impressionante de irradiar-se qual sol que antecipa os próprios raios. Num cenário de inverno rigoroso, aqueço-me no fogo metafísico do imutável expansivo.
*
Se fosse obrigado a escolher, diria apenas: lascia la matematica e ama le donne.
*
Translúcida beleza, o Uno, em incessante irradiação, não se faz conhecer a si mesmo. Será decerto uma das fontes freudianas. Se fosse autoconsciente, o Uno perderia o nome e a condição, multiplicando-se por dois.
*
O Uno passaria a ser o Duo. E depois quem sabe o Caos. Haveria estrela?
*
Silesius: neoplatônico apaixonado pelo regresso. Eu me pergunto sempre: ad uterum ou ad unum? A reposta parece óbvia, mas não é.
*
A distância metafísica dos deuses de Hölderlin comparando-se com o deus de Silesius: haverá possível metro dialético, em construção, capaz de unir e separar a distância que os determine?
*
A língua de Silesius dialoga em plenitude com a mística alemã. Uma convergência de fontes. A palavra que mais cintila, entretanto, é justamente bloβ.
*
Estudos de semântica na biblioteca. História da língua alemã onde persiste a linguagem da mística, cuja memória etimológica perdeu-se no tráfego das palavras modernas. Portanto, quem mais atual do que mestre Eckhart e Jacob Böhme?
*
Breve postal para a doutora Nise da Silveira que escreveu sobre a catedral de Colônia.
*
Tentativa de filosofia cínica (ao pé da letra): conheço quase todos os cães de Bayenthal.
*
Esta cidade confunde-se com o mundo, porque difusa e prolongada à sombra de um imenso cosmos-catedral.
*
Uma noite de plenilúnio. Silesius e o romantismo alemão. A solução de continuidade se encontrará porventura no tradutor?
*
A queda do muro de Berlim ainda espanta. Qual a sua projeção futura?
*
Um só país. Vozes dissidentes: Enzensberger e Günter Grass.
*
A mística como dimensão política. Dante, Paraíso, canto 31.
*
Sacro Império Romano Germânico. Seus fantasmas ainda me consomem. Com Dante e Beatriz.
*
Mística nudez. Mística intensidade. Esboço para um capítulo de erótica mística.
*
Pensar as filosofias neoplatônicas em termos de uma breve história do espaço.
*
Encontro doloroso, na Basileia, com o Cristo morto que feriu Dostoievski. Preciso voltar ao Brasil para um longo adeus.
*
Nenhuma esperança. Não sei decerto se convém tocar um tango argentino, ou meditar longamente sobre o conceito de eternidade em Boécio.
*
E deus não me salvou de deus. E a solidão, de tanta solidão. E o dia, da fúria desses dias. Pressinto agora e tão somente: um modo vago e transparente.