Honra tamanha jamais experimentei, e, pela exaltação com que vos falo, ao encontrar-me convosco neste instante, não sei como exibir-vos humildade na confissão do meu reconhecimento.
Venho de extensa caminhada, vencida passo a passo na piedosa devoção às Letras, a que me conduziram o estímulo recebido de meu Pai e de outros mestres, a convivência amiga de iluminadas criaturas e a solicitação fascinante de livros – que, num elo de presenças benfazejas, povoaram, como privilégio, a paisagem feliz de toda a minha vida.
No labor quotidiano do espírito, foi-me constante a aspiração à vossa companhia, e, bem o sabeis, nenhum de vós – mesmo os que desde o verdor dos anos mais vivamente acalentaram a esperança das dignidades acadêmicas – teve, no plano sentimental, razões tão fortes para pleiteá-las num momento azado, como as que me desafiaram as incertezas na hora em que vos formulei os meus desejos. Há, por isso, grande bênção na distinção da minha escolha.
Não procurarei, senhores acadêmicos, diminuir aos vossos olhos a minha gratidão. Impossível seria evitar que transparecessem das minhas palavras os sentimentos que nem o silêncio oculta: os da emoção. Mas, se reconheceis em mim homem sincero, de vida simples e perturbada sempre pela afetividade, bem podeis avaliar como nesta noite e nesta Casa me deve ser profundo o bater do coração.
Recebei-me, entre vós, reconhecido. Dou-me em penhor da confiança expressa no sufrágio. Entrego-vos, sem reservas, o que valho. Se não vos basta às exigências, podeis ter a certeza de que vos trago na alma as mais belas promessas formuladas, e não descansarei no empenho de dignificar as tradições dos nomes valorosos que se aliam à Cadeira em que me vou sentar.
No transbordamento destas horas, minhas idéias se entremeiam num rendado de fios de saudades e alegrias; mas, no contentamento em que vos agradeço, nem sequer podem sorrir meus lábios; na sucessão de vosso inesquecível companheiro, há para mim glórias e honrarias, há vibração e encantamento, há tudo, menos festa.
Sim. Esta noite a meus olhos é tão engalanada, que vacilante e deslumbrado – um pouco cego, talvez, nas penumbras das reminiscências –, trouxe até aqui, para guiarem-me os passos e receberem comigo o que lhes cabe deste quadro, os vultos de Tavares Bastos e Rodrigo Octavio.
Não fui buscá-los por dever apenas, nem os encontrei em lonjuras ou estranhas plagas, que os tenho sempre em mim, no coração e no espírito. Venho com eles no melhor percurso que os bons fados, nas Letras, me podiam reservar; e é graça para mim recordá-los agora, nesta nobre tarefa que a admiração e os sentimentos simplificam.
Procurarei reviver diante de vós as figuras notáveis do patrono e do fundador da Cadeira 35. São dois destinos ligados por um grande afeto. São vidas gêmeas que percorrem o tempo em seqüência luminosa, como duas etapas fulgurantes de uma só devoção ao poder construtivo da inteligência humana, posta ao serviço do progresso das idéias, das instituições e do bom entendimento entre os povos das Américas e do mundo.
Aureliano Cândido Tavares Bastos, natural das Alagoas, apareceu surpreendentemente no cenário nacional, depois de conquistar o título de doutor em Direito e embrenhar-se nas lutas políticas da Província, de onde veio eleito para a Câmara.
No desempenho ardoroso do mandato, ele – o mais moço dos parlamentares, com apenas 22 anos, que pareciam menos em seu físico franzino – começou a trabalhar intensamente e não tardou a romper em fundamentada oposição ao ministério.
Firmou-se logo sob o espanto dos que viam surgir na arena criatura de tão pouca idade, a revelar espírito que mais parecia o de um velho estudioso de assuntos políticos e administrativos; e a ostentar coragem só conhecida em batalhadores encanecidos na aspereza das contendas partidárias.
As obras com que ficou vinculado às Letras nacionais são tesouros de lutas, advertências e proposições. Todos os seus escritos tinham alvo certo, e, como finura essencial, a da agudeza das setas. Não há neles preocupação de efeitos literários: – a grandeza é a própria alma tempestuosa do autor; e o encanto, sua amargurada ternura por todas as coisas do Brasil.
Faltou-lhe espaço, na existência, para brotar, florir e frutificar toda a sementeira do incessante estudo; mas bastaram os sólidos ensaios desenvolvidos em Os Males do Presente e Esperanças do Futuro, Cartas do Solitário, O Vale do Amazonas, A Província e A Situação e o Partido Liberal, para sagrá-lo escritor.
Um conterrâneo ilustre – Carlos Pontes – talhou-lhe a estátua biográfica.
Nesta Casa, erigiu-o patrono um fundador que o conhecera, através de ardente amizade familiar, testemunhada em plena meninice, de que nos falou um dia, ao recompor o quadro dos seis anos de idade.
Escutai a narração singela de Rodrigo Octavio:
Na volta desses passeios, quase sempre havia uma parada na casa em que morava Aureliano. Meu Pai entrava e lá se deixava ficar.
