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Discurso de posse

Em primeiro lugar, quero declarar minha profunda gratidão aos acadêmicos que votaram para que eu também fizesse parte desta Academia que, como já afirmou, com toda razão, o acadêmico Helio Jaguaribe, “constitui, para qualquer intelectual brasileiro, a mais alta distinção”.

O professor Helio Jaguaribe foi um dos maiores amigos de meu pai, Ewaldo Correia Lima, que também era um intelectual. Aliás, meu pai tinha uma enorme biblioteca em casa, de modo que eu poderia até dizer, como Baudelaire, em trecho do poema “La voix”, que

Mon berceau s’adossait à la bibliothèque,

Babel sombre, où roman, Science, fabliau,

Tout, la cendre latine et la poussière grecque,

Se mêlaient.

Ou, como na tradução feita pelo grande poeta Ivan Junqueira, acadêmico de quem me orgulho de ter sido amigo,

Meu berço ao pé da biblioteca se estendia,

Babel onde ficção e ciência, tudo, o espólio

Da cinza grega ao pó do Lácio se fundia.

Quando eu era adolescente, um dos meus grandes prazeres era ser ouvinte das conversas de meu pai com seus amigos intelectuais. Alguns deles vieram a fazer parte desta Academia, como Cândido Mendes de Almeida, Celso Furtado, Alberto Venâncio Filho e o já citado Helio Jaguaribe. Eram todos muito brilhantes. No que diz respeito a Jaguaribe, por exemplo, concordo com a observação do acadêmico Celso Lafer, segundo o qual o impacto de suas exposições tem a ver com “o vigor e o entusiasmo de sua orteguiana razão vital, a fulgurante inteligência de seu poder de síntese e a originalidade contagiante de suas formulações”.

O fato é que foi sem dúvida a partir dessa experiência que passei a dar grande valor à convivência com intelectuais interessados em conversar sobre filosofia, literatura, arte, história, política etc. Comecei a participar ativamente – e não mais apenas como ouvinte – de conversas intelectuais a partir do momento em que entrei no curso de filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, onde tive o privilégio de conviver com colegas como Alex Varella, Paulo Sérgio Duarte, Kátia Muricy e Wilson Coutinho, entre outros, e com professores admiráveis como Emmanuel Carneiro Leão, José Américo Pessanha e Alberto Coelho.

Pois bem, fiz esses flashbacks autobiográficos com o intuito de mostrar uma das razões pelas quais é com grande alegria que entro nesta Academia. Mesmo quando eu era apenas candidato, já era para mim um enorme prazer encontrar e conversar com os acadêmicos, assistir às conferências que aqui têm lugar, comparecer aos lançamentos de livros e aos vernissages de exposições etc. Ao comentar isso com a admirável acadêmica Nélida Piñon, ela me disse: “é assim mesmo, Cicero: primeiro o candidato entra na Academia; depois, ele é eleito”.

Mas há também outras razões pelas quais é não apenas um prazer, mas sobretudo uma honra pertencer a esta casa. Para mim em particular, como poeta, é importante que haja uma instituição que, como diz o seu primeiro estatuto, elaborado na época de Machado de Assis, tenha por fim “a cultura da língua e da literatura nacional”.

Não ignoro que a Academia exerce outras funções, nem jamais me oporia a isso. Ao contrário: sou, como já disse, assíduo frequentador e admirador de conferências que, tendo lugar aqui, tratam de temas como arte, filosofia, linguística, história, sociologia, educação, direito, questões contemporâneas etc. E não ignoro que Joaquim Nabuco, o primeiro ocupante da cadeira 27, para a qual fui eleito, numa carta a Machado de Assis, ainda no século XIX, afirmava que “deve ter a Academia uma esfera mais alta do que a Literatura exclusivamente literária, para ter maior influência”.

A meu ver, porém, é fundamental “a cultura da língua e da literatura nacional” porque penso que a Academia Brasileira de Letras é, por sua própria natureza, uma instituição que deve ter uma participação ativa e importante na determinação do cânone literário.

Contra o relativismo difuso que vigora em nossos dias, afirmo que existem obras boas e obras ruins, obras insignificantes e obras imortais. Um poeta que acredite que todos os poemas ou todos os textos se equivalem – por exemplo, que tudo é relativo ao gosto da pessoa que julga – não tem por que produzir uma obra nova. Pois bem, o cânone pretende ser o conjunto das obras modelares, exemplares, imortais. Ele será tanto mais perfeito quanto mais perto disso chegar. Ao falar de obras imortais, lembramo-nos de que a própria ideia de imortalidade dos membros da Academia deriva da ideia de que se supõe que alguém seja acadêmico em virtude de já ser responsável por ao menos alguma obra ou feito inesquecível.

