G.P. – Caríssimo amigo – meu e da Romênia – Marco Lucchesi, retomamos aqui, com o mesmo espírito fraterno, nosso diálogo sobre laços incompletos, mas afortunados e cheios de coincidências, gloriosos e olvidados, entre nossas línguas e culturas. Faz 15 anos que imaginamos uma ponte imaginária entre eventos e personalidades que consolidaram uma vizinhança entre nossas culturas, desde o economista Mainolescu ao artista que trabalhou na célebre estátua do Cristo que domina o céu azul de sua cidade, passando por Eliade, Cioran, Ionesco, às recentes gerações criativas com Blaga, Bacovia, Vintila Horia, Nichita Stanescu, Marin Sorescu e tantos outros traduzidos (inclusive por você) e desfrutando de preciosa fama no Brasil. Queria falar sobre uma figura especial nas relaçoes romeno-brasileiras. Trata-se de Stefan Baciu, poeta, crítico de arte, ensaísta, professor universitário especializado em literatura hispano-americana que ensinou primeiro no Rio, para chegar ulteriormente a Seatle, nos EUA e depois à distante Honolulu. A primeira pergunta seria: qual o destino póstumo brasileiro de Stefan Baciu hoje? Ainda vive na memória a presença de sua obra?
M.L. – Ainda não de todo como homem de letras. Mas a redescoberta na Romênia é também recente. Permanece aqui como crítico de espessura intelectual, claro e sensível em seus ensaios. Apreciado pela proficiência na língua portuguesa. Sua atividade jornalística guarda discreta memória. Conheceu a intellighentzia brasileria de seu tempo e a lista não seria breve. Vou a Carlos Drummond de Andrade e a Oscar Niemeyer. Nomes-chave para não falar de Bandeiroa. Se tivesse ficado mais tempo no Rio talvez sua memória seria menos lábil. É mais uma lembrança fragmentária, que espera quem reúna esse mosaico luminoso. Conheceu a todos e com todos repartiu uma simpatia de base. Integra a família dos escritores estrangeiros do Pós-Guerra ou de pouco antes, Stefan Zweig, Rónai Paul, Otto Maria Carpeaux. Foram responsáveis por uma respiração cosmopolita e multilingue. Nao excluo de certo modo a senhora Vanna Piraccini, que você conheceu no Rio, na livraria Leonardo da Vinci, uma obra invisível, mas de alcance delicado. Essas, as coordenadas de Baciu. Seria oportuno reunir a sua obra para as novas gerações.
GP. – Um excursus biográfico de Baciu dá a impressão de uma aventura existencial que deixou rastros na sua obra e no seu estilo.
ML. – Trata-se de uma parábola admirável. A diáspora romena possui um rosto ambíguo, do peregrino forçado tatuado no corpo e na alma e que, no entanto, ressurge integrado numa terra nova, que faz sua, cheio de “dor” e “saudade” da Origem. A sua presença ocupa uma segunda surrealista em nosso continente. Baciu era um radar. Na Bolivia e no Peru, na Costa Rica, no Brasil e na Argentina vivia em processo de abrir pontes e descobrir talentos, generoso, com aquele “humanismo romeno”, à maneira de Noica ou Blaga, um saber não excludente, multifário, do mundo como um livro que exige toda a nossa energia e adesão. Penso na correspondência entre Merton e Baciu. Suas memórias brasileiras surgem também de seu epistolário. Num certo sentido, o crítico eclipsou o criador, para dizer de forma superficial, George: sabemos que existe uma retroalimentação entre crítica e poesia. Inegável a tendência das etiquetas exclusivas. E quanta poeria em seus sapatos, tal como em suas memórias “Poeira de tambor”.
GP. – Indago o lugar de Baciu como animador das vanguardas latino-americanas. E nesse contexto, quanto pesou sua amizade com Manuel Bandeira? Fale para o nosso leitor romeno.
ML. – Baciu deixou rastros em quase todos os países da América Latina. E seu encontro com Bandeira marca uma discreta epoché. Bandeira, nosso amado poeta, amado e admirado. Talvez o poeta pelo qual mais nos afeiçoamos. Emociona saber que dividiu o mesmo bonde com Machado de Assis. Um mesmo território afetivo, os mesmos instrumentos de sentir. Bandeira veio do Norte, de Pernambuco, traz nos olhos um Brasil profundo, a música, a literatura popular, a gente do povo, aquele Brasil de Gilberto Freire ou Paulo Prado quando vem ao Rio. Um país ainda agrário, monocultor, com as feridas da escravidão, mas com o fascínio de uma república nova, embora velha em si mesma e na denominação, terminada a monarquia em 1889, culminando na Era Vargas. Uma vida difícil. Perdeu quase toda a família, lutou contra a tuberculose. Primeiro nas serras do Rio e depois em Clavadel. Grande leitor da Weltliteratur e da poesia brasileira. Mas a sua erudição nunca foi um monstro, antes uma solução fraterna, para saber a dor de nossos irmãos. Mudou a face da poesia no Brasil, leitor de Blaise Cendras. Testemunha da religiosidade popular. Ensinou literatura latino-americana na antiga Universidade do Brasil. Uma vida franciscana, rica de experiências, contudo, e fascinado pelas mulheres. Seus poemas, como os de Drummond, nós os conhecemos um pouco de cor. São completamente nossos. Comemoramos o centenário de seu nascimento como alguém de nossa família, um patriarca sábio e delicado. Foi um de nossos melhores tradutores. Quando traduzi e retraduzi Hölderlin, sempre na casa de meus vinte anos, inseri vários versos de Bandeira na minha tradução de Hölderlin, como homenagem patente. Ele traduziu Hölderlin de modo admirável, com base em traduções francesas. Realizei um diálogo com ele, inserindo a sua tradução dentro da minha. Patente a vizinhança lado a lado.
Ele e Drummond me conquistaram na juventude.
GP. – Há dois testemunhos diretos e indiretos dessa amizade, entre Bandeira e Baciu, como a descrição deste do encontro com o poeta no livro Servindo a poesia, de 1953. Vê-se que Bandeira sabia algo da língua e da cultura romena, conhecimento adquirido de sua permanência na Suiça onde conheceu nossos intelectuais.
ML. – “Servir a poesia” é um livro que traduz Baciu, uma confissão poética, memória literária elegante e sutil. Bandeira ficou em Clavadel em tratamento. Uma luta importante que aparece em tantos poemas, como no famoso “Pneumotórax”. Lá conheceu Éluard e os amigos romenos. Quando Bandeira encontrou Baciu no Rio, citou, em romeno:
Multe e dulce si frumoasa
limba ce vorbim,
alta limba armonioasa
Ca ea nu gasim”
Baciu ficou impressionado ao ouvir em plena diáspora a sua língua na boca de um dos maiores poetas da língua portuguesa: um grito de boas-vindas, um “affettuoso grido”, típico de Bandeira. Um outro Brasil que me leva à memória daquele romeno que conheci nas prisões do Rio. Ouvir a língua materna, quando não se espera, a língua da aldeia, a língua do espaço miorítico, para citar Lucian Blaga. Posso dizer apenas, caro George, que Bandeira é a capital afetiva de meu país.