Eu me quedava brincando no jardim, separado por um muro, por cima do qual sobravam longas folhas de bananeira. A filha desse grande amigo de meu Pai, que regulava comigo em anos, vinha fazer-me gárrula companhia, enquanto altas questões de interesse nacional e de política retinham em palestra os interlocutores. Afinal, apareciam os dois no alto da escada. Figura plácida, rosto pálido, circundado de umas barbas pretas, ralas e curtas, olhos brilhando através dos vidros de um pince-nez de ouro, vestido de brim, como tudo vejo ainda. Aureliano era de pequena estatura, e, junto de meu Pai que era bastante alto, parecia ainda menor. Eu subia as escadas para o cumprimentar e recebia nas faces rosadas a carícia de uma leve palmadinha. Hoje conheço o valor dessa mão que me acariciava.
E eis como principia, senhores acadêmicos, a história da escolha de um patrono...
O menino de Campinas
Na pequena casa n.o 23 da Rua da Matriz Nova, em Campinas, morava gente modesta e austera. Foi lá que, no dia 11 de outubro de 1866, nasceu Rodrigo Octavio de Langgaard Meneses.
O ambiente bom e burguês, mas restrito, da incipiente cidade paulista, compensava-se pelo clima espiritual do lar em que viera ao mundo.
Era a casa do avô – Dr. Theodor Langgaard, dinamarquês de nascimento. Recém-formado em Medicina, casara-se em Copenhague e, aventurando-se por mares tormentosos, em 1842 chegara ao Brasil, para exercer a profissão.
O pai – Dr. Rodrigo Octavio de Oliveira Meneses, natural da cidade da Barra, um belo tipo de baiano das margens do São Francisco, alto, espadaúdo, de cabelos crespos e escuros, de olhar meigo, inteligente e culto, foi advogado hábil, orador fluente, político vibrante e liberal apaixonado.
E, junto às atenções desses dois homens respeitáveis, havia os excessivos carinhos maternos a despertarem nele o gênio de afetividade, que foi o de sua vida inteira.
Assim ungido, viveu Rodrigo Octavio quatro anos, em Campinas, de onde veio para a corte.
Criança ainda conheceu a Bahia, em visita a parentes; e o Paraná, acompanhando o pai que fora nomeado Presidente da Província.
De volta do Sul, vence os preparatórios no Rio e em Vassouras. Ao concluí-los, vestia luto pelo pai.
Com a mente latejante de ambições literárias, parte para São Paulo, a fim de bacharelar-se em Direito. Ganha um ano do curso, prestando exames no Recife. Ao diplomar-se, faltava-lhe, também, o avô.
Transformara-se a vida. Nuvens pesadas sombreavam-lhe o destino. Fortalecido pela cultura e plenamente iniciado nos segredos literários, animavam-no as esperanças e o gosto de lutar.
Não o atemorizava, portanto, o deserto. Na caravana que partia, escutava, em derredor, a canção dos aventureiros – os amigos das repúblicas e dos bancos acadêmicos. E, além disto, divisadas pelas ameias das torres da sabedoria, as superfícies da terra são mais planas e as distâncias menores.
Ao deixar a Faculdade, agradeceu comovido à extremosa mãe, por sempre o haver encorajado e lhe ter permitido concluir os estudos, buscando os meios em ingentes trabalhos. A ele cumpria, doravante, ampará-la; mas ampará-la sem se desviar da predestinação de jurista e homem de letras.
Bacharel. Bom filho. E era já o poeta.
Paixão das musas
Canta, minha alma, canta! neste mundo
quando se canta vai melhor a vida...
Versos de mocidade, revelação introdutória que, por isso, ficam bem de epígrafe ao itinerário poético do autor.
A alegria de viver, o sofrimento, a angústia, o amor e a morte, os encantos e os mistérios da natureza, toda a matéria prima da existência humana constituem a substância da sua poesia.
Sim. Rodrigo Octavio – o que por seu esforço e talento se fez memorialista, contista, novelista, ensaísta, historiador, mestre, jurista, magistrado, internacionalista – foi, antes de tudo, poeta e bom poeta.
E o foi por consonância, em parte, com a sua geração literária; embora muito mais, é certo, pela sensibilidade rendilhada, pela ternura, pela altitude e universalidade da imaginação, pelos primores estéticos da síntese em que nele se cristalizavam idéias e sentimentos incontidos.
Curvou-se, deste modo, à força criadora de um espírito privilegiado, que respirou intensamente a atmosfera literária do fim do século XIX.
Mas, desdenhando um pouco a vocação, pela vida afora, não deu Rodrigo Octavio, às musas, a força mestra de sua inspiração. Muitas existências teria de sorver para a fundo dispor das reservas ricas e variadas de uma personalidade por tantos pólos magnetizada.
Foi, por isso, que, se da poesia – forma de expressão literária que o empolgou no ardor da mocidade – não fez, no correr dos anos, um santuário de orações diárias, nela todavia encontrou culto fervoroso para expansão litúrgica de mananciais artísticos. Se a tratou de perto até o fim da vida, se aos setenta anos escreveu e publicou três rapsódias de tanta exuberância lírica, é porque nasceu com um tesouro de musas e, por tal familiaridade, sempre lhes cedia à presença imprevista, como que deslizando fortuitamente pelas margens vicejantes do curso atribulado de seu caudaloso e fertilizador destino.
A estréia
A ser poeta, só poeta, por certo se sentiu tentado.
