Há exatos 30 anos — dez antes de sua morte — fiz a primeira grande entrevista com Betinho, que nascera hemofílico, fora tuberculoso na juventude, já estava com o vírus HIV e às voltas com hemorragias e artroses desde criança, tinha tudo para ser pessimista. E, no entanto, acabou fazendo de sua luta contra a morte uma alegre e exemplar lição de vida.
Detestando lamúrias, considerava-se um “privilegiado” por ter superado todas as adversidades e porque, segundo ele, em tempos difíceis era fácil ser baixo astral. “A graça é ser otimista”, alegava.
Esse sentimento era tão autêntico que em uma pesquisa do Datafolha para saber quem os brasileiros consideravam felizes surgia, entre os primeiros “dez mais”, ao lado de personalidades ricas e poderosas, aquela figura improvável, quixotesca, esquálida, pesando 40 quilos, capaz de ser derrubado pela primeira rajada de vento e que comandava uma inédita campanha nacional pelo que parecia ser uma causa impossível ou perdida: o combate ao flagelo da fome.
O povo percebera que tinha que ser feliz aquele otimista incurável que antes do vírus da Aids adquirira um outro mais resistente: o da esperança.
Betinho era a cara deste país cheio de mazelas, mas movido por uma incrível vitalidade, ao mesmo tempo realista e sonhador, que sabia não ser possível acabar com a fome de um dia para o outro, mas queria despertar a consciência de que a miséria não é uma fatalidade e que a fome devia ser denunciada como escândalo e iniquidade.
Quando um ministro da Fazenda reclamou de não dispor de recursos, Betinho antecipou o que hoje ficou escancarado: “O dinheiro está aí nas barbas de todo mundo, saindo pela porta da corrupção”. E sugeriu que os milhões encontrados pela então CPI do Orçamento em contas particulares fossem confiscados — isso bem antes da Lava-Jato.
Quando o provocaram perguntando se acreditava mesmo que ia acabar com a fome, ele lembrou o beija-flor da fábula diante da gozação do leão: “Você acha que vai apagar o incêndio trazendo água no bico?”. “Não”, repetia Betinho, “estou apenas fazendo a minha parte”.
Com certeza, ele não resolveria os problemas desse Brasil que continua com “fome de ética”, como dizia. Mas o nosso “beija-flor social” estaria fazendo a sua parte, transformando a indignação em ação mobilizadora contra essa geleia geral feita de marasmo e apatia. Continua um mistério como alguém desenganado e com o sangue contaminado era capaz de espalhar tanta energia positiva.