Senhor José Honório Rodrigues,
Parece-me ainda ouvir as últimas palavras de vosso discurso: “Porventura não é maior quem está à mesa? Eu, porém, entre vós – acabastes mesmo de dizer – sou como aquele que serve.”
Custa-nos um pouco relembrar, neste ambiente de festas, com todos esses dourados, o momento em que essas palavras foram pronunciadas. Mas não esqueçamos que, quem as disse foi o próprio Cristo, servindo aos apóstolos a ceia da Eucaristia.
Deixemos, pois, de lado o burel de franciscano. Sois bastante afirmativo para que nos contentemos com a letra de São Lucas. Tanto mais quando os 33 votos que obtivestes, numa das belas consagrações já registradas nesta Academia, foram homenagem à vossa bravura de combatente, à intrepidez desinteressada dos vossos pronunciamentos e ao mérito de uma obra de Cultura, rara em nosso País e até mesmo em vossa idade, não obstante os cabelos brancos com que vos disfarçastes, pois que os ostentais desde os 40 anos. Nem me parece que as academias, por mais comportadas que possam ou pretendam ser, aceitem de boa vontade uma tarefa de concordância e de assentimento. Não vejo por que não se ajustarão a atitudes de renovação, a palavra de rebeldia, atentas às vozes inumeráveis, que procuram interpretar e traduzir as aspirações das novas correntes do pensamento brasileiro. Sempre me pareceu que, para essa tarefa, as academias são mais úteis, e mais acessíveis do que os grupos literários, até mesmo pelo desencontro das tendências com que se foram constituindo, estranhas e indiferentes a definições e a preocupações sectárias.
O próprio Graça Aranha, quando vivia a sua fase de lua-de-mel com a Academia, que o elegera sem livros publicados, confiada, apenas, na sua estuante vocação literária, dissera, no discurso com que recebera Sousa Bandeira, que a Academia tinha horror aos princípios, “principalmente aqueles que a privem de liberdade”, reportando-se à liberdade das eleições e à ausência de qualquer limitação na substituição dos escritores. E observava então, com aquela agudeza de espírito que nunca lhe faltou, que a “Academia somos todos nós, a incoerência de sua própria existência, o desencanto de nossas ilusões individuais, a divergência de nossas ideias, o absoluto de cada um formando o relativo de todos. “A verdade”, concluía ele, “são quarenta bocas que se contradizem.”
Que se contradizem e discutem. Cada qual mais cioso de si mesmo e de suas convicções. Mas não tenhais receio desse panorama. Nem vos estimuleis demasiadamente com ele. Longe de mim a idéia de vos apresentar a Academia como um tablado de luta livre. Embora já tivéssemos tido – e vede como a Academia é caprichosa e irregular – o que eu chamaria a nossa fase de grandeza, com os dois eminentes contendores, que davam por empatado o seu prélio antigo, quando sentiram a inutilidade de seus esforços, pois que haviam perdido sentido os gestos de provocação e as palavras injuriosas, que um não chegava a ver e o outro não podia ouvir. Mas isso já passou e eram manifestações de temperamentos insofridos e não costume ou necessidade da Academia. Se é que os adversários não agiam apenas com o desejo íntimo de se divertirem. Mesmo quando já se torna difícil fazer o cálculo da própria idade, custa sacrificar as exigências e o alvoroço da mocidade.
Não há, pois, que abandonar posições definidas. Basta não criar obstáculos a uma convivência, que vai durar toda a vida e que será, de certo, agradável, quando as outras atividades forem cessando e reste apenas esta, a do gosto pelas Letras ou a do interesse pela Cultura. Mais que o nível de educação individual, influirá a vitaliciedade das investiduras. Enquanto a prezarmos e a quisermos conservar, iremos esquecendo o mal-estar de alguma eleição, as palavras que talvez não tenham sido felizes, os mil e um agravos de uma convivência, que acaba sendo quotidiana. Apesar de tudo, não há aqui lugar para o palavrão, que já pagamos para ouvir nos teatros, quando aconteça que ele não nos surpreenda na vozinha infantil de nossos netos. Na verdade, são 40 bocas que se contradizem com energia, difíceis de coordenar nas votações, quando escasseiam os denominadores comuns de entendimento ou se tornem eles difíceis de perceber ou de adivinhar. Quarenta bocas que se contradizem, mas que, na verdade, se estimam.