Na estréia, não lhe faltaram palmas. Com vinte anos, pela imprensa de 1886, leu, de Machado de Assis, que já lhe admirara o pai, esta critica medida, que era também a certidão de batismo do escritor:
Rodrigo Octavio de Oliveira Meneses foi um nome distinto nas Letras e na Política; a morte o levou muito cedo. Ei-lo que ressuscita na pessoa de um filho, moço poeta, que estreou agora com um volume denominado Pâmpanos.
São versos de 1884, 1885. Tem pouco mais de cem páginas; e não são precisas mais para conhecer um talento. O Sr. Rodrigo Octavio o tem sincero, espontâneo, e fará brilhante carreira. Sabe sentir e sabe exprimir o que sente, em versos puros e bem trabalhados, mas trabalhados sem esforço, o que é melhor. Não se percebe a lima.
Lúcio de Mendonça fez análise elevada: apontou-lhe os méritos, sem esconder algumas restrições, aliás seguidas de conselhos bem cabíveis. Proclamou, contudo, que “pondo de parte os Sonetos e Poemas de Alberto de Oliveira, livro esse de verdadeiro poeta – ainda não tivemos ocasião de receber nesta secção de A Semana nenhuns outros versos melhores, nem tão bons como estes de Pâmpanos; e, como exemplo estampa o soneto:
Nas margens do Paraíba
Que esplêndida paisagem! Sonolento
Desliza o Paraíba tremulante;
Um manto azul sem fim, o firmamento,
A serra, um grande vale deslumbrante.
Os pássaros em bando a cada instante
Curveteiam, nas árvores o vento
Brinca, e tudo parece a triunfante
Encarnação de alegre pensamento.
E enquanto a natureza regurgita
Em festas, e da abóbada infinita
Como límpida fonte, jorra a luz,
Ao sol abrasador do meio-dia,
Vai descendo arquejante a serrania
A fila dos escravos seminus.
A Machado de Assis e Lúcio de Mendonça juntaram-se, no elogio do poeta novo, outros críticos, que o saudaram em público, transcrevendo-lhe os versos e assegurando ao estreante, num relance, a condição de cavaleiro armado no torneio das Letras nacionais.
O caminho estava aberto e a esse tempo seduzia-o a miragem.
No ano seguinte, em Poemas e Idílios reuniram-se as novas produções. Continuidade apenas. Não havia distâncias nem desvios. No mesmo teor, obedientes à mesma inspiração e técnica parnasiana, eram todos os versos, ressaltando-se os alexandrinos, manejados com mestria; as cadências e rimas, à moda da época, marteladas com impecável precisão; e a linguagem perfeita e colorida, a compensar, pelo estilo, o limitado acervo do que se permitia introduzir, como temas e imagens, na composição.
Boêmia
A falta de um emprego, ardentemente pleiteado, e a vida boêmia nos meios literários da Corte, à qual Rodrigo Octavio, na exuberância da mocidade, já se ia habituando, deram asas ao poeta.
Apadrinha-o Raul Pompéia, e é logo admitido à convivência do grupo de A Semana, em cuja sala de trabalho invariavelmente às tardes se encontravam artistas e escritores. Valentim, Lúcio, Olavo, Guimarães crescem-lhe na amizade, nesses íntimos encontros quotidianos.
Do que lhe valeu tão boa companhia, ele nos dá fiel noticia:
Nesse meio de benéfica emulação trabalhei, compus versos, poemas e contos; começou meu nome a aparecer nas crônicas e reportagens literárias; os jornais disputaram a minha colaboração. O próprio “grande órgão”, de tão difícil escalada, dignou-se olhar para mim; acolheu diversos trabalhos meus e, a pedido do seu redator-chefe, escrevi um artigo para Sexta-feira da Paixão, que teve as honras da primeira coluna...
Na Rua do Ouvidor, eu era apontado com o dedo, quando passava, louro e imberbe, entre a gravata rubra do Mallet e a agitação do Paula Ney.
Era positivamente a glória; e eu, triunfante e festejado, na exaltação da minha mocidade e do meu entusiasmo, não me deixava surpreender, pensando, nas horas de recolhimento, como, ao contrário do que parecia, era coisa fácil a glória...
O desterrado de Santa Bárbara
Toca-lhe, porém, a cobiçada nomeação: É feito promotor em Santa Bárbara, pequenina e sossegada cidade do interior mineiro. A viagem deslumbra-o e diverte-o em tantas peripécias. Deixara, ao partir, em 1888, “uns olhos e uma bondade” que já lhe haviam prendido o coração e traçado, na fatalidade do destino, a linha de sua vida: aquela que lhe foi a esposa, tão bonita, morena e doce criatura, inteligente companheira que teve sempre ao lado, amparando-lhe o desalento e sorrindo à sua glória.
Moço e pobre, desde que se formara em São Paulo, com vinte anos de idade, andava preocupado com o futuro e fitava, afinal, o incerto momento da partida, aquele em que a inexperiência muita vez ensina o caminho dos abismos... E o início da vida profissional é entrada pelo desconhecido, que tanto tem de sonho como de pesadelo. É o invisível que assusta. Mas é também a esperança que anima.
Movia-o, em tudo, a compreensão do dever de trabalhar e repartir o ganho com a mãe, que, apegada à agulha de coser, lhe dava tempo para achar o rumo.
