A nossa Academia recebe hoje um educador. Não apenas um técnico ou um perito, que, como tal, estivesse confinado ou recluso na sua disciplina. A nossa Academia recebe um educador, no sentido amplo e generoso do termo, recebe Candido Mendes, o depositário fiel de uma paideia. Mas de uma paideia participativa, que se ergue e se afirma para além da postura irreflexa de meros cultores da moda ou do olhar contemplativo de pedagogos solitários.
A figura do intelectual, herdada pela nossa tradição ilustrada, forneceu, em grande parte, o modelo do desempenho escolar que conhecemos. Talvez por isso não conseguiu proteger-se da tentação salvacionista, que se explicita no tom declaratório ou na inclinação recitativa. Os intelectuais passaram a falar de um espaço fantasma, inexistente ou enganador. Entre as premissas e as promessas da Modernidade, eles deixaram que ganhasse volume um sotaque autoritário já hoje inconfundível. Entre as grandes desavenças doutrinárias e a pequenas alianças corporativas, eles se manifestam como os mandatários privilegiados de um saber não menos privilegiado. Mantiveram uma intensa atividade peticionária, que vem conservando, com igual regularidade, desde os primeiros surtos independentistas até a chegada das “patrulhas ideológicas”.
A figura clássica do intelectual foi perdendo presença à medida que avançamos sobre a Modernidade. A Modernidade que o consagrou, sob os auspícios da razão, é a mesma que o destitui, sob o patrocínio da superstição. Talvez a mais ilusória de todas as superstições, que é a superstição gestionária. O “doente imaginário” parece substituído pelo doente gestionário. O mito da gestão, ou da competência puramente operativa, assina a denegação. Em meio à perplexidade e à inércia de um personagem visivelmente desfigurado.
Terá sido o intelectual apenas a vítima sonâmbula de um processo embrutecido? Certamente não. Oscilando entre múltiplos registros – o pensador jubilado, o desempregado do espírito, a relíquia tombada –, o intelectual se deixou surpreender como a vítima coautora da própria ação ou omissão vitimatória. E somente reaparecerá enquanto ator social. Ator social identificado por um traço, que é a sobriedade ou o escândalo da linguagem. Da linguagem criticamente enraizada, “casa do ser humano” (H.-G. Gadamer), lugar de reforço e de desdobramento de solidariedades existentes e possíveis. O desempenho mobilizador de Candido Mendes se inscreve neste quadro.
II
O fundamento católico vem sustentando a sua jornada, sem jamais resvalar em nenhum tipo de fundamentalismo. Preferindo desenvolver uma linha de coerência que vai do “personalismo à conscientização”, e todo abraçado à mais atualizada “mensagem pastoral”, o trabalho de Candido Mendes prossegue a lição de Alceu Amoroso Lima, “a figura exemplar do laicato católico nacional”, conforme se lê em Memento dos Vivos. E que Alceu Amoroso Lima soube, fugindo ao retrato-robô do intelectual beato, conciliar precursoramente oração e mobilização e evitar a disposição tutelar, tão obsessiva nos gestores de consciência. A reconstrução do “humanismo ameaçado”, título de um livro de mestre Alceu passa por uma espécie de ética da discussão. Quando o fundamento sai de dentro de si mesmo para o encontro do outro, quando se abre para a aventura cotidiana, ele se vacina contra qualquer tipo de vírus fundamentalista. Aqui, o confessionalismo adquire um vigor societário inusitado e toma o caminho da pólis.
É a pólis que Candido Mendes visa, desse os dias matinais do ISEB. Mas, a pólis do Deus encarnado, do Cristo, justa e pacífica. A Comissão de Justiça e Paz é a outra vertente, ou o mesmo compromisso, dessa caminhada. A justiça se legitima a partir de um horizonte, de uma construção permanente e infindável. A paz se concretiza mediante a redução das desigualdades ou pela via da dissolução dos focos de violência – objetiva ou simbólica. O debate do desenvolvimento e do meio ambiente se impõem a cada passo. Combinam-se agora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão com a emergente Declaração Universal dos Direitos da Natureza. O processo de sociabilização em curso, cindido na simultaneidade de povo e massa, aponta para a nova formação cidadã. Candido Mendes descreve o que chama “o povo em processo” e, no seu interior, a Cultura popular ultrapassa o que seria um reduto ideológico, sedentário e revanchista. A individualidade recuperada, para além da barreira individualista, traduz um regime de coabitação, no qual o indivíduo social é chamado ao exercício da cidadania ativa.
De nada vale a liberdade da solidão. É preciso partilhar. As singularidades perdidas, mas não de todo desesperançadas, buscam outras modalidades de associação. O desenvolvimento, porque associativo, pluridimensional, guarda vários sentidos. Pensar o desenvolvimento como agente de cidadania, e a cidadania como instância emancipatória, significa predispor-se para um desenlace radical. Necessariamente cultural. Os que alardeiam o desenvolvimento econômico, adiando, deixando para depois, o desenvolvimento cultural, equivocam-se redondamente. As exigências de transformação tornaram-se, cada vez mais, incompatíveis com o vazio intelectual.