Não vos faltará oportunidade para essa experiência. Não raro tereis dúvida quanto à atitude que deveis tomar, se a da conformidade, se a da revolta. O essencial, dir-vos-ei, é não se conformar. Mas também não esquecer que o vínculo que acaba de vos ser imposto, é um vínculo indissolúvel.
Carlos de Laet gostava de falar nos filtros acadêmicos, que ele chamava “triaga”, um específico antigo contra mordeduras venenosas. Eu recomendaria antes beberagens, que contivessem doses maciças de tolerância. Porque há que admitir aqui a verdade de cada um, de que falava Pirandello. E quando todos esses recursos viessem a falhar, não nos faltariam ainda tradições alentadoras. Como a tradição que nos ficou da Cadeira 35, a Cadeira que os dois Rodrigo Octavio dignificaram.
OS DOIS RODRIGO OCTAVIO
De Rodrigo Octavio Filho vos direi que me impressionou sempre a circunstância, de que ele não houvesse pleiteado, ainda em vida do pai, alguma das vagas que se iam verificando na Academia. Vivera intensamente a fase simbolista no Brasil, ao lado de mestres e companheiros como Mário Pederneiras, Felipe de Oliveira e Álvaro Moreyra. Militara num grupo inovador e atuante, como havia sido a revista Fon-Fon, quando as sílabas onomatopaicas da buzina dos automóveis pareciam, por si só, nas Letras Nacionais, uma convocação subversiva, mais adiante renovada pelo periódico Klaxon. Notemos que o livro de poemas de Rodrigo Octavio Filho, Alameda Noturna, aparecera em 1922. Velhos Amigos, outro livro de estudos literários, surgira também em vida do velho Rodrigo Octavio, sem falar em numerosas conferências, que iam assinalando a presença do moço Rodrigo Octavio nas Letras brasileiras.
Suponho, e já ouvi impressões nesse sentido, que havia uma espécie de entendimento entre os dois Rodrigo Octavio, a fim de que o filho se guardasse para a própria Cadeira do velho Rodrigo Octavio. O que poderia parecer constrangedor, com a espera de uma vaga que só se abriria com a morte do próprio pai do candidato. Mas não custamos a compreender que nunca houve aspirante mais interessado no adiamento da sucessão. E ao velho Rodrigo Octavio sorriria a ideia de vir a ser substituído pelo próprio filho. Pude assim acreditar que, se derrotado no pleito a que se apresentou, para a vaga de Rodrigo Octavio, o filho teria desistido da Academia. Não que a menosprezasse. Mas o atrativo da sucessão paterna era, para ele, uma razão mais poderosa que o próprio ingresso na Academia.
Fomos compreendendo melhor esses sentimentos durante os 24 anos em que aqui tivemos a companhia de Rodrigo Octavio Filho. E já ia dizendo a companhia “gentil”, colhido quase de surpresa por um adjetivo insinuante. Porque embora Rodrigo Octavio Filho fizesse questão de relacionar o que ele chamava “as provas” de sua idade, como o nascimento do bisneto e as operações a que o tempo o condenara, sobretudo a de catarata, que tanto o fez sofrer (não obstante sua heroica resignação), a verdade é que ele nunca perdeu a graça física da mocidade, na elegância aprumada e viril. Como também não abriu mão de um otimismo tranquilo, de um sorriso acolhedor, de um ar prazenteiro, que era o segredo de sua simpatia, se não esquecermos a indulgência de seus julgamentos e a ausência de qualquer maledicência – virtude rara, até mesmo surpreendente, numa sociedade de homens de letras.
Há exemplos de dedicação filial em outras instituições culturais. Na Academia Francesa, por exemplo, cita-se o caso de Henri Houssaye que, eleito em 1894, não pôde deixar de exprobrar a atitude dos companheiros, que não haviam feito justiça a seu pai, Arsène Houssaye, que também merecera a Academia. Mas Arsène Houssaye publicara uma sátira difícil de esquecer ou de perdoar, a Histoire du quarante-et-unième Fauteuil de l’Academie, a relação dos nomes ilustres que haviam ficado à margem da láurea acadêmica. De qualquer forma, era uma cena comovedora, o filho a protestar, na tribuna acadêmica, contra a injustiça que o pai sofrera, e Arsène Houssaye, já octogenário, presente à recepção do filho e, provavelmente, mais agradecido à Academia do que se houvesse sido ele próprio o escolhido.
Aqui, na Academia Brasileira, o sentimento filial pôde se expandir sem agravos e sem ressentimentos. A eleição do filho completou o quadro das afeições, dando a impressão de uma continuação sorridente e tranquila do próprio fundador da Cadeira.