Mas, lá em Santa Bárbara, mais que promotor, Rodrigo Octavio foi poeta. Pouco abria os livros de Direito, pois o que trazia de ciência bastava à vida judiciária local. E fez versos, versos, muitos versos, dando expansão à infinita capacidade de sonhar.
Bailava-lhe no espírito a fantasia dos 21 anos e, envolvido pela paisagem de esplendor estimulante, achara o isolamento que lhe permitiria descer bem fundo dentro dos sentimentos e idéias do intelectual que nele se plasmara.
Contempla, indaga e formula pensamentos. A beleza e a complexidade do visível e do invisível arrastam-no a nova fase de labor literário. Lê muito, escreve sempre; esgota a provisão de livros, mas vale-se das bibliotecas e coleções particulares. A emotividade tortura-o naquele áspero desterro –, coroa de espinhos para o seu feitio afetuoso.
O poeta divide-se. Nesse estado d’alma, compõe uma novela e esboça um drama em verso. Mas em tudo é poeta.
Sonhos Funestos – drama de assunto colonial, só vem a lume oito anos mais tarde. É vigoroso e tem forte impregnação das idéias evocadas pelas visões pungentes que rodeavam as paisagens em que o autor se perdia na “triste contemplação daqueles campos sáfaros e daquelas colinas devastadas, revestidas de pequenos montões de cascalho e pedra, numa argamassa indestrutivelmente amolgada pelo suor e pelo sangue dos insubmissos e exploradores gananciosos”.
No trabalho de talha, o poeta se engasta nos relevos da obra, pois a miúdo lhe empresta, para modelo, o seu estado d’alma.
Angustiado, cheio de saudade dos que ficaram longe, perdido na poesia de um isolamento quase monástico, naquele ambiente tão propício às cenas cujos personagens eram antigos companheiros de sua “insônia romântica”, ele se exprime pelos lábios da sonhadora Luzia:
Deve ser por aqui minha gruta encantada...
Nesta escarpa talvez... talvez nesta quebrada...
Minha estrela bendita há de mostrar-ma ainda...
Tenho fé... que não mente uma visão tão linda,
Que não me engana o sonho eterno que me prende,
Que brilha dentro em mim como uma estrela esplende
Na infinita savana azul do firmamento...
.........................................................................................
Aos cumes subirei mais altos e escarpados
E hei de a gruta encontrar dos meus sonhos doirados...
..........................................................................................
Poeta a vida inteira
Santa Bárbara foi questão de longos meses. Como Juiz em Nova Iguaçu, vem para mais perto. Proclama-se a República e Campos Sales, filho de Campinas, dá ao conterrâneo a interinidade em comarca de relevo – Paraíba do Sul –, que lhe exigiu trabalho e estudo fatigantes. Casara-se, havia pouco, e, no lar feliz, desfruta de clima ensolarado e assossegadas horas para plantar o marco inicial da vocação de homem público e jurista, em que, contudo, não se apagou como escritor.
De fato, a vida longa e de incessante e polimorfa atividade intelectual permitiu-lhe legar, dentro do volumoso acervo literário, vasta e esmerada produção poética. Muita coisa jaz esparsa em jornais, revistas e álbuns de família; e em seu arquivo guardam-se muitos e muitos inéditos preciosos, que o autor jamais quis divulgar, pois eram jóias suas, montadas unicamente para as festas íntimas.
Reparai como é belo o “Ouvindo Beethoven”, saído da Renascença para as páginas das antologias:
Quando os teus dedos ágeis ao teclado
Despertam, num sussurro, as tristes notas
Dessa estranha harmonia, eu sou levado
De um triste sonho às regiões ignotas.
Deixo o mundo; só tu vens a meu lado,
Tu somente, e deixando, embaixo, grotas,
Serras, cidades, campos, fujo, alado,
Da fantasia pelas ínvias rotas...
E vejo um sol na tela purpurina
Do ocaso e subo ainda, penetrando,
Alfim, do céu no páramo profundo.
E então escuto, pávido, a argentina
Voz das estrelas trêmulas, falando
Sobre as coisas tristíssimas do mundo.
Como tradutor, ei-lo a transportar para o vernáculo, entre muitos, este Intermezzo de Heine:
Os homens por crueldade
Me tem causado aflição...
Alguns por muita amizade,
Outros, por muita aversão...
Duplicaram minha idade,
Envenenaram-me o pão...
Alguns por muita amizade,
Outros por muita aversão...
Mas essa, cuja saudade
Me atormenta o coração,
Nunca me teve amizade,
Nunca me teve aversão...
De seus poemas, poucos tiveram as galas da impressão.
Coração de Caboclo – episódio dramático, de inspirada ternura – finda com estes versos:
É no perdão do mal que nos é feito,
É na renúncia, é no desprendimento,
Que a miséria da vida encontra alívio...
“Vera” – filha querida, dor sem consolo, saudade sem remédio – prostra-o de joelhos a orar em pranto:
Não se morre de dor... Dentro em meu peito
Senti partir-se o coração ferido;
Fugiu-me a vista; as forças me faltaram,
E num fragor, alucinante e hórrido,
A casa e o céu e as coisas do Universo,
Tudo desmoronou sobre o meu corpo...