Essa compreensão plural do desenvolvimento, Candido Mendes leva adiante, de uma forma sistemática, desde o seu vertiginosamente clássico Nacionalismo e desenvolvimento, sempre identificando, com precisão, os obstáculos à liberdade cidadã. Não uma liberdade individual, que de tão individual, se tornasse individualista. A liberdade, mesmo no contexto das filosofias da consciência, deixava de ser uma propriedade do indivíduo para se erguer como um projeto partilhado, com um enredo e um cenário razoavelmente nítidos, e assim imune à contaminação ideológica. Essa distância ideológica, embora nunca política, e muito menos ética, assegura igualmente o livre trânsito da reflexão e o protege das recaídas subjetivas. Porque a vulgata ideológica, que por tanto tempo interditou as nossas possibilidades de pensar, é provavelmente o derradeiro capítulo, longe de ser o mais brilhante, da metafísica do sujeito.
III
As Ciências Sociais forneceram a Candido Mendes os seus primeiros instrumentos de trabalho. Mas elas trazem – e ele o sabe – o próprio veneno no corpo. Nascidas do que fora a desintegração da Filosofia na sua forma imperial, elas, ou cada uma delas, pouco tardaram em adotar esse imperialismo ancestral. Levaram, ou estão levando, até às últimas consequências, as ambições do saber disciplinar na sua vontade expansionista. Do saber disciplinar, ou especializado, que logo se degradou no poder do perito, e registra hoje um impasse indisfarçável. É quando se confundem os limites da disciplina com o ilimitado do mundo. Tudo indica que a superação dessa dificuldade, ou desse abalo, ou dessa consternação, esteja na combinação interdisciplinar. É justamente no espaço da interdisciplinaridade que Candido Mendes se move, quando reconstitui o traçado arrítmico da Modernidade ou procura ancorar os desenvolvimentos e as ecologias no porto seguro da Ética.
A interdisciplinaridade jamais corresponde à morte da disciplina. Significa mais que tudo um esforço de revitalização. Transpor a grade disciplinar não quer dizer fuga antecipada. É antes uma exigência do saber real, uma vez desencantado, outra vez reencantado, mas sempre acolhido pela vida do mundo. A interdisciplinaridade implica e explica as experiências-limites, numa linha de investigação toda oposta à ilusão das experiências plenas, redondas, conclusivas, que os donatários do idealismo acalentaram até mais não poder, sob o impulso dos filosofemas triunfalistas. As antenas voltadas, ou os olhos abertos para a dinâmica da mudança, deram a Candido Mendes condições de pensar sobre as fronteiras, os interstícios, as margens, os encontros inesperados e inimagináveis. Sou levado a supor que se pode encontrar nele uma bem dosada desconfiança com respeito à noção de modelo enquanto produção ortodoxa da racionalidade, infensa ao conflito, ao risco, ao desequilíbrio ou à festa. A compreensão da linguagem, para além da avareza do sentido, ou da esperteza do texto, indica novo acordo criativo. Que parte do princípio de que toda forma é forma de vida. E avança mais, dizendo: quando a forma deixa de ser forma de vida, ela já não é forma: é fórmula.
Os profissionais da Linguagem são convocados para integrarem uma nova frente hermenêutica capaz de instaurar um lugar ternário e nos facilitar elementos de superação da dicotomia sujeito e objeto, de ultrapassagem da própria estrutura dualista de desafios complexos, como o da alfabetização, por exemplo, por meio dos “jogos de linguagem”. Sem recorrer à leviandade dos eventuais interventores de plantão. Todo profissional conhece, e nenhum estudioso sensato ignora, que a Língua é instrumento de comunicação, mas também, nos seus arranjos e composição, instância programadora de relações interpessoais, ou intersubjetivas, íntegras. O uso instrumental da Língua prefere afastar as ingerências afetivas. E o caso dos dicionários é ilustrativo. Os dicionários não conduzem nem ao pranto, nem ao riso. Nem assim deixam de ter uma serventia indiscutível. Mas estão destituídos de dramaticidade. Por isso, convém distinguir as tarefas e as potencialidades dos conceitos de Língua e Linguagem, numa homenagem reiterada a esse mestre de todos nós, que foi Celso Cunha. A Linguagem é a Língua menos a limitação empírica e mais horizonte do mundo. O livre trabalho da Linguagem nunca deixa de ser um labor tenaz, tanto mais livre quanto mais emancipado da Língua.
