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Já os temos de sobra

 

Você já viu algum juiz declarar ter concedido uma sentença que não seja em nome da lei? Nenhum, não é verdade? Nem os de Hitler e de Stalin, o que leva um analfabeto em hermenêutica jurídica como eu a concluir que a rigor não há leis, e sim interpretações delas: “cada cabeça uma sentença”, como se diz. Em outras palavras, a lei não é unívoca, daí atribuir-se a ela “letra” e “espírito”, ou seja, é um texto que admite várias leituras. Essa possibilidade desorienta o senso comum, cuja opinião é tão desprezada pelos magistrados na hora de julgar. Eles preferem ouvir a própria consciência, com a tranquila certeza de que não existe má consciência. Veja o caso do ex-médico Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos por 48 estupros de 37 pacientes. A Justiça já o transferiu do presídio para a prisão domiciliar e vice-versa umas sete vezes. Quando comecei este artigo, ele estava voltando para casa. Até terminar, não sei onde ele estará.

Por absurdo, isso faz lembrar a ação do defensor público Anginaldo Oliveira, que pediu a devolução de 185 presos com mais de dois anos em cadeias federais para seus estados de origem. Só do Rio voltariam 53 chefões do tráfico, como Fernandinho Beira-Mar, Elias Maluco e Nem da Rocinha, que tinham sido transferidos para longe justamente porque constituíam ameaça à segurança pública. É como se já não os tivéssemos de sobra, com nossos presídios superlotados e com a população ainda abalada pelo trauma da guerra na Rocinha, comandada, aliás, por Nem à distância (imagina se estivesse aqui).

O defensor público pergunta “por que preso não pode reclamar?” Claro que pode, assim como a sociedade também pode reivindicar o direito à paz. A melhor resposta foi dada por alguém com a autoridade do ministro da Defesa, sem meias palavras, usando a lógica e a razão. “A solicitação de transferência”, disse Raul Jungmann, “significa dar uma mãozinha ao crime organizado. Não é algo a favor dos direitos humanos, mas, sim, da bandidagem, dos que matam e sequestram”.

Também o Ministério Público e a Procuradoria-Geral do Estado lançaram uma ofensiva contra a medida, pedindo formalmente ao relator da ação no STF, ministro Alexandre de Moraes, que negue o habeas corpus pedido. Uma extensa documentação foi anexada comprovando a periculosidade dos detentos. O procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, classificou a medida como um “despropósito totalmente dissociado da atual realidade em que estamos vivendo”.

Agora, é torcer para que o nosso padroeiro ilumine o ministro Alexandre de Moraes.

O Globo, 04/10/2017