E não morri... Do meio dos destroços
Desse tremendo, horrível cataclismo,
Saí com vida, ressurgi com alma...
Não se morre de dor...
“Les Rhapsodies”; “Le chant des eaux”; “Le roman du vieux tronc”; “La voix du minaret”, três poemas em prosa compostos diretamente no mais puro francês, foram escritas distantes meio século da publicação de Pâmpanos, decantados, aos vinte anos do poeta, pelas palavras consagradoras de Machado de Assis.
E agora, aos setenta, lede Duhamel – um mestre universal –, prefaciando-lhe a obra:
J’aime ces petits tableaux aux proportions mesurées, j’aime cette voix égale, fraternelle, qui nous arrive, portée par des brises, de lautre face du monde, et qui, pourtant, nous entretient de nous-mêmes, de ce que nous aimons, de ce que nous voulons sauver dans le désordre des temps.
Par un tel ouvrage, vous nous prouvez que notre civilization est impérissable, qu’ elle a refait de belles et fortes racines dans un sol nouveau, que l’esprit classique a trouvé ses refuges, ses nouveaux temples, ses nouveaux prêtres et que le flambeau, dès maintenant, est remis à des mains vigilantes.
Nas três rapsódias, – a bucólica, a platônica e a trágica – Rodrigo Octavio, no crepúsculo, procura como que esvaziar até o fim a taça de sua sensibilidade artística. No tempo em que as emoções deveriam estar adormecidas ou refreadas pelos anos e pela intensidade da vida, o amor à natureza e o sentimentalismo nele desabrocham como flores noturnas ou tardias.
Não foi, porém, o canto do cisne do poeta, pois que continuou até o último alento, sensível, triste e imaginoso, claro no estilo e elevado no pensamento, a conversar de vez em quando com a sua poesia, a poesia que nasceu com ele, a poesia que ainda agora lemos, a poesia que o deixou partir...
O coração virgiliano
Em Aristo, uma novela, também escrita por volta dos 21 anos, é que o poeta de Pâmpanos e Poemas e Idílios se apresenta, em volume, como prosador.
Ler a obra ou reviver as paisagens, os motivos, e a febre de idéias em que o autor a delineou – levam-nos, sob certos aspectos, a um único proveito: rompido o véu, logo se descobre ser o velho Aristo o jovem promotor Rodrigo Octavio, em pleno devaneio naquelas plagas a que ele chamou “terra do meu desterro”.
Voltemos, por isso, a Santa Bárbara de antanho, relembrada como a
cidade colonial no caminho de entrada para o sertão diamantino [...] constituída por algumas ruas, estendendo-se pelo espinhaço de um aglomerado de colinas [...] pitoresca, com suas igrejas de torres encapuzadas de telha [...] circundada pelo rio que lhe dava o nome, desenvolvendo-se pelos vales em largas curvas,e em cujas águas rasas pontilhavam, aqui e ali, faiscadores, de bateia, na cata, já então pouco rendosa, das pesadas areias pretas [...] do lado oposto do rio, uma linda mata, basta e negra, refrescava a paisagem, a que o aspecto escalavrado e pardo dos arredores dava uma impressão desoladora de aridez e ruína; e ao longe, fechando o horizonte, como uma barreira ciclópica, alçava-se, numa linha severa, a serra do Caraça. [...]
Amigo de perambular sozinho, a percorrer todas as tardes morros e vales, foi ali que ele criou os quadros e os tipos dessa novela panteísta e filosófica. Apaixonado e em vésperas de casar, compôs o mundo imaginário dentro de cujos horizontes campestres a sua alma de artista, romântica e sensível, pôde andar solta e quase sem disfarces.
Em Aristo, pela primeira vez, transborda a caudal do indomável bucolismo de um coração virgiliano.
Quantos de perto conheceram Rodrigo Octavio, em suas horas necessárias de abandono, sabiam-no assim, sempre encantado pela natureza, onde a pudesse surpreender: amando a vida no seio verde da terra, namorado das árvores, companheiro das plantas e das flores, o olhar perdido nas ondas, o ouvido atento ao murmúrio das águas deslizantes entre pedras e limos; procurando harmonias no sussurro dos ventos, admirando tempestades, perdendo-se em caminhadas silenciosas pelas estradas e alamedas sombrias; contemplativo, a seguir no céu o vôo dos pássaros ou o movimento arquitetônico das nuvens. Dirigia na tranqüila e amada chácara da Tijuca o arranjo do parque, a harmonia dos canteiros, a perfeição dos gramados, o plantio das fruteiras ou a colocação das pedras nos grotões improvisados em cascatas...
Paisagens interiores
Mas esse esteta – cujo destino, na milagrosa multiplicação do tempo, foi, sob tantos matizes, um turbilhão de atividades e interesses – no amor à natureza volta-se a cada instante para o que ela tem de mais perfeito e enigmático – a vida humana.
As paisagens interiores das almas singulares, comprazia-se em espreitá-las, e, se na palestra, em que era encantador, a todos os assuntos associava invariavelmente e com propriedade um caso deleitante, é porque foi exímio colecionador de situações curiosas; e mestre de psicologia, aprendida em modelos vivos deparados, a cada momento, nos intensos e amplos contactos sociais.