O que é um poema imortal? Um poema imortal é um poema cujo valor não depende de fatores externos a ele: um poema, portanto, que vale por si. Como diz o primeiro verso da famosa Ode XXX do livro III das Odes de Horácio, “Exegi monumentum aere perennius”, isto é, “Erigi monumento mais duradouro que o bronze”. Vale a pena lê-la inteira, e vou fazê-lo em português, na tradução de Pedro Braga Falcão:

Erigi monumento mais duradouro que o bronze,

mais alto do que a régia construção das pirâmides

que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo

nem a inumerável série dos anos,

nem a fuga do tempo poderão destruir.

Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte

escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei

no louvor dos vindouros, enquanto o pontífice

com a tácita virgem subir ao Capitólio.

Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,

onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,

que de origem humilde me tornei poderoso,

o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.

Assume o orgulho que o mérito conquistou

e benévola cinge meus cabelos,

Melpómene, com o délfico louro.

Observe-se que, de certo modo, Horácio foi até humilde. Ele diz que crescerá no louvor dos vindouros enquanto o pontífice com a tácita virgem subir ao Capitólio. Ora, ora, o pontíficie subiu com a tácita virgem ao Capitólio somente enquanto durou o Império Romano; já a ode de Horácio e o próprio Horácio continuam a crescer no louvor de pessoas que vivem mais de dois mil e quinhentos anos após a queda do Império Romano. Para mim mesmo, não há poeta maior do que Horácio.

Mas como se estabelece efetivamente um cânone positivo? Para mim, uma descrição adequada foi dada pelo crítico literário norteamericano M.H. Abrams. Em suas palavras:

Em décadas recentes a expressão “cânone literário” passou a denotar — em relação à literatura mundial ou europeia, mas mais comumente em relação a cada literatura nacional — aqueles autores que, por um consenso cumulativo de críticos, eruditos e professores, passaram a ser amplamente reconhecidos como “maiores” e a ter suas obras frequentemente saudadas como “clássicos” literários. As obras literárias de autores canônicos são, em qualquer momento dado, as mais editadas, as mais amplamente discutidas com maior frequência pelos críticos e historiadores literários e — na época presente — as que têm maior probabilidade de ser incluídas em antologias e nas bibliografias de cursos superiores com títulos tais como “Obras-primas universais”, “Os maiores autores ingleses” ou “Grandes escritores americanos”.

 

Um cânone literário positivo não é portanto escolhido por nenhuma instituição particular, mas pelo que o filósofo Karl Popper chamava de “sociedade aberta”. Tal sociedade aberta é composta, aliás, não apenas dos críticos, eruditos e professores de que fala Abrams, mas também por historiadores, estudantes de literatura, jornalistas, o público em geral – e talvez em primeiro lugar – pelos próprios autores. Nesse sentido, tem razão Harold Bloom, quando diz que

A resposta a “quem canonizou Milton?” é, em primeiro lugar, John Milton mesmo, mas, quase em primeiro lugar, os outros poetas fortes, desde seu amigo Andrew Marvell, através de John Dryden, até quase todo poeta crucial do século xviii e do período romântico: Pope, Thomson, Cowper, Collins, Blake, Wordsworth, Coleridge, Byron, Shelley, Keats. Certamente os críticos, dr. Johnson e Hazlitt, contribuíram para a canonização; mas Milton, como Chaucer, Spenser e Shakespeare, antes dele, e como Wordsworth, depois dele, simplesmente sobrepujou a tradição e a subsumiu.

 

O cânone literário positivo, sendo produzido por uma sociedade aberta, é, ele próprio, aberto, expansivo e sempre sujeito a questionamentos, discussões e modificações. Convém ressaltar que o reconhecimento de um cânone não é absolutamente incompatível com a valorização da inovação na literatura. Assim, os movimentos de vanguarda não eram necessariamente contra o cânone. No Brasil, por exemplo, os poetas concretistas reconheciam um cânone poético que, seguindo a terminologia de Ezra Pound, chamavam de “paideuma”, palavra de origem grega que, etimologicamente, significa “aquilo que é matéria de ensino”. Ademais, foram os concretistas Augusto e Haroldo de Campos que, com seu livro ReVisão de Sousândrade, inscreveram Sousândrade, poeta maranhense do século XIX, no cânone brasileiro.