No caso de Candido Mendes, inventor de Linguagem desde os seus primeiros artefatos verbais, não seria necessária a prova cabal dos Bilhetes de D. Luciano, bilhetes reconstituídos numa situação-limite e capazes de uma mobilização catártica, de antiga e sempre renovada linhagem. Irrompe no Ocidente socrático, precisamente na Poética de Aristóteles, para dizer da seleção vertical de experiências simultâneas. O texto conduz, com toda força, o frágil fio da vida. Se levamos em conta a sua capacidade não de reter, mas de com-ter, de ter-com, a realidade, de verbalizar situações tensas, na mais extrema fronteira, o texto realiza, pelo toque da Linguagem, a façanha inédita de Lázaro.
Completar ou rever o percurso da Nação, das formas societárias da individualidade, avançar sobre o litígio da transformação, é também o trabalho livre da Linguagem. Implica inevitavelmente uma crítica ao Estado desproporcional e burocratizado, que trapaceia sobre a retórica abusiva do jargão. Porque a burocratização é o jargão da funcionalidade, assim como o jargão é a degradação da Linguagem; e o populismo, a perversão do popular. Convocar a parceria hermenêutica da Linguagem significa habilitar-se para a compreensão de que, nos processos de desenvolvimento – o pré-desenvolvimento saqueado e dependente, o desenvolvimento truncado, a uma só vez arcaico e moderno, o pós-desenvolvimento perplexo, estranhamente mecânico e não raro regressivo – persistem ações e impulsos religiosos, mágicos, míticos, que estão cravados no fundo do imaginário coletivo. E que podem decidir a sorte tanto da noção de nação, quanto do que se vem chamando de cidadania planetária. Como perceber todo esse mistério sem recorrer ao silêncio da Linguagem?
Esse dissídio frutuoso entre a sociedade nacional e a convivência internacional nos tem unido, a Candido Mendes e a mim, desde os idos do Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos até a jornada atual, e igualmente comum, da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. No primeiro caso, uma utopia mais crédula, sem a filtragem severa dos anos 1980, que Willy Brandt designou oportunamente de “a década perdida”. No segundo caso, a esperança militante, a aposta cotidiana, infatigável, nos possíveis da cooperação mundial. Todo um percurso com algumas escalas não menos significativas: das tentativas de reaglutinação política pós-1964, no endereço de Alfredo Marques Vianna, à extraordinária expedição normativo-cultural, comandada por mestre Afonso Arinos e que Candido Mendes batizou, com criatividade e humor correspondente, “a intentona do Hotel Glória”. Aí nos reunimos a Miguel Reale, Barbosa Lima Sobrinho, Evaristo de Moraes Filho, Padre Ávila, Paulo Brossard, Bernardo Cabral, Helio Jaguaribe, Alberto Venancio Filho, e tantos outros companheiros admiráveis, para sonharmos juntos o sonho de uma Constituição de liberdade. De resto, um sonho amplamente realizado enquanto construção crítica enraizada e estranhamente malogrado enquanto consequência institucional.
V
Há em todos os instantes de Candido Mendes uma persistente confiança na política, que parece contrapor-se ao descrédito generalizado que cerca tudo o que se apresenta como político. Mas o que se apresenta como político não chega a ser necessariamente a Política. Quando a Política se confunde com o desaparecimento da iniciativa individual, socialmente plantada, ela se contradiz. Quando a Política se reduz a uma mera técnica rudimentar e imediatista, ela se nega. Quando a Política passa a ver na Ética um fator de diminuição da velocidade ou de perturbação do rendimento, ela se extravia. Quando a Política renega o velho “sentimento trágico da vida”, para entrar, de corpo, porém, sem alma, no cenário da pequena comédia, ela apenas reaparece como farsa.
Os simulacros ou os desvios da Política não devem responder pela Política. O que falta à Política é Política. E o compromisso da pólis, levado a efeito por antigos e novos atores sociais, em meio às chances e aos riscos da Democracia. Por isso, Candido Mendes acredita na Política como ação-reflexão, eticamente orientada. Os discursos da ação, de tão fechadamente ativistas, tornaram-se sedentários. Perderam o matiz, sem ganhar a objetividade. A atitude unicamente prática é uma atitude conforme – logo, conformista. A reflexão proscrita, pela ilusão gestionária, teria de inverter a ordem de uma tese famosa e afirmar: até aqui mudamos o mundo, agora cumpre pensá-lo. Nesta hora, a conhecida oposição entre a “comunidade de sábios” e a “comunidade de cidadãos” se enfraqueceria ou mesmo desapareceria. E o papel de Candido Mendes ficaria pelo menos mais explícito.
Com esse tear, hoje incerto, ainda é possível tecer a esperança. E para concluir com as palavras timbradas de Candido Mendes, “deixar de ser reféns do medo da esperança”.
Acadêmico Candido Mendes:
a Casa de Machado de Assis é, por todas as razões e afeições, a sua Casa.
12/9/1990