Com esta experiência talhou as obras de ficção. Em Bodas de Sangue – outra novela – deteve-se a focalizar o amor no fatalismo das tragédias. Em Estrada – episódio dramático – reuniu, com alto engenho e esplêndida dialogação, em cenas bem urdidas e sob máscaras quase transparentes, personagens da vida real de cada dia.
Como pintor itinerante, a fixar aqui e ali, num bosquejo, motivos raros obtidos à beira dos caminhos, Rodrigo Octavio encontrava a cada passo momentos de atenção para recolher e reconstituir, em peças literárias, essas pequeninas histórias que escapam à discrição ou se vão perdendo na humildade ou no desprezo.
Foi por isso que, no rol de suas produções, ainda nos legou Águas Passadas, Contos de Ontem e de Hoje, além de páginas inéditas, que constituem pitoresco e extenso mostruário dessas coisas que acontecem inexplicável e surpreendentemente, para perturbar a rotina banal das criaturas, ou o ritmo vulgar da vida social.
Na prosa ficcionista deitou Rodrigo Octavio o sal da perene atualidade. Nela, em linguagem leve e de cores bem dosadas, é tudo seleção rigorosa e assunto bem do agrado dos espíritos exigentes.
Sua obra, neste particular, é como um círculo de moralidade a enfeixar sorrisos e lágrimas. É também ironia e piedade.
No julgamento simples dos tipos que gravava, nunca foi à metafísica para sentir-se em condições de pesar, na balança do bem e do mal, as verdades filosóficas. Em seu coração, coalhado de ternura, elas se definiam espontaneamente, através das ações das frágeis criaturas, cujas almas tentava penetrar, no afã de descobrir os segredos da conduta.
E foi com elas que aprendeu a ser bom, humano, justo e tolerante.
Diante do espelho
No pendor para dos outros se ocupar, fixando aspectos marcantes de vidas destacadas, Rodrigo Octavio necessariamente haveria de ocupar-se de si próprio. Era esse um tema que lhe seria inesgotável e de cômodas devassas.
À tentação de fazê-lo (e que à memória não lhe pese o meu depoimento...) por certo associou a convicta admiração que se votava e o exato valor que atribuía a tudo o que era seu.
Nele, a modéstia era mais desprendimento... Não esperava pelos outros, para aquilo que se dava, com pompa, nos autojulgamentos.
Manteve-se, por isso, invariavelmente sereno, afável, temperado e à margem das críticas ou encômios. Desdenhando as invejas, as mágoas e as disputas frívolas, vivia cercado de amigos, cultivava a fundo as afeições e fazia sempre novas, nos mais rápidos ensejos.
Situado sempre, por um dom invulgar, no centro das conversas, com sua presença irrequieta e exuberante, regulava a todos pela universalidade e firmeza dos conhecimentos, a graça da expressão, o brilho dos conceitos, as alusões pitorescas – tudo versado com doçura apostolar, senso de concórdia e otimismo contagiante.
A intensa e atribulada vida, durante a qual interessou o espírito nas mais diversas atividades, deu-lhe ensanchas para percorrer terras e mares, e entrar em contato com criaturas de alto e baixo coturno.
Sofreu, talvez, do fatalismo de atrair atenções e polarizar responsabilidades e tarefas exaustivas. Se não se queixava do peso dos encargos, é porque, metódico e aplicado, depressa os dominava; e porque, também, fascinando, como eterno adolescente, sem ambição de fortuna e com espírito de serviço, via prêmio e recompensa na íntima alegria de contemplar a vitória de uma atuação pessoal, o acatamento de um parecer, a ressonância de uma aula, o êxito de um escrito, a repercussão de uma idéia, a fecundidade de uma iniciativa.
E foi por isso que viveu com o pensamento e o coração voltados para o lar, os amigos, os discípulos e as instituições a que servia dentro do país e no estrangeiro.
Idealista e desprendido, Rodrigo Octavio era, porém, daqueles que não se escondem na obscuridade. Sem alardear a fama conquistada, sentia-se, entretanto, muito bem com ela. É o que se percebe nos escritos através dos quais nos transmitiu, de sua vida, todo o encantamento pelos vínculos estabelecidos entre ele e os episódios e personagens que lhe ficaram estereotipados na memória.
Na leitura dessas páginas de lembranças, logo se depreende que, por onde ia, gostava de ser reconhecido, mas manda a justiça dizer, queria ser notado, apenas, como Rodrigo Octavio – aquele gabado varão, cujo quilate Humberto de Campos, na oferenda de um livro, avaliou pelo dinamismo desta dedicatória: “Ao Rodrigo Octavio, severo como um romano e elegante como um grego: – esta homenagem de um bárbaro.”
E, de fato, o conseguiu, desde menino, quando ele era apenas o Didi, de quem nos fala neste trecho:
Eu fui, nos meus primeiros meses, uma criança de importância [...] os meus lindos cabelos de ouro, sobrando em cachos da touca rendada, eram conhecidos e falados por Campinas inteira, e foi aos ecos de “Vivas ao Didi” – como então e por muito tempo me chamaram (é Rodrigo Octavio quem fala), que se adestravam em exercícios nas ruas da cidade, e seguiam para São Paulo, cheias de ardoroso entusiasmo, companhias de voluntários que meu pai, delegado de Polícia, reunia com destino aos campos do Paraguai. E há ainda fato mais significativo: numa viagem de caminho de ferro, de Jundiaí à capital da Província, como eu, assustadiço e nervoso, chorasse e perdesse o fôlego a cada guincho da locomotiva para afastar as reses de sobre a linha, ordens foram dadas para que a máquina não apitasse mais e silenciosa seguisse até a estação do seu destino.