Penso que a importância do cânone está, em primeiro lugar, no fato de que é através dele que sabemos o que é literatura e o que é boa literatura. Não é através de nenhuma definição que sabemos o que é poesia, mas sim através da leitura de poemas e, em primeiro lugar, de poemas que têm sido considerados bons, modelares, clássicos, canônicos pela sociedade aberta de poetas, escritores, teóricos da literatura, críticos, professores, jornalistas, leitores etc.

Sem dúvida, alguém objetará, com toda razão, que os membros de tal sociedade aberta frequentemente discordam sobre o que é bom, modelar, clássico, canônico. No entanto, como observava Kant, a verdade é que, quando alguém declara belo um objeto, crê merecer um consentimento universal. Essa pessoa pretende, mesmo sem possibilidade de demonstrar objetivamente a verdade do juízo estético, obter para ele uma adesão universal. E, de fato, há um extraordinário consenso tendencial em torno da qualidade de determinadas obras: de certo modo, tal consenso pode ser até mais duradouro do que o que vigora em torno da validade de teorias das ciências exatas como as da física. No século XVIII, tomava-se, por exemplo, a física de Newton como definitiva. No século XX, ela foi, sob muitos aspectos, destronada pela Teoria da Relatividade, de Einstein. Ora, no campo da literatura, é quase impensável para nós hoje que algum dia se chegue a abandonar o consenso tendencial em torno da qualidade de obras como Antígona, de Sófocles, ou as Odes de Horácio, ou a Comédia Divina, de Dante, ou Rei Lear, de Shakespeare, ou Fausto, de Goethe, ou As flores do mal, de Baudelaire, ou Mensagem, de Pessoa ou Libertinagem, de Bandeira, ou A rosa do povo, de Drummond, ou A educação pela pedra, do Cabral ou A luta corporal, de Gullar.

Pois bem, a Academia Brasileira de Letras não apenas faz parte da sociedade aberta que elege o cânone, mas, em virtude de sua independência, de sua liberdade, do desprendimento de sua dedicação à cultura, encontra-se em posição privilegiada, em relação a outras instituições, como as ligadas a empreendimentos privados ou ao Estado, para discutir de modo sério, profundo e aberto questões dessa natureza. Em matéria de poesia, por exemplo o que – e de que modo, e a partir de que idade, e em que momento de sua educação – deve uma pessoa ler para realmente conseguir saber e apreciar aquilo que faz de um poema um poema? Que obras devem ser tombadas como patrimônios culturais? Discussões dessa natureza no âmbito da Academia Brasileira de Letras – correspondentes ao primeiro artigo do seu estatuto – certamente terão uma influência benéfica sobre as elaborações dos currículos escolares.

A cadeira que ocuparei aqui será a de número 27. Pois bem, seu primeiro ocupante foi o grande abolicionista Joaquim Nabuco. Mas antes de falar dele, vou recitar o que creio que seja o poema mais famoso de Maciel Monteiro, o médico, orador, diplomata, dandy e poeta, que Nabuco escolheu para ser o patrono da cadeira 27. O poema consiste num soneto intitulado “Formosa”.

Formosa

Formosa, qual pincel em tela fina

Debuxar jamais pôde ou nunca ousara;

Formosa, qual jamais desabrochara

Na primavera rosa purpurina;

 

Formosa, qual se a própria mão divina

Lhe alinhara o contorno e a forma rara;

Formosa, qual jamais no céu brilhara

Astro gentil, estrela peregrina;

 

Formosa, qual se a natureza e a arte,

Dando as mãos em seus dons, em seus lavores

Jamais soube imitar no todo ou parte;

 

Mulher celeste, oh! anjo de primores!

Quem pode ver-te, sem querer amar-te?

Quem pode amar-te, sem morrer de amores?

 

Os dois últimos versos desse soneto,

Quem pode ver-te, sem querer amar-te?

Quem pode amar-te sem morrer de amores?

Ficaram muito populares.

Voltemos ao Joaquim Nabuco. Confesso que me sinto um pouco encabulado de falar de uma figura histórica que já foi objeto de estudos extremamente importantes de notáveis historiadores que pertencem a esta Academia, como Evaldo Cabral de Melo e José Murilo de Carvalho. Cumprindo a tradição, porém, direi algumas palavras sobre Nabuco.