Quando me defronto à bibliografia dos dois Rodrigo Octavio, o que me chama a atenção é a presença dos mesmos temas ou dos mesmos assuntos. Os estudos de Rodrigo Octavio Filho, em Figuras do Império e da República, focalizavam o Marquês de Barbacena, Osório, Tavares Bastos, Prudente de Moraes, Ubaldino do Amaral, que estavam relacionados, de alguma forma, com a vida do velho Rodrigo Octavio. O Visconde de Barbacena, filho do Marquês, havia sido cliente de seu escritório de advogado e o próprio Rodrigo Octavio escrevera, quase como obra de causídico, o Felisberto Caldeira, o contratador de diamantes, para desagravo de toda a família. Osório fora um ídolo do Partido Liberal, a que se vinculavam os ascendentes do velho Rodrigo Octavio. Prudente de Moraes, como Tavares Bastos, já figurava no livro de memórias de Rodrigo Octavio, Coração Aberto. Ubaldino do Amaral havia sido seu companheiro de escritório.
Até mesmo no estudo da Constituinte de 1823, encontraremos pai e filho reunidos, o primeiro no Congresso Nacional de História de 1914, o segundo no Congresso Nacional de História de 1931. Não se limita Rodrigo Octavio Filho a citar a monografia do pai: identifica-se com suas teses. Defende a primeira assembleia brasileira contra a prepotência de Pedro I. Exalta os Andradas perseguidos e deportados, tratados, aliás, de anarquistas para baixo, nas proclamações incendiárias do Imperador.
Assinalastes, com a proficiência de um historiador, a vocação liberal da Cadeira que viestes ocupar em nossa companhia. Eu gostaria de acrescentar, a esse quadro, a satisfação que os dois Rodrigo Octavio não ocultavam: a de pertencerem a esta Casa. A vida exigiu deles outras tarefas, de que não souberam ou não puderam fugir. Mas percebia-se que só se sentiam realizados nesta Academia. Não estava em erro Rodrigo Octavio Filho, quando descrevia o pai como um poeta, que continuasse até o último alento “sensível, triste, imaginativo, claro no estilo e elevado no pensamento, a conversar de vez em quando com a sua Poesia, a Poesia que nascera com ele”. Les Raphsodies provavam essa afeição, publicadas quando o velho Rodrigo Octavio já havia ultrapassado os setenta anos de uma vida, quase toda consumida em outras tarefas, exigentes e exaustivas.
De Rodrigo Octavio Filho se poderia dizer a mesma coisa: sentia-se um exilado, fora das Letras e dos assuntos literários. As recordações que o fascinavam eram as da mocidade, quando vivera em companhia de amigos, no culto de Rodemback, que o atraíra a ele e a Olegário Mariano – mas Olegário Mariano se conservara fiel até o fim e Rodrigo Octavio Filho não pudera resistir às atividades dispersivas, que o foram assediando. A Academia fora, para ele, uma espécie de Shangrilá, o seu enlevo e a sua glória.
Graças a Rodrigo Octavio Filho, a Cadeira 35 foi a que conservou por mais tempo a memória, e eu quase diria a presença do fundador. A amizade acabou superando a longevidade do fundador que mais viveu e que foi o nosso companheiro Magalhães de Azeredo. Nem se pode separar agora os dois ocupantes da Cadeira 35, quando ambos concorreram para a formação de seu patrimônio. Porque não chegou a haver um caso de herança ou de sucessão: foi antes um caso de integração. Gostaria, por isso, de vos proclamar o segundo ocupante da Cadeira 35, reunindo numa só pessoa os dois Rodrigo Octavio. O mais belo florão das amizades terrenas emoldura a vossa Cadeira. Não sei se devemos exaltar o pai que inspirou tal devotamento ou o filho, que fez dessa devoção um objetivo que mais parecia um culto ou uma religião.
Essa a sucessão que recolheis, Sr. José Honório. Fostes discípulo de um e amigo do outro. Sabeis avaliar bem o que vale a vossa Cadeira, sobretudo quando imaginais que a afeição, que ela inspirou a Rodrigo Octavio Filho, sabia guardar-se num escrúpulo de sobriedade e discrição, que ainda mais a engrandecia.