Rosário de saudades
Ao gosto de remexer o passado, transfigurando-se em rio cristalino, em cujas margens fabulosos vultos assinalados se debruçavam, espelhando-se na correnteza, deveu Rodrigo Octavio, nas sombras da velhice, a maior parcela do interesse despertado pelos seus escritos literários.
Nas memórias deixou valioso testemunho de uma época em que se fez figura obrigatória de ecoantes movimentos, e amigo de um sem-número de altas expressões da Cultura e da Política.
Com o falar de si, falou de todos, versando as narrações pela agradável prosa, onde transluz a linguagem fluente, simples e precisa.
O memorialista, que nele floresceu, será sempre citado e ficará como dos mais cintilantes e substanciosos, nos anais de um período decisivo de nossa vida cultural.
Coração Aberto, cruz dependurada num rosário de saudades, primeiro livro de recordações, é tesouro de família, aceno enternecido à aurora de uma existência que pelas noites dos anos se cobriu de estrelas. É o coração que se abre, para a ressurreição do tempo e o desfile fantasmagórico das criaturas que o rodearam na infância radiosa e na mocidade atribulada. É passeio quase quimérico, da casa paterna, em Campinas, até o lar em que Rodrigo Octavio viu nascerem-lhe os filhos.
Neste relato de elevada simplicidade, – entremeado de anedotário sem exageros e confissões sabrosas, estão descritos os primeiros encontros com o mundo, a vida de estudante, as amizades, as influências que lhe atuaram na formação do espírito, a intimidade dos sentimentos, os rasgos de bondade, a grandeza das intenções, as origens da vocação – em suma – o que viu, sonhou, fruiu ou padeceu, ao percorrer, em mágica trajetória, as faixas do arco-íris, onde a gama das sete cores estivessem representadas pela alegria, a pureza, o amor, a arte, o sofrimento, a vida e a morte.
A esplêndida galeria
Obra de maior fôlego, culminância da atividade literária, são os três volumes de Minhas Memórias dos Outros.
Com o espírito borbulhante, na indomável efervescência das coisas do passado, não se satisfez Rodrigo Octavio com as evasões buscadas em Coração Aberto e, sob todos os pretextos, no interminável cortejo de discursos, palestras, artigos e outros escritos avulsos, os quais, reunidos, formariam grossos tomos de matéria saborosa.
Na insana febre de reminiscências, quis porém, no extremo da jornada e num esforço final, ficar em paz com os seus anelos, exibindo em grande estilo, em obra duradoura, o que de melhor guardava em suas valiosas coleções de vultos e episódios.
Ao pórtico da magnífica exposição, inscreveu, para guiar o visitante, uma rápida legenda:
Estas páginas foram elaboradas tranqüilamente, a céu aberto, à sombra de minhas árvores. Escritas ao acercar-me dos setenta anos, e de assentada, sobre coisas e circunstâncias antigas, velhos escritos, de mais de meio século, devem ser lidas com a indulgência que justificam duas grandes atenuantes: a da conturbação que trazem ao espírito os trabalhos e as vicissitudes de uma longa vida e da neblina que sobre as coisas passadas estendem os anos.
Tinha dessas coisas cheios o coração e a memória; não os quis levar, comigo para debaixo da terra.
Ao dar por finda a empreitada, sentia-se satisfeito, não só pela alegria do labor intelectual, mas ainda por haver prestado serviço novo à sua gente.
Além do mais, era preito enternecido votado a muitos corações amigos, que a mão do tempo lhe furtara; e a segurança de que os diletos temas dos seus serões, depois de condensados em cerca de mil páginas, não mais se apagariam, quando também se lhe extinguisse a luz dos olhos.
Nessa obra preciosa ficaram desenhadas as raízes da nossa Academia, nas profundidades onde serpenteiam pelas regiões do Clube Rabelais, da Panelinha, e dos jantares da Revista Brasileira; e retratados todos os velhos companheiros a que se uniu na faina de irmanar inteligências.
Foi além, muito além; todo um séqüito de notabilidades nacionais e estrangeiras desce-lhe da pena carinhosa. Até reis e papas comparecem; nem deixaria o autor de referi-los – ele que, possuído de extremo zelo, cultivou a magia de se fraternizar, de se internacionalizar, de promover a força de civilização que, dia a dia, conduz para mais alto aquela que foi a divindade do seu civismo e ainda é a nossa – a Pátria.
Conversa com o Brasil
A derradeira memória registrada foi a que lhe relembra o encontro à sombra acolhedora de velha mangueira, Com o amigo mais íntimo – o Brasil.
