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Verdades na ficção

 

Continuo acreditando que um dos melhores antídotos para a mentira é a ficção. Explico o paradoxo: quando lemos na mídia uma versão fantasiosa ou uma deturpação muito bem arranjadinha da realidade, somos mais suscetíveis de ser enganados se não estivermos acostumados a ler narrativas literárias, pois estaremos sujeitos ao embuste de acreditar em mentiras sem exigir coerência no relato ou sem atentar para detalhes deixados a descoberto. E no que se refere à psicologia dos personagens, o leitor desavisado é muito mais sujeito a aceitar qualquer versão, sem perceber discrepâncias evidentes mas disfarçadas em embalagens vistosas. Por tudo isso, quem está acostumado a ler romance e conto não cai tão fácil em conto do vigário. Ou conto de político. É menos propenso a ser vítima.

Movendo-se à vontade nesse universo da narrativa literária, que transfigura a experiência do real e lhe confere sentido, o cidadão que lê literatura tende a ter mais condições de separar o falso do verdadeiro. Liga um sinal de alerta e fica com um pé atrás, diante de mentiras embrulhadas para presente, destinadas e defender o indefensável, disfarçadas por papéis coloridos, adesivos brilhantes ou laçarotes de cetim. Percebe melhor quando dentro da caixa está a intenção de obstruir a Justiça, defender privilégios, manipular números, garantir o próprio poder ou salvar a pele. O opaco da enganação se torna transparente.

Volto então a um jogo que tenho proposto todo início de ano. Aproveitemos o verão para ler literatura. Romances, contos e até ensaios bem escritos — para quem se sente mais seguro se não tiver de enfrentar de cara uma realidade imaginada. Ótima leitura para eventuais férias. Utilíssima na formação de cidadãos democráticos. Quanto mais lermos, menos nos enganarão. Vá a uma livraria ou biblioteca e escolha um livro. Entre clássicos e boas novidades, sugiro alguns começos, talvez capazes de fisgar quem quiser um bom texto. Ao final, identifico obra e autor.

A. “Existem pessoas que não se entregam à paixão, sua apatia as leva a escolher uma vida de rotina, onde ‘vegetam como abacaxis numa estufa d’ananases’, como dizia meu pai.”

B. “Ter um corpo de 43 anos não impede que se pense como alguém de 15.”

C. “O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.”

D. “Tudo que meu pai me deu foi um espermatozoide. O ser que sou resultou da defloração (consentida, via matrimônio) de uma mulher virgem, que recolheu dentro de si os espasmos de um homem, para o qual forneceu o gozo.”

E. “Vó Rita dormia embolada com ela. Vó Rita era boa, gostava muito dela e de todos nós. Talvez ela só pudesse contar com o amor de Vó Rita, pois de nossa parte, ela só contava com o nosso medo, com o nosso pavor.”

F. “Estamos na cena do crime. À frente de quem mira o levante, fica a praia, banhada pela Baía de Guanabara. Atrás, indevassável e infinita, a floresta.” 

G. “O menino de cabelo claro desceu os últimos metros pelas pedras e começou a caminhar na direção da laguna. Embora tivesse tirado o paletó do uniforme, que agora segurava numa das mãos e deixava arrastar pela terra, sua camisa cinza estava grudada no corpo e seu cabelo colado na testa.”

H. “Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros , e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.”

I. “A todos, em algum momento, nossa existência se nos revelou como algo particular, intransferível e precioso. Quase sempre essa revelação se situa na adolescência.”

J. “Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.” 

K. “A TV é uma velha trambolhuda de tubo de imagem. O lance não deve ter mais de dez segundos, mas com as interrupções de Murilo enche minutos inteiros enquanto ele narra sem pressa, play, pause, rew, play, o que na época foi narrado com assombro.”

L. “Não há quase ninguém no restaurante. É cedo ainda, talvez. A única mesa ocupada é essa onde se senta a mulher, sozinha.”

M. “Há dias em que me levanto com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos. Este é um desses dias.”

Que bons livros nos acompanhem durante todo o ano. Palmas para os autores. Pela ordem : Rubem Fonseca (“O cobrador"), Michel Laub (“O Tribunal da Quinta-Feira”), Eça de Queiroz (“A cidade e as serras”), João Silvério Trevisan (“Pai, pai”), Conceição Evaristo (“Becos da memória”), Alberto Mussa (“A primeira história do mundo”), William Golding (“Senhor das Moscas”), Guimarães Rosa (“Sagarana”), Octavio Paz (“O labirinto da solidão”), Machado de Assis (“Dom Casmurro”), Sérgio Rodrigues (“O drible”), Heloisa Seixas (“Pérolas absolutas”), Ernesto Sabato (“A resistência”).

O Globo, 20/01/2018