O fim de um século quase nunca coincide com o calendário. Um século termina quando se esgota o espírito de uma época. O século XIX só acabou com a Primeira Guerra Mundial. Foi nos primeiros anos de um século ainda sem personalidade que se afirmou na Europa o movimento sufragista, questão não resolvida no século que findara.
Emily Pankhurst, líder do movimento que assombrou as ruas de Londres, terminou seus dias em uma cadeira de rodas, vítima de um espancamento da polícia inglesa. Os confrontos nas ruas levaram à cadeia mais de cem mulheres que, atrás das grades, fizeram greve de fome. Terminada a guerra, elas obtiveram o direito de voto.
Nos anos 50, Simone de Beauvoir partiu ao meio o século XX com um livro revolucionário, “O segundo sexo”, que recusou a subordinação feminina. Alguns anos depois, Betty Friedan descreveu o mal-estar sem nome das donas de casa americanas.
O movimento feminista ganhou as ruas do Ocidente ao impulso dos ventos libertários de Maio de 68. Enraizado na experiência vivida, seguro de suas razões, opôs uma imperturbável indiferença à corrosão do ridículo e do deboche com que foi sistematicamente atacado.
Histéricas, pervertidas, mal-amadas, hostis aos homens, assim eram descritas as feministas nos ano 70 do século passado. Suas ideias insólitas poderiam ser resumidas em uma divisa: nosso corpo nos pertence. Essa divisa soava, então, como heresia, inversão das regras do mundo, supremo insulto à virilidade.
Quem diria que, 40 anos depois, com mulheres ocupando os lugares nobres do saber, da arte e do poder, ainda se falaria delas como histéricas, puritanas, inaptas aos jogos da sedução, as que não gostam de homem. A sempiterna cantilena desabou sobre aquelas que, mundo afora, ousaram enfim denunciar uma prática ancestral, o assédio sexual que os homens praticam como constitutivo do que até hoje chamam de identidade masculina.
A desqualificação do protesto global das mulheres é a tentativa agônica de salvar o espirito do século passado que está morrendo e ainda estertora. As jovens, que escolhem seus amores, vivem a sexualidade sem dar satisfações a ninguém e habitam um mundo em que os interditos encolhem a cada dia, se insurgem contra o que é uma agressão à sua vontade e ao seu desejo. Não vão voltar atrás, assim como as sufragistas não renunciaram ao direito de votar.
A denúncia do assédio como uma agressão ao corpo e à alma das mulheres se está fazendo uma vez mais não contra os homens, mas a favor delas, ato de legítima defesa.
O século XX foi o tempo da crise de identidade das mulheres que deixaram de se ver como o contrário ou o avesso dos homens, assumiram a autoria do feminino que até então lhes era vedada. Não foi tarefa fácil abandonar os reflexos de submissão e dependência, enfrentar a vida e criar filhos muitas vezes como chefes de família, assumir a solidão quando esta foi o preço da liberdade. Aprenderam o direito de escolha vivendo fora da moldura. Quebraram um paradigma milenar.
O tempo presente é o da crise de identidade masculina. A recusa pelas mulheres do assédio sexual põe na ordem do dia a exigência incontornável da reinvenção pelos homens da identidade masculina, que já não encontra nelas um espelho que aprove seus pensamentos, aplauda suas palavras e se submeta aos seus desígnios.
Para se defenderem, recorrem como sempre à arma do deboche, deturpam o sentido profundo do protesto, ridiculizam um movimento inesperado, o primeiro a quebrar o avanço da onda reacionária na América. A carantonha de Donald Trump não é mais a cara da América. Oprah Winfrey, Meryl Streep e milhões de americanas tomaram a palavra e falaram para o mundo.
Acusadas de puritanismo, o que fazem é exatamente o contrário, a defesa da liberdade sexual, o direito de escolha de quando, com quem e como uma mulher quer se relacionar. Na contracorrente do século XXI, essas acusações soam, elas sim, ridículas e retrógradas.
As mulheres fizeram um caminho que foi da submissão a mais liberdade. Enquanto elas se reinventavam, os homens persistiam em agir como sempre tinham agido. Trata-se agora, para eles, do caminho difícil que é reconhecer a perda de poder sobre as mulheres e encontrar uma identidade que não se construa sobre a dominação. Aceitando essa perda, ganham a oportunidade de uma relação inédita entre pessoas diferentes e iguais em liberdade e dignidade.
Trinta anos atrás escrevi, “a mais desvairada das utopias é inaugurar, enfim, na Historia, um diálogo amigo entre homem e mulher”. Há sinais de terra à vista.