Esta semana Cartola completou 99 anos. Há exatos 40, fui entrevistá-lo em sua casa, no morro da Mangueira, para a extinta revista “Manchete”.
O único problema era minha admiração patológica. Diante dele, eu sentia todos os sintomas do tiete: tremores, medo de sustentar o olhar e acessos ridículos de entusiasmo. Ao ver sua casa, sobre a qual havia uma antena de TV, eu supunha que toda a poesia do mundo entrava por ali.
Esclareço que conheci e fui amigo de outras figuras notáveis do século XX, como Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes. E, apesar de toda a admiração que tive e tenho por ambos, nunca tive faniquito, nem fiquei suando frio, nem trêmulo e com todas essas patologias ridículas do Efeito Cartola.
Como explicar? Não sei. Cartola nasceu em 1908, ano em que morreu Machado de Assis — outro dos heróis de minha devoção —, e se mudou para a Mangueira em 1919. Ali ficou e edificou tantas canções que fazem parte de nossas vidas, sem as quais seria impossível viver. Hoje, já não posso imaginar o mundo sem “Alvorada”, sem “Amor proibido”, sem “Autonomia”, sem “O sol nascerá” (com meu amigo Elton Medeiros), sem as Rosas do Cartola. Talvez por tudo isso eu me sentisse esmagado diante dele, como se estivesse diante de um deus.
Dirá você que é um exagero, um ato de bardolatria. Pode ser. No entanto, segundo o sociólogo francês Pierre Verger, os orixás foram seres humanos, antes de serem convertidos em divindades, por seus exemplos. Pode ser que um dia se invente uma religião na qual exista um altar dedicado a Cartola, diante do qual todos os poetas do futuro depositarão suas oferendas. Quem sabe?
Mas voltemos à visita. Zica, esposa de Cartola, tentava atenuar meu ridículo com sua simpatia e suas lendárias habilidades: cozinhou costeletas de porco para o entrevistador, isto é, para mim. Só que, ao sentir o perfume daquele manjar dos deuses, fui tomado por um arroubo de poeta do século anterior e proferi um elogio também ridículo, como se fosse um sub-Olavo Bilac extraviado no tempo, assim: “Emana da cozinha um cheiro divinal.” Pior, impossível.
Hoje compreendo minha adoração por Cartola. Quase todo poeta traz inscrita em seus versos a sua circunstância histórica. Se você lê, por exemplo, Charles Baudelaire, conhece um pouco a Paris da metade do século XIX. Se você lê Bilac, conhece um pouco do Rio de Janeiro da Belle Époque, em que imitávamos os franceses do tempo de Baudelaire.
Existem alguns poucos poetas que atravessam a História como se não se deixassem tocar por ela. São poetas que moram num tempo imóvel, que pairam acima do circo das circunstâncias. É lá que a gente percebe que as rosas não falam, embora seja sempre primavera. É a esse mundo sem tempo que pertence o Cartola.