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Democracia em xeque

 

A mistura explosiva de crise econômica, desmoralização da classe política pela prática sistemática da corrupção, e violência urbana, como vem acontecendo em todo o país nos últimos anos, tem no Rio de Janeiro seu ponto mais vistoso.

A intervenção das Forças Armadas na segurança pública, justamente pela falência do poder político, devido à corrupção e incompetência, que desmontou um programa de pacificação das favelas inicialmente bem sucedido, é exemplar para o entendimento do fenômeno conhecido como “desmonte da democracia”, que se espalha não apenas nos países em desenvolvimento como o nosso, mas também nos Estados Unidos e nas democracias da Europa Ocidental.

O caso brasileiro foi objeto de um amplo artigo no blog Polyarchy, produzido pelo centro de estudos (think thank) independente baseado em Washington New America Foundation em reportagem sobre o declínio da confiança nas instituições políticas no mundo.

Eles focam a tendência crescente de soluções autoritárias no Brasil, como o surgimento da candidatura de Jair Bolsonaro para a presidência, com apoio inimaginável. E poderiam também citar o apoio que o General Mourão vem recebendo nas redes sociais depois que defendeu uma intervenção militar. O povo está com tanta raiva dos políticos que, se o general Mourão for para a reserva, presidir o Clube Militar e continuar na sua pregação, pode se tornar candidato na base de uma plataforma de lei e ordem, tomando o espaço de Bolsonaro.
 
Segundo os scholars Yascha Mounk and Roberto Stefan Foa’s, em estudo publicado no Journal of Democracy, as pessoas estão cada vez mais abertas a soluções autoritárias, como, por exemplo, governos militares. Uma situação que consideram perigosa, pois os cidadãos em democracias supostamente estabilizadas mostram-se cada vez mais críticos aos líderes políticos e mais cínicos quanto ao valor da democracia como sistema político.

Há pesquisas que mostram que a democracia era um valor muito mais respeitado entre as gerações mais velhas, ao passo que na geração dos millenials, os que chegaram à fase adulta na virada do século 20 para o 21, apenas 30% nos Estados Unidos consideram que a democracia é um valor absoluto.  O mesmo fenômeno é constatado na Europa, em números mais moderados.

Um estudo do Latinobarômetro, ONG sediada no Chile que faz pesquisas regularmente, desde 1995, sobre valores e opiniões na América Latina, mostra que em 2016, o apoio dos brasileiros à democracia caiu 22 pontos percentuais. Não apenas o apoio saiu de 54% em 2015 para 32%, mas como 55% dos brasileiros se disseram dispostos a aceitar um governo não democrático desde que os problemas sejam resolvidos.  

O mais recente estudo do Latinobarómetro mostra que a confiança na democracia está em declínio na região desde 1995 Quando comparados com outros consultados em países da América Latina, os brasileiros são os segundos menos dispostos a apoiar a democracia.

Por outro lado, com o surgimento do “capitalismo de Estado”, a relação direta entre democracia e capitalismo já não é mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado. Ela está sendo deixada de lado pela emergência de países capitalistas não democráticos, como a China, e também pela desigualdade econômica exacerbada em países como o nosso.

Um novo estudo do World Wealth and Income Database, dirigido pelo economista francês Thomas Piketty e citado na reportagem do blog Poliarchy, mostra a “extrema e persistente desigualdade” do Brasil. Uma comparação entre Brasil, Estados Unidos, China e África do Sul mostra pelo menos 8% de diferença na parte nas mãos do 1% mais rico. No Brasil a renda desses corresponde a 28%, enquanto na China é de 14%.

Piketi, aliás, transformou-se de herói em vilão para a esquerda brasileira, especialmente os petistas, pois nesse estudo seu centro de pesquisas demonstra que a desigualdade de renda no Brasil não caiu entre 2001 e 2015. Segundo a pesquisa, os 10% mais ricos da população brasileira aumentaram sua fatia na renda nacional de 54% para 55%, enquanto os 50% mais pobres ampliaram sua participação de 11% para 12% no período.

Segundo a Freedom House, um centro de estudos nos Estados Unidos dedicado à análise da liberdade no mundo, a liberdade global vem declinando. Desde a crise de 2008 está em discussão nos principais fóruns mundiais a necessidade de rever atitudes e procedimentos para que o capitalismo continue sendo o melhor sistema econômico disponível. Para isso, é preciso que preste melhores serviços à sociedade.

Mais do que realizar apenas eleições periódicas, a democracia precisaria ajudar uma maior inclusão social e a redução das desigualdades. A situação é tão paradoxal que a intervenção militar tem apoiadores à direita e à esquerda. Todos em busca de uma solução fora dos parâmetros democráticos quando, por experiência própria ou exemplos no mundo, sabemos que governos autoritários não são solução para nada.

O Globo, 24/09/2017