Minha geração está indo embora e a nostalgia nos leva a fazer um balanço de nossas vidas. Daí o gosto dos velhos por contar histórias. As nossas conversas começam sempre com aquele chavão “no meu tempo…” E realmente cada tempo é seu tempo.
Quero citar como exemplo a cidade de São Luís da minha juventude. Por aí surge a saudade dos nossos bondes, da intimidade que tínhamos com os motorneiros e cobradores, conhecíamos a todos pelos nomes. Como eram diferentes as ruas, os becos, a arborização da cidade, o Largo do Carmo — com os belos e numerosos pés de oiti e a Igreja do Carmo tendo a longa escadaria na frente da igreja e não abrindo para os lados, como agora, e sem esses monstrengos que são os abrigos. E sem a derrubada dos oitizeiros.
A febre da modernidade era cortar árvores e, quando isso acontecia, todos consideravam: “o Prefeito está trabalhando”, numa visão errada. Assim foram destruindo a cidade do meu tempo. Ela hoje só existe na minha cabeça. Cada um tem a sua cidade que foi desaparecendo ao longo de sua vida, para chegarmos até a cidade atual, que também muda a cada dia.
A violência naquele tempo resumia-se a pequenas querelas de embriaguez, de briga de vizinhança, de rusgas de convivência; não existia a violência coletiva. Os crimes eram raros. Quando ocorria um homicídio, era assunto para desenrolar-se durante muito tempo. Havia também as brigas de festas, sempre na base do cacete, com cabeças e braços quebrados, e escoriações provocadas por pancadas.
Essas lembranças despertaram com a morte de Ferreira Gullar — como eu, nascido José Ribamar. Lembrei as meninas do nosso tempo, de saia azul e blusa branca, todas bonitas, porque a lembrança delas está associada à juventude e à beleza.
Gullar, Burnett, Tribuzzi, Belo Parga, Lucy Teixeira, Evandro Sarney — também grande poeta —, Carlos Madeira cada um sem o saber o seu futuro. Acima de nós todos, Odylo Costa, filho, nosso inspirador. Já velho, fiz tudo para Gullar entrar para a Academia Brasileira de Letras. Ele não queria, tendo uma aversão pela ABL, acho que resquício de nossos primeiros versos, que repeliam os sonetos parnasianos que marcavam as academias, na visão daquele nosso tempo associadas ao passadismo, quando queríamos ser modernos… Tudo mudou.
Quando comecei a fazer versos, num sarau no Lítero Recreativo recitei A louca Jorgina, com toda dramaticidade e algum sucesso. Era um episódio de minha infância: uma mulher tida como louca perambulava pelas ruas em andrajos, cantando e gritando, às vezes tornando-se inconveniente para os costumes da época. Um dia ouvi uma algazarra. Ela gritava, dizia palavrões e estava parcialmente nua. Os guardas queriam submetê-la e levá-la para a cadeia, único recolhimento de vagabundos e loucos. Ela reagia.
Em 1950 eu julgava que minha vocação e meu futuro seriam a literatura e a ela dedicaria minha vida. Tinha um certo preconceito pelos “ismos”, que eram a febre da mocidade. Começavam a circular os primeiros jornais de esquerda. Mas minha vocação literária foi tocada pelas figuras dos escritores na UDN. Seguia os intelectuais e a esquerda democrática, que queriam o fim do Estado Novo. Surgiu o meu destino, a política.
O meu mundo era a cidade de São Luís. Um amor que não se enfuma, uma saudade que não passa. Minha terra, minha paixão.