Tenho especial ligação com esee livro, desde o fim da minha adolescência, quando me entregava, com rigor e apetite autodidata, aos encantos do latim. E o fato não se limitava a uma serie de saltos mortais, ou carpados, exigidos pela gramática, árdua e fascinante, bem entendido. Buscava os rastros de um mundo novo, fruto do intocável frescor de que goza a antiga juventude dos deuses. Língua e literatura mostravam-se para mim, desde então, como conjuntos indissolúveis, que não se podiam afastar sob um método esquizolinguístico. Sentia-me bem com o livro Urbis et orbis lingua, de Vittorio Tantucci, que aprofundava os volumes de nossa conhecida Ars latina, em paralelo com a leitura dos clássicos.
Não perca seu latim reflete, juntamente com outras obras de Rónai, a fineza de um autor que jamais patrocinou o bellum gallicum, entre gauleses e romanos, ou, em outras palavras, a guerra setorial entre língua e literatura, que assola vários programas didáticos. Rónai preparou um livro que se distingue do deserto, outrora dominante, segundo o qual a uma só frase de Cícero correspondem, “por lei”, nove páginas para a terceira declinação. Paulo Rónai é um intelectual que surge das ruínas do império Austro-Húngaro, dotado de fina sensibilidade estética, com as línguas múltiplas, absolvidas, como em Canetti, tantas vezes, numa paleta cultural polifônica, quando não dramática.
Não conheci pessoalmente Paulo Rónai. Ignoro o timbre de sua voz. Jamais apertei sua mão. Sinto-me como no filme 84, Charing Cross Road, traduzido no Brasil como Nunca te vi sempre te amei. Mantivemos uma breve correspondência, desde a emoção da leitura de Os meninos da rua Paulo, que ele traduziu, e que procurei agradecer com o entusiasmo que me habitava. Era um pouco o retrato da minha infância, das infâncias, que se comunicam no maravilhoso quixotismo dos meninos. A resposta não se fez esperar: veio do sítio “Pois É”, redigida com letra miúda, regular, desde os amplos domínios de sua biblioteca (brilhoteca) na serra de Friburgo. Foram quatro ou cinco cartas, e mais alguns livros autografados, dentre os quais Como aprendi português e outras aventuras, onde definia o húngaro “um emaranhado de opacos labirintos”, e o útil Não perca o seu latim.
Na minha biblioteca praiana (talassoteca), a obra de Rónai avançava, com Babel e antibabel, antologias de contos e volumes da Comédia humana, que inaugurei com o soberbo Eugénie Grandet. E podia dizer mais, sobretudo que fiquei preso, encantado, naqueles opacos labirintos a que se referiu Rónai.
Há dois ou três anos Ana Cecília Impellizieri Martins, autora de uma bela tese sobre Rónai, deparou-se com uma carta que ele arquivou, a letra irregular, desgraciosa, assinada por um rapaz de vinte anos, que acusava e agradecia a chegada de Não perca o seu latim, com os maiores elogios. Foi uma estranha sensação reler aquela carta, a bem da verdade um bilhete, em que hoje mal me reconheço.
Não se perdeu a saudação das virtudes desse livro, que recompõe a paisagem de um tempo, testemunho de uma espessura humanista, inscrita num pantempo generoso e ecumênico.