NÃO É BEM UMA CADEIRA DE HISTORIADOR
Não é bem uma Cadeira de historiador a Cadeira 35. Nem há aqui cadeiras cativas para qualquer gênero literário. Tudo depende do acaso ou das pressões eleitorais. Mas Literatura e História se entendem bem. Basta recordar que, para os antigos, compunham a mesma família das Musas, com a Literatura, a História, a Tragédia, a Elegia, a Poesia lírica, misturadas ou convivendo com a Dança, a Música e até a Astronomia, que ainda não começara a aprender as Matemáticas. Clio acumulava a História com a Poesia Épica, para o louvor de guerreiros que ainda não se resignavam com a burocracia dos Estados-Maiores. Depois, a Epopéia ficou de lado e os historiadores compensaram a união antiga, exagerando a descrição das guerras e a influência dos reis e dos governos. Mesmo assim, tiveram acesso fácil nas corporações literárias. Não há, talvez, um só fauteuil da Academia Francesa, que não tenha servido, em algum momento, para a exaltação de historiadores como Lavisse, Julian, Hanotaux, Masson, Bainville, Grousset e muitos, muitos outros.
Nem sois apenas um historiador, Sr. José Honório. Escreveis bem, com uma precisão e energia de bom quilate, em períodos claros e concisos, que não se embaraçam com as sutilezas da Filosofia, nem se assustam com as exigências de uma conceituação exata. Mas o que na verdade vos caracteriza é que não ficais no entusiasmo, mais ou menos vago, das vocações correntes. O que sentis, o que manifestais, é uma paixão obsessiva pela História, que de tal modo vos absorve, que não sei se não sonhais com ela. Receio muito que os vossos pesadelos incluam a presença hierática de Varnhagen ou o riso escarninho de Capistrano de Abreu.
Será que D. Lêda Boechat Rodrigues, vossa ilustre companheira, não chegou a ter ciúmes dessa outra paixão absorvente de vossa vida? O certo é que tivestes uma boa inspiração, conseguindo que se inoculasse, também nela, o vírus que vos havia invadido. A História se tornou assim, em vossa casa, uma divindade familiar, o que vos garantia uma harmonia perfeita e até mesmo, o que já parecia difícil, um ambiente de idílio em torno de assuntos graves e sérios. Há namorados que precisam de poetas e buscam inspiração em expansões alheias. Vós vos contentais com alguns nomes severos, Ranke, Burckhardt, Henri Pirene...
Ganhastes, assim, uma colaboradora de todas as horas, dotada de um espírito crítico minucioso e avisado, exercitado nos critérios da Heurística, como o está mostrando nos volumes já publicados sobre a história de nosso tempo, através da vida e da presença do Supremo Tribunal Federal. Obra executada com uma proficiência incomum e uma personalidade inconfundível. O que acabou aumentando vossas responsabilidades, quando a crítica se instalou assim em vossa casa, com um jeito afetuoso, que não lhe dissimula a profundeza nem o acerto dos reparos. De tal modo se identificaram os vossos espíritos, nessa tarefa, e tão profunda é a vossa comunhão afetiva, que tenho até receio de falar em crítica. Não tereis descoberto, dessa forma, uma nova modalidade de autocrítica?
Não sei bem como e quando se manifestou essa vocação de historiador. Duvido que houvesse necessidade de algum teste. Ou a presença de influências ecológicas, tão famosas quanto desencontradas. Sabemos, por exemplo, que os historiadores brasileiros de maior renome eram, quase sempre, filhos de outros Estados. E não parecia provável o advento de um carioca, num Estado em que mal os conseguimos distinguir, entre os mineiros, pernambucanos e gaúchos que o habitam e o governam. Mas desafiastes todos esses obstáculos, com uma circunstância inesperada. É que estais ligado aos primeiros povoadores da cidade, com atestado e tudo, e a firma idônea do presidente do Colégio Brasileiro de Genealogia, o engenheiro Carlos Rheingantz. Porque descendeis de André Vilalobos da Silveira, açoreano, que viera para o Rio, em companhia da esposa, antes de 1600 e a que estais ligado por intermédio dos Teles Barreto de Menezes, e de uma famosa gleba de Jacarepaguá. Aspectos a que não pode ser indiferente um historiador, que pode avaliar bem o que representam esses vínculos, velhos de mais de quatro séculos.
Não sei até que ponto essa antiguidade concorreu para a formação do historiador. Sei que por essa, ou por outra qualquer razão, a vossa vocação se foi aos poucos definindo. Tudo fácil, natural, espontâneo, como se houvesse até mesmo um sinal de predestinação. Mas também ainda sem uma consistência mais profunda, sem uma definição inapelável. Até que um dia encontrastes um homem chamado William Berrien, professor da Universidade de Harvard e que aqui viera com a missão de ajudar a publicação de guias bibliográficos, indispensáveis aos estudantes brasileiros. Deve-se ao trabalho que ele então executou a publicação, em colaboração com Rubens Borba de Morais e Francisco de Assis Barbosa, do Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, instrumento indispensável de orientação e de crítica. William Berrien levou mais longe a sua tarefa: observou alguns jovens brasileiros e designou três deles para bolsistas em universidades norte-americanas. A fim de que se possa verificar o “olho clínico” desse selecionador experiente, recordemos que um dos escolhidos foi Joaquim Matoso Câmara, que dentro em pouco se assinalaria no primeiro plano da Filologia Brasileira. O outro foi José do Prado Valadares, autoridade em assuntos de museus e arquivos, a serviço da Universidade da Bahia. Bem, o terceiro... O terceiro “foi aquele a quem Tereza deu a mão”, e eu teria dito isso cantando, se tivesse alguma voz e não corresse o risco de que não chegásseis a perceber a minha intenção musical.
Já havieis publicado, em 1940, com Joaquim Ribeiro, o livro Civilização Holandesa no Brasil, primeiro Prêmio de Erudição nesta Academia de Letras. Mas foi depois disso que estivestes nos Estados Unidos e conhecestes os Departamentos de História de algumas excelentes universidades. Acompanhastes cursos memoráveis como os de Jacques Barzum, mestre de pesquisas, Henry Steele Commager, especializado em História dos Estados Unidos, Allan Nevins, estudioso de temas políticos, Frank Tannenbaum, dedicado a questões da América Latina, L. Thorndike, autoridade em História Medieval, Westermann, professor de História Antiga, sem falar no professor Cole, que ensinava Metodologia e História Econômica e Social. A convivência, os trabalhos de seminário, a conversa extraescolar com os professores, as pesquisas nas bibliotecas, facilitadas por uma organização bibliográfica prática e eficiente, encontraram de vossa parte uma receptividade entusiástica. Ganhastes, por assim dizer, uma nova consciência científica em centros universitários responsáveis.
UM PROFESSOR DE HOLANDÊS
Conhecestes, então, um professor de Língua e Literatura Holandesa, que ia ter um papel importante em vossa formação profissional. Chamava-se A. J. Barnouw e ensinava na Universidade de Colúmbia. Ofereceu-se para vos ensinar o idioma holandês, num curso que continuaríeis depois com Frei Agostinho Keisers, aqui no Rio, no convento dos capuchinhos da Lapa. Um dia, o professor Barnouw viu em vossas mãos um pequeno jornal redigido em língua portuguesa, editado numa colônia de pescadores lusos do Massachusetts. Pediu-vos o jornal, adiantando que nunca havia tido um texto em português diante dos olhos e começou a ler, quase correntemente. De repente, estacou. Havia uma palavra que não conseguia entender, a palavra “bezerro”. Surpreendido com a facilidade da leitura, ficastes à espera de uma explicação, que o professor vos deu de imediato. Estudara Latim nove anos, intensamente, e por isso não encontrava dificuldades no texto em Português. Se houvesse lido Camões, poderia ter recordado que a Língua Portuguesa, “quando imagina, com pouca corrupção crê que é a latina”. O obstáculo em que ele estacara, Matoso Câmara vos explicaria depois. “Bezerro” era palavra basca. Quando muito, poderia ter-se incorporado ao Latim bárbaro da Península Ibérica. Estava, pois, salvo o admirável curso de Latim do professor Barnouw.
Quem vos acompanha desde essa fase, Sr. José Honório, verifica a admirável coordenação de vossos estudos. Vossa preparação torna-se sistemática, dentro de uma ordenação de conhecimentos e de documentação. Segui vossas pesquisas em torno da história do açúcar, na autarquia, a que vos havia levado vosso amigo Miguel Costa Filho. Acompanhei a publicação de vossa magnífica Historiografia e Bibliografia do Domínio Holandês do Brasil, dedicado ao vosso professor de Holandês da Universidade de Colúmbia, o professor Barnouw. Já nesse volume, aproveitáveis as pesquisas feitas em algumas das mais importantes bibliotecas dos Estados Unidos. E começáveis a dizer, no prefácio do livro, o que ia ser uma constante em vossas obras, que a lista de agradecimentos “nunca estaria completa, se nela não confessasse que o maior apoio e principal ajuda veio de minha mulher, a quem cabe imensa parte deste livro”.
Por isso mesmo que já sabeis o que era o obstáculo da escassez de bibliografias, publicastes, por intermédio do Instituto Pan-Americano de Geografia e História, dois livros excelentes, a Historiografia del Brasil – Siglo XVI e Historiografia del Brasil – Siglo XVII. Divulgastes, em seguida, os volumes de índices anotados da Revista do Instituto do Ceará e da Revista do Instituto Arqueológico de Pernambuco. Ainda no vosso ativo de divulgador, devemos incluir os 39 volumes dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, iniciados no governo de Washington Luís e completados com os volumes excelentes, com que se esclarece a História da Revolução Pernambucana de 1817. Não seria possível omitir, nessa relação, o esforço imenso, para reunir e publicar os três volumes da Correspondência de Capistrano de Abreu, o Catálogo da Coleção Visconde do Rio Branco, as edições críticas de Nieuhof e os Capítulos de História Colonial. Ao contrário de Melo Morais, que queimava os documentos que ia publicando, para que ninguém mais os pudesse encontrar, procurastes tornar mais fácil a tarefa dos epígonos, numa benemerência quase de escoteirismo.
TEORIA DA HISTÓRIA DO BRASIL
Aqui, Sr. José Honório, vamos caminhando para as vossas obras fundamentais. A começar pela vossa Teoria da História do Brasil, já em terceira edição. O professor Oliveira França, da Universidade de São Paulo, observou que “ninguém ainda no Brasil dispôs de tão copiosa bibliografia especializada”. Vosso amigo, o Professor Iglésias, da Universidade de Belo Horizonte, viu no vosso livro um sinal de que já havíamos “chegado à maturidade que caracteriza alguns centros universitários”. O professor Charles Nowell, da Universidade de Illinois, considerou vosso livro, não apenas uma introdução ao método histórico, como também um guia bibliográfico, destinado aos estudantes brasileiros de nível superior. Damião Peres, o mestre português, acha que o vosso livro é a “primeira publicação de seu gênero em Língua Portuguesa”. E a esses louvores vieram juntar-se outros. Sabeis o que me parece mais significativo? O do nosso companheiro Afonso de Taunay, o trabalhador infatigável, que depois de haver publicado os 11 volumes da História das Bandeiras e os 14 volumes da História do Café, ainda se considerava “assombrado” com o esforço que o vosso trabalho vos havia custado.
E eram homens familiarizados com as obras de circulação universal. Mas acrescentáveis a todas elas, não apenas a formação bibliográfica excelente, uma metodologia esclarecedora, como uma filosofia da História documentada e segura, dando sempre uma palavra informativa, mesmo em face de trabalhos recentes. Só o que não compreendo é que a vossa obra seja de um outsider e não de um professor de Metodologia Histórica em alguma de nossas universidades. Mas sabemos que no Brasil as cousas são assim mesmo. Supristes, na verdade, os títulos universitários com o mérito de vossos trabalhos.
Depois da Teoria da História do Brasil, tendes uma série de monografias notáveis, como História e Historiadores do Brasil, Vida e História, O Continente do Rio Grande e Notícia de Vária História, em que se contém o vosso magnífico ensaio a respeito do livro em que Max Weber estuda a influência da Ética Protestante no desenvolvimento do Capitalismo. Uma das obras dessa fase, A Pesquisa Histórica no Brasil, acaba de ser refundida e ampliada numa nova edição, de certa forma complementar de vossa Teoria da História do Brasil, para servir de fundamento a um de vossos pleitos mais ardentes, qual seja o da criação do Instituto Nacional de Pesquisa Histórica, a exemplo de instituições, que encontrastes em alguns países mais avançados, no domínio da Cultura Histórica.
Mas o que desejo realçar são os vossos livros da última fase, aqueles em que se sente a presença do scholar, no retrato famoso que dele Emerson nos deixou, descrevendo-o como servidor, e mestre, de uma universidade sem fronteiras. Refiro-me aos vossos livros África e Brasil, 1961, Aspirações Nacionais, 1962, Conciliação e Reforma no Brasil, 1965, Interesse Nacional e Política Externa, 1966. Obras realmente notáveis, sobretudo quando definis os deveres do Brasil em face de um Colonialismo, de que há mais de um século nos libertamos, ou acreditamos nos libertar.