A certa altura da palestra o Brasil lhe pergunta:
“E tu, amigo, como tens passado, como vais vivendo, neste delicioso retiro, neste ensombrado recanto de vale, que a sorte pôs em teu caminho?” E o escritor responde: “Vivo ao sabor das minhas próprias forças. Raramente consulto médicos e, se os consulto, é para me ir esquecendo aos poucos dos remédios... Trabalhei por ti quase quatro decênios e teu serviço quase me matou. É este um ponto sobre que devias pensar. Tu não tens noção do que seja o meio termo, ou tudo ou nada. Para compensar a legião dos que empregas para não fazerem coisa alguma, tu sobrecarregas outros de um trabalho de tal modo pesado que mais parece uma pena, daquelas que o liberalismo de teus códigos aboliu. A mim coube alguns desses encargos, e, se não houvesse reagido a tempo e lançado fora o garrote, já me não encontrarias aqui para esta prosa. Descansado na amenidade destes ares e na calma destas sombras, não passo mal; mas estou velho, ou antes, estou envelhecendo, o que é pior. Ser velho é já ter deixado de ser moço, estado definitivo, e o que não tem remédio se entende remediado. Não há senão conformar-se. Envelhecer é um passo de transição; é um crepúsculo; e é desconsolador assinalar que a luz ambiente diminui e vai desfazendo o contorno das coisas que apraz ver, confundindo tudo numa penumbra, prenúncio de noite; sentir o aviso das deficiências que chegam, que se acentuam, que ameaçam de se instalar definitivamente, negativas e perenes, em nossa vida. As minhas horas da tarde começaram cedo. Nuvens, espessas, escuras nuvens, vindas de um dos lados do horizonte, encheram o céu e obumbraram o sol que, subindo ainda para o meio-dia, me dava luz à vida. E para mim chegou a tarde, uma tarde precoce, mas de horas que já não podiam ser da manhã. Nessa penumbra, os dias se foram passando. A vida, na tristeza dessa meia-luz, teve de seguir seu rumo. A fortaleza de meu espírito reagiu e venceu. O ritmo das ocupações me tomou as horas e fui, no silêncio que se escoa, caladamente, fria areia sutil, enchendo, momento a momento, as horas e os dias dos anos que foram vindo. Não tomes isso como um lamento. Nessa altura da vida não tenho razão para estar descontente. Vivi; podia, talvez, ter vivido melhor, mais intensamente, mais afortunadamente; mas vivi a plenitude da vida que se me apresentou. E agradeço de coração aos que me ajudaram a viver. Agora a noite vem chegando. E ainda hoje, na altura a que geralmente se atinge valetudinário e trôpego, não são de desprezar as quebras que me estão restando.
A vida só vale quando se a pode viver. E viver não é ver passar as horas, no desperdício do tempo, na despreocupação dos sentidos; viver é aproveitar, do melhor modo, a hora que vem, passa e não volta. Fugit irreparabile tempus.”
Talvez fosse mais justo, senhores acadêmicos, que, ao em vez de referir tudo o que já vos disse até agora, tivesse lido, apenas, esse auto-retrato de Rodrigo Octavio.
O encantado pela Pátria
Essas conversas com o Brasil, aliás, vinham de longe. O ensaísta de Minhas Memórias dos Outros, desde moço, pleiteava a honraraia de lhe ser um dos íntimos confidentes; e, nesta acepção, confidente é aquele que, escrupuloso, pachorrento e com a técnica dos afeitos às ciêncidas sociais, ora percorre as regiões que falam do passado, ora se fecha em bibliotecas e arquivos, a ler ou decifrar 1ivros e papéis. E não é tudo. Confidentes da vida dos povos são todos indiscretas criaturas, a propalarem tudo o que apuram, com a autoridade que lhes concede a patente de historiador.
Mas, historiador, de certo modo, é também o memorialista, que faz a crônica do seu tempo. Em Rodrigo Octavio, porém, o título se aferia em sentido mais amplo e qualificações mais especificas, de vez que também, e muito, se ocupou de períodos anteriores.
Estudioso por índole, emérito na arte de discernir e julgar, homem de letras, dedicou-se à nossa história, como cultor, da melhor raça. Resultaram dos esforços revelações de muita coisa inédita ou desconhecida, e a reconstituição de fatos e figuras que lhe surgiram vivas da linguagem dinâmica e pródiga de relevos.
Patriota fervoroso, Rodrigo Octavio deu asas ao seu entusiástico brasilismo e principiou com obra votada à educação cívica. Em Festas Nacionais, de invejável tiragem, foi buscar, nos símbolos do passado, leitura estimulante para a mocidade adormecida, nos primeiros anos da República. No prefácio, a garbar-lhe a matéria, Raul Pompéia a qualifica de “um ato de coragem, todo composto de palavras de audácia, de espontaneidade sadia e íntegra: uma aparição consoladora de oásis”.
Na extensa bibliografia, há dois marcos reclamando especial menção: Felisberto Caldeira, crônica dos tempos coloniais, onde o mérito da fiel reconstituição do ambiente disputa as palmas ao estilo impecável e ao sentimento poético de que o autor se reveste para enredar as cenas; e A Balaiada, versão bastante original dos fatos, cujo relato é feito com base em depoimentos diretos, que o autor obteve de testemunha criteriosa.
Historiador peregrino
Pelos domínios da história pátria, os demais escritos de Rodrigo Octavio dirigem-se, quase todos, para dois rumos afastados. De um lado se enfileiram as monografias, com as quais participou laboriosamente das atividades do Instituto Histórico e Geográfico; e, em direção oposta, marcham as que compôs em