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A vitória dos vencidos

 

É atribuída ao escritor inglês George Orwell a afirmação de que a História é escrita pelos vencedores, o que é verdade. Mas acaba de surgir uma exceção, bem a propósito. Trata-se da consagração dos vencidos do chamado maior espetáculo da Terra, o das escolas de samba. Refiro-me ao livro “Por que perdeu? Dez desfiles derrotados que fizeram história”, do jornalista Marcelo de Mello.

Para quem acompanha o espetáculo há mais de 50 anos, como eu — primeiro, cobrindo, e depois curtindo —, é uma fascinante viagem que devolve inesquecíveis emoções. E para quem não tem a mesma vivência, é uma indispensável iniciação nos mistérios dessa fantástica festa.

Assim como as escolas têm tempo limitado para apresentar seus enredos, o meu espaço é insuficiente para contar o que aconteceu com as três derrotas injustas da Beija-Flor, as duas da Portela e da Mocidade Independente e uma cada do Império Serrano, da União da Ilha e da Unidos da Tijuca.

Se tivesse que me restringir a apenas dois quesitos merecedores de nota 10, escolheria a excelência do texto e o rigor da apuração. No primeiro caso, merece destaque a forma como a narrativa pode assumir um tom épico ao falar de uma gritante injustiça e ser capaz de ensinar — só para citar um caso — que os seios caídos da escultura de mães africanas amamentando não eram defeito estético. “O importante era deixar o leite escorrer, e não despertar a libido masculina”.

Marcelo poderia se limitar ao que aprendeu em 40 anos de observação crítica de desfiles. Como doutor no assunto, deu status universitário ao samba com sua dissertação de mestrado sobre a Beija-Flor. Mas não. Leu jornais de época, ouviu discos, entrevistou carnavalescos. Contei mais de 50 agradecimentos a fontes que o ajudaram na sua investigação, entre parentes, amigos e especialistas, inclusive de outras áreas.

Para falar do famoso Carro do DNA, por exemplo, criado por Paulo Barros, o autor consultou uma consagrada geneticista da USP, recorreu a um matemático para tirar dúvidas e apelou a um professor universitário para entender o tatu de uma alegoria carnavalesca.

No final de cada capítulo, há um adendo — “E se fosse campeã?” — que dá ao livro uma dimensão prospectiva: não olha só para trás. No caso do revolucionário “Ratos e urubus...”, de Joãosinho Trinta, há a triste previsão: “Se a escola de Nilópolis vencesse, talvez o carnaval não ficasse tão repetitivo. Poderia haver mais novidades (...)”.

Marcelo de Mello conseguiu o feito de escrever um livro capaz de empolgar as arquibancadas e ser consagrado pelo júri — se, claro, não houver injustiça.

Do mundo encantado do samba para o real. Quando as balas perdidas passaram a ter com endereço crianças e adolescentes, é que o Rio resolveu matar também o seu futuro.

O Globo, 10/02/2018