Seria agradável, para mim, deter-me em todos eles, até mesmo para que sentíssemos os pontos de convergência e de discordância. Acho, às vezes, permiti que o diga, alguma cousa, não direi bem de radicalismo, mas de categórico, em algumas de vossas afirmações. Uma certeza que não deixa margem para uma dúvida discreta e receosa. Não vos diria isso por escrito, pois que também gosto de admitir, e de justificar, diferenças de temperamento e de idade.
O CASO DE TAVARES BASTOS
Vede o caso de Tavares Bastos. Vosso elogio não poderia ter sido mais caloroso. E quando penso que a vida de Tavares Bastos se encerrou aos 36 anos, não sei como recusar o vosso entusiasmo, e a vossa intenção de afastar restrições que pudessem atingir um de nossos mais vibrantes apóstolos da liberdade, num país que tanto precisa deles. Mas acabo voltando aos meus pendores íntimos. Não me considero excessivamente severo, mas gosto das igrejas com poucos altares. E Tavares Bastos defendia não apenas as liberdades políticas, em que todos estamos de acordo, como a liberdade econômica, que então compendiava os interesses da Inglaterra, da Inglaterra pela qual Tavares Bastos manifestava um entusiasmo “frenético”, são expressões dele, que acabais de recordar. Em consequência da campanha que ele sustentou, acabou-se com a nacionalização da cabotagem no Brasil, e não era possível concorrer, em igualdade de condições, com a marinha mercante de uma nação, que obtinha o carvão de Cardiff por um preço na verdade inacessível a todos os países concorrentes.
Em poucos anos, revelaram-se desastrosos os resultados da medida – o “malogro” de que falastes. E de tal maneira se patentearam esses inconvenientes, que a Constituinte Republicana se apressou a incluir, no texto da própria Constituição, a nacionalização da cabotagem, que não deveria ter sido suprimida. Foram oficiais de nossa Marinha de Guerra que sustentaram essa causa na Constituinte, para a defesa de nossa marinha mercante. Não se ignorava, aliás, que na Inglaterra a expansão de sua marinha se baseara em leis protetoras, que vinham de Ricardo II, em pleno século XIV.
Tavares Bastos falava, também, na ausência de uma tradição marítima no Brasil, sem chegar a ver que era uma consequência da impossibilidade de possuir marinhas mercantes. Não sei o que agora poderia ele dizer, se pudesse ter lido as Palavras ao Mar, de Vicente de Carvalho, a Literatura marinhista de Virgílio Várzea, as tradições dos jangadeiros do Nordeste ou dos pescadores de Dorival Caymmi.
O HISTORIADOR PARTICIPANTE
Mas são reparos por alto, que não atingem vossos livros, pois que não afetam o mérito intrínseco das teses que sustentais. E os livros a que me referi, por mais que meçamos os adjetivos, revelam um grande pensador político. Até mesmo porque a História já se transformou em vossas mãos. De um espectador mais ou menos indiferente ou distante, passais a uma atitude participante, que complementa vossa concepção historiográfica.
Esses livros da nova fase, mais que a Teoria da História do Brasil, vão interessando profundamente os especialistas estrangeiros, pela soma de originalidade e de personalidade que revelam. O Brasil e África foi traduzido para o Inglês sob os auspícios da Universidade da Califórnia. A Universidade do Texas promoveu a edição de As Aspirações Nacionais. O livro sobre a África teve o prefácio de Allan Manchester, com um estudo a vosso respeito à altura da proficiência do melhor historiador da preeminência inglesa no Brasil. Bradford Burns apresenta, com o entusiasmo ardente de sua juventude extrovertida, o volume sobre As Aspirações Nacionais. E o número de comentadores estrangeiros cresce, dia a dia. Na Inglaterra, o Instituto de Pesquisa Histórica vos convidou para um almoço honrado com a presença de algumas das grandes figuras da historiografia inglesa: J.G. Edwards, presidente do Instituto e mais Arnold Toynbee, Charles Boxer, Charles Webster, Robin Humphreys e J. Passant. Nosso brilhante patrício, Artur José Poerner, que se encontra na Inglaterra, surpreende-se com a extensão de vossa notoriedade nos meios universitários de Oxford. E o registro bibliográfico de vossas obras tem assinaturas prestigiosas, como as de Raymond Carr, da Universidade de Oxford, e de estudiosos como Richard A. Mazzara, Henry Bernstein, James Duffy, Roger Ausley. Na Revista de História da América, os críticos vos colocam ao lado de Varnhagen e de Capistrano de Abreu. E a Histoire Universelle, edição de La Pléiade, dirigida por R. Grousset e E. G. Léonard, proclama o vosso mérito como “excelente historiador”.
