Ao mesmo tempo em que começou a tramitar ontem na Câmara o segundo pedido de processo contra o presidente Michel Temer, a Procuradora-Geral da República Raquel Dodge deixou claro que se a Câmara permitir a sequência do processo, e o STF acatar a ação penal, ela prosseguirá “como manda a lei”.
Esta é a segunda manifestação da nova chefe da PGR, pois na sessão do Supremo em que a denúncia foi enviada à Câmara por um placar de 10 a 1, ela já havia se pronunciado a favor do envio. Com as atitudes, ela reafirma uma posição de coerência com seu antecessor, Rodrigo Janot, e fortalece a instituição que hoje dirige.
Em seu discurso de posse, ela ressaltou a necessidade de harmonia entre os Poderes, o que muitos entenderam como um aceno a uma atitude de condescendência para com o Palácio do Planalto. Não era a isso que ela se referia, como se vê. Mas, e o equilíbrio entre os Poderes, as quantas anda no país?
No Boletim Macro de setembro do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getúlio Vargas, dirigido pelo economista Regis Bonelli, um artigo do cientista político Octavio Amorim Neto discute as relações entre os Poderes no Brasil. De início, ele avalia que “se a primeira denúncia de um chefe de governo em exercício, por corrupção passiva, apresentada em junho deste ano, já fora inédita, mais ainda foi a segunda. Sinal também de um ativismo sem precedente do Ministério Público (MP)”.
Depois de criticar esse ativismo, “bastante controverso, dados os enormes equívocos cometidos por Janot na condução da delação premiada de Joesley Batista, um dos sócios da JBS, delação que embasou, em parte, as duas denúncias”, Octavio Amorim Neto analisa o papel do Judiciário, a quem caberá mais uma vez o papel de árbitro de mais essa crise. “Em virtude de determinações constitucionais, da judicialização da política e do excessivo protagonismo de alguns magistrados, o Judiciário tem exercido um poder de arbitragem sobre a política brasileira também sem precedente”.
Ele pondera que, mesmo que positivo em certos aspectos, “o poder crescente do Judiciário não é sempre benfazejo, dado ser um órgão extremamente corporativista, eivado de aberrantes privilégios e muito ineficiente”.
Sobre o Poder Executivo, o primeiro fato registrado por Octavio Amorim Neto é que “o presidente brasileiro é um dos mais fortes do mundo democrático, consequência de sua capacidade de editar medidas provisórias com força de lei, vetar total e parcialmente leis, propor e executar o orçamento da União, submeter ao Congresso projetos de lei e emendas constitucionais sobre os mais diversos assuntos, e, last but not least, nomear e demitir livremente ministros de Estado, chefes de centenas de empresas estatais e os ocupantes de dezenas de milhares de cargos de confiança de vários escalões da administração pública”.
Todavia, ressalta, todo esse poder depende de o presidente da República “formar e conduzir, de maneira hábil, amplas alianças multipartidárias”. Os dois presidentes brasileiros que tentaram governar de forma imperial foram destituídos pelo Congresso Nacional no curto espaço de 24 anos, lembra o cientista político, referindo-se a Collor em 1992 e Dilma em 2016. “Ou seja, o Poder Executivo combina, de maneira complexa e confusa, elementos radicais de fortaleza e fraqueza”, analisa Octavio Amorim Neto.
Já o Poder Legislativo, “por mais desmoralizado e desacreditado que se encontre hoje em dia”, também é forte, como provam as duas destituições presidenciais e os processos contra Temer na Câmara. Outro cientista político, Marcus Melo, da Universidade Federal de Pernambuco, mostra que o Legislativo brasileiro é o segundo na América Latina em termos da extensão de sua capacidade decisória.
Porém, pondera Octavio Amorim Neto, esse mesmo Legislativo, “por ser organizado pelo mais fragmentado sistema partidário do mundo”, enfrenta tais problemas de ação coletiva que, em diversas circunstâncias, ou delega as decisões que lhe cabem ao Executivo e ao Judiciário ou se vê atropelado por estes Poderes. “O Congresso Nacional combina, de maneira complexa e confusa, elementos de fortaleza e fraqueza”.
A conclusão é que a atual ordem constitucional brasileira, “se é que se pode chamá-la de ordem”, ressalva Octavio Amorim Neto, “está longe de caracterizar-se pelo equilíbrio de poderes”.
Teoricamente, há duas maneiras de resolver, no médio prazo, os problemas que afligem nossa dinâmica constitucional, prescreve Octavio Amorim Neto: amplas reformas institucionais e a emergência de uma coalizão majoritária e coesa a partir das urnas de 2018, coalizão capaz de dar estabilidade às relações políticas entre os Poderes da República.
“No momento atual, nenhuma das duas alternativas parece provável”, lamenta.