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O passado os condena

 

Alguns dos bons exemplos de homens públicos estão no Congresso — e dos piores também. É fácil perceber, porém, mesmo à distância, pelo noticiário, que predomina a imagem de um Legislativo corporativista onde se legisla em causa própria: atrás de cada proposta e cada emenda, há sempre um interesse pessoal, ou de um grupo amigo, de correligionários, de parentes ou de tudo junto. Para reforçar essa avaliação, por exemplo, há as tentativas de barrar a Lava-Jato através de investidas contra a delação premiada, a prisão preventiva, a condução coercitiva, o abuso de autoridade, enfim, iniciativas que tiram o sono dos numerosos parlamentares denunciados e/ou acusados de corrupção. (Um chegou a revelar abertamente a promessa de retaliação: “Nós vamos investigar quem está nos investigando”).

Mais recentemente, surgiu o caso para o qual a colunista Lydia Medeiros foi a primeira a chamar a atenção: “Sem alarde, 19 líderes partidários da Câmara assinaram requerimento de urgência para votar projeto que impede a aplicação da Ficha Limpa de forma retroativa, como decidiu o STF em outubro”. A iniciativa, não custa lembrar, foi resultado de um clamor popular com mais de um milhão de assinaturas.

De acordo com o tribunal, a lei passaria a valer também para condenações anteriores a 2010, quando entrou em vigor, e com o prazo de inelegibilidade ampliado de três para oito anos. O grupo que se opõe a essa interpretação alegou logo que a legislação brasileira não permite retroagir, o que seria suficiente para reverter a decisão do Supremo. O argumento parecia fazer sentido, até que foram ouvir o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, que, com sua habitual serenidade e saber, pôs fim ao equívoco.

“Quando a Constituição proíbe a retroação penal”, ensinou o grande jurista, “está protegendo o indivíduo, que representa a si mesmo. Já os candidatos têm a pretensão de representar uma coletividade, de ser seu porta-voz”. Assim, a vida pregressa deles não tem prazo de validade: se o passado os condena, isso não deve valer apenas a partir de um determinado momento. 

Os que não têm medo do passado consideram a armação um retrocesso comprometendo ainda mais a imagem da Casa. Por falta de espaço, cita-se apenas um, o deputado Miro Teixeira: “Vai ser um passo atrás. A rigor, um estímulo à impunidade”. 

Em tempo. O autor do projeto para modificar a decisão do STF é o deputado Nelson Marquezelli, que responde a inquérito nesse mesmo STF por corrupção passiva. E quem providenciou o requerimento de urgência, o deputado Leonardo Quintão, é filho de Sebastião Quintão, prefeito de Ipatinga, condenado por abuso de poder econômico e captação ilícita de recursos.

O Globo, 16/11/2017