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Poderes em guerra

 

Nas democracias mais maduras, um político mentir, sobretudo se ele é o presidente da República, é razão suficiente para perder as condições de exercer o cargo para o qual foi eleito. O presidente Michel Temer tem mentido tanto nos últimos dias que seus desmentidos perdem o valor de face.

 Nessa batalha brasileira que se desenvolve a partir do histórico julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, o novo que tenta emergir das cinzas do velho sistema político-eleitoral carcomido pela corrupção dos hábitos e costumes enfrenta obstáculos institucionais que, vitoriosos, podem levar ao retrocesso.

O resultado do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é um desses retrocessos, num sistema, o Judiciário, que parecia a base da resistência democrática, mesmo que algumas vezes possa ter dado passos em falso, logo prontamente corrigidos pelos mecanismos internos do colegiado. 

Estamos agora diante de algo mais grave, com a denúncia de que o relator da Lava Jato no Supremo, ministro Luis Edson Fachin, estaria sendo espionado pela Agência Brasileira de Informações (Abin). Considerada plausível no primeiro momento pela presidente do STF, ministra Carmem Lucia, a ponto de ter originado uma dura nota oficial mesmo depois de um telefonema do presidente Temer para negar a ação, essa denúncia é parte de uma guerra aberta contra a Operação Lava Jato desferida pelo presidente Michel Temer e seus aliados no Congresso e no Judiciário, o mais destacado deles o ministro do Supremo e presidente do TSE Gilmar Mendes.

Um suposto estado policial que estaria sendo implantado pelos procuradores do Ministério Público Federal, à frente o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot, é combatido por medida (...) “própria de ditaduras, como é esta prática, contrária à vida livre de toda pessoa, mais gravosa é ela se voltada contra a responsável atuação de um juiz, sendo absolutamente inaceitável numa República Democrática, pelo que tem de ser civicamente repelida, penalmente apurada e os responsáveis exemplarmente processados e condenados na forma da legislação vigente”, como repudiou com veemência a ministra Carmem Lucia.

A crise institucional é mais grave ainda quando se sabe que o Palácio do Planalto acusa o próprio Janot de ter tentado grampear o presidente da República, no que teria sido impedido pelo ministro Fachin. O mesmo que o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que deveria ser o herdeiro democrático do antigo SNI, estaria investigando com os mesmos métodos da ditadura militar para constrangê-lo por ter homologado a denúncia do empresário Joesley Batista, cujas empresas também estão sob a mira dos órgãos de controle do governo federal, que antes da denúncia nada fizeram para evitar as falcatruas de que o grupo econômico é acusado.

O ministro Gilmar Mendes quer que o Supremo vá além e também exija investigações sobre supostas ações da Procuradoria-Geral da República contra outros ministros do STF, como Dias Toffoli, Luis Fux e Ricardo Lewandowski.

O cientista político Marcus Mello, da Universidade Federal de Pernambuco, considera que o julgamento do TSE, “mais que uma não linearidade, é uma  anomalia no processo institucional recente. É produto de uma conjunção insólita pelo qual um réu se depara com uma janela de oportunidade para nomear virtualmente 30%  do colegiado que vai julgá-lo às vésperas de uma eleição”.

Ele lembra que “a fortuidade” foi parcialmente fabricada, pois o presidente teve discricionariedade sobre o timing dos trabalhos, garantindo o resultado. “Maquiavel diria virtú (astúcia) e  fortuna (oportunidade)”.  

As consequências sobre o Estado de Direito são muito importantes e deletérias, com o descrédito sobre o Judiciário, destaca Marcus Melo, prevendo que outros atores no Judiciário e o Ministério Público irão responder à altura.  Para ele, o aumento  das apostas no jogo levará a uma escalada na polarização, que já começou com a  Procuradoria-Geral da República no affair Joesley. 

O cientista político considera que o argumento consequencialista invocado pelo ministro Gilmar Mendes sobre a instabilidade “inverte o consenso na ciência política. Toma-se a febre como causa da moléstia. O crime não é combatido pela ausência de sanções, mas, o contrário, são estas últimas que o previnem”.

Estabilidade não é ausência de mudança – mire-se o exemplo das autocracias – mas o contrário: é a prevalência da regra da lei, é fazer cumprir a lei, sobretudo quando ela é mais necessária, em situação de sua violação em escala industrial, destaca o cientista político.

Com a provável ação do Procurador-Geral Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer, teremos novos lances dessa guerra aberta, que pode incluir novos áudios que já estariam de posse do Ministério Público.

 

O Globo, 11/06/2017