Nabuco foi, como se sabe, um dos nossos mais importantes abolicionistas. Não se tratava para ele, que dizia ter absorvido a escravidão “no leite preto que o amamentara”, de uma questão política abstrata, mas extremamente concreta. E ele previu que a escravidão permaneceria por muito tempo como a característica nacional do Brasil, pois havia corrompido o país. Assim, ele afirmava, com toda razão que

A classe dos que assim vivem com os olhos voltados para a munificência do Governo é extremamente numerosa e diretamente filha da escravidão, porque não consente outra carreira aos brasileiros, havendo abarcado a terra, degradado o trabalho, corrompido o sentimento de altivez pessoal em desprezo por quem trabalha...

Desse modo, segundo ele, o abolicionismo

não reduz a sua missão a promover e conseguir — no mais breve prazo possível — o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra — de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar — da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regímen que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão.

[...]

Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância.

Além de seu entendimento intelectual e político da escravidão, Joaquim Nabuco narra admiravelmente, em alguns textos, a sua experiência pessoal com ela. Assim, por exemplo, no texto “Massangana” (que é o nome do engenho onde ele foi criado), ele diz:

1Estive envolvido na campanha da abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li A cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.

Sobre o segundo ocupante da cadeira 27, Dantas Barreto, tenho bem menos a dizer. Ele também foi pernambucano. Foi militar, tendo lutado na Guerra do Paraguai, e escreveu romances e peças de teatro que confesso não ter lido.

O terceiro ocupante da cadeira 27 foi o gaúcho Gregório da Fonseca. Também militar, ele escreveu ensaios e poemas. Tendo vindo morar no Rio de Janeiro, aproximou-se de Olavo Bilac. Não recitarei nenhum poema dele, mas apenas o interessante trecho inicial de um ensaio intitulado “Estética das batalhas”. É o seguinte:

2Ser artista: produzir uma obra prima; criar com o belo existente o belo que não existe; fixar para sempre um aspecto novo da Beleza que se não repetirá; avançar do seu tempo, do seu século, abrindo largas estradas ao pensamento futuro: para os gregos, era divino; é heroico, na expressão de Carlyle!

O quarto ocupante da cadeira 27 foi Levi Carneiro. Este nasceu em Niterói. Foi um grande advogado, autor de uma obra intitulada Livro de um advogado. Foi também fundador e primeiro presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados Brasileiros.

Já o quinto ocupante da cadeira 27 foi Otávio de Faria, um grande romancista carioca. Na sua obra, A tragédia burguesa, que consiste num ciclo de vários romances, ele apresenta um amplo painel da vida carioca.

Finalmente, o sexto ocupante da cadeira 27 foi o admirável e saudoso intelectual baiano Eduardo Portella. Uma das coisas pelas quais tenho grande admiração pelo Portella é o fato de que ele foi o fundador, em 1962, da revista Tempo Brasileiro, publicação extremamente importante para mim, sobretudo quando estudante, nas décadas de sessenta e setenta. Como muito bem disse Nélida Piñon, “Portella era um grande mestre do pensamento brasileiro que soube, com rara perspicácia, interpretar o fenômeno literário”. Autor de mais de 20 obras de crítica literária e ensaios, Portella se distingue também por ter, através da Tempo Brasileiro, sido um dos principais introdutores, no Brasil, do pensamento de Martin Heidegger e Jürgen Habermas.

Por último, quero fazer uma homenagem a um acadêmico que jamais ocupou a cadeira 27. Trata-se do grande poeta, ensaísta professor e bibliófilo Antonio Carlos Secchin. Penso que é, em primeiro lugar, graças a ele que aqui me encontro. Secchin foi o primeiro acadêmico a incentivar a minha candidatura à Academia. E seu firme apoio durou até a minha eleição. Em consequência de minha admiração pela sua obra, isso me deixou feliz, orgulhoso e confiante. Por essa razão, vou, neste momento, ler, em sua homenagem, um belíssimo e profundo poema de Desdizer, que é seu livro mais recente. O poema se intitula “Autorretrato”.

 

 

Autorretrato

A Flávia Amparo

Um poeta nunca sabe

onde sua voz termina,

se é dele de fato a voz

que no seu nome se assina.

Nem sabe se a vida alheia

é seu pasto de rapina,

ou se o outro é que lhe invade,

numa voragem assassina.

Nenhum poeta conhece

esse motor que maquina

a explosão da coisa escrita

contra a crosta da rotina.

Entender inteiro o poeta

é bem malsinada sina:

quando o supomos em cena,

já vai sumindo na esquina,

entrando na contramão

do que o bom senso lhe ensina.

Por sob a zona da sombra,

navega em meio à neblina.

Sabe que nasce do escuro

a poesia que o ilumina.