Vossa orientação e vossa doutrina, defendida em diversos livros e estudos, foram sintetizadas no capítulo primeiro de História e Historiadores do Brasil, sob o título A Historiografia Brasileira e o Atual Processo Histórico, assim como em alguns itens da Teoria da História do Brasil.
Na vossa concepção, a história se reescreve a todos os instantes, sob critérios que são impostos pelas condições atuais e não pelos interesses e preocupações do passado. Com Dilthey e Rickert aceitais a diferenciação fundamental entre Ciência Natural e Ciência Cultural. Mas com Troeltsch, Meinecke e Benedetto Croce, vos incorporais ao Historicismo – o Historicismo que, no entender de Croce, é o próprio Humanismo.
A essa conclusão se prendem vários corolários. Como o de que a História é irreversível. O de que a História ajuda a compreender o presente. O de que ela é dos vivos e não dos mortos, pois que se liga mais ao presente ou às necessidades do presente do que às próprias limitações do passado. O que vale dizer que a História é sempre inseparável do historiador, com o que se abre campo ao seu subjetivismo e, consequentemente, ao seu idealismo. Para que através desses processos se alcance a superação do passado, numa espécie de catarse, com a purgação e a purificação por meio do conhecimento histórico. Valéry ironizava: “Nous entrons dans l’avenir à reculons.” Por que não ficar de olhos fitos no futuro? Exorcizando todas as manifestações e processos de alienação? Uma História que nos libertasse do passado, mas que nos preparasse para o futuro. Catarse e sublimação.
Mas o Historicismo não é filosofia de fácil circulação. O transcendente não desiste de suas interrogações teimosas, a que o próprio Croce procurava fugir, falando num “Historicismo absoluto”. Mas dissolver o incognoscível spencereano no Historicismo, não seria uma solução. Pareceria antes uma evasiva. Não será o Historicismo, em grande parte, uma filosofia de e para historiadores?
NECESSIDADE DO ESTUDO DA HISTÓRIA
Mas o interesse da História não depende de sua capacidade ou de sua ampliação como metafísica. Por isso o discutido Toynbee, em conferência pronunciada na Universidade do Recife, enumerava as razões pelas quais se devia estudar a História. Contava o episódio de uma reunião social em que os convivas, todos eles historiadores, entenderam comentar a vida, os erros, os crimes e os vícios dos imperadores romanos da Antiguidade. A dona da casa, aflita com o rumo da conversa, aproveitou a primeira pausa para perguntar aos seus convidados, se aquelas pessoas, de que tanto falavam, não compunham uma galeria de marginais. Como a resposta fosse afirmativa, ela ainda indagou se não estavam todos mortos. A uma nova afirmativa decidiu, peremptória: “Pois então não falemos mais dessa gente, que não merece nossa atenção.” Mas a História, prevenia Toynbee, é indispensável para fazer compreender o mistério da vida. E o destino dos homens. Uma história criada para o homem, e não o homem para a História.
Por isso vos convocamos, Sr. José Honório. E quando vos convocamos, já sabíamos que viríeis como pastor e não como mercenário, na linguagem de Duarte Coelho. Os tempos são cada vez mais difíceis, o trabalho mais ingente. Precisamos de homens como vós, com a vossa inteireza e o vosso destemor. Para esclarecer consciências. Para animar vontades. Para dizer o que acabastes de dizer e que outro historiador brasileiro havia sintetizado numa fórmula perfeita, quando escrevia – são palavras de Oliveira Lima – que “a própria História da Civilização era, em resumo, a história da luta da liberdade contra o despotismo e da igualdade contra o privilégio”.
Não há tarefa maior do que a de trabalhar, para que o nosso País nunca deixe de ser a Pátria de que se possam orgulhar as gerações do futuro. Sentimos a ansiedade dos moços, as interrogações que queimam suas pupilas. E que podemos dizer-lhes nessa prestação de contas, diante de um tribunal que não sabe e que não poderá perdoar, porque julga interesses e aspirações do Brasil?
Vinde pois, Sr. José Honório, vinde cooperar conosco, em busca das respostas que nos redimam. Vinde trabalhar pelo Brasil, como um historiador que busca no passado, e no presente, as respostas, que o futuro nos reclama.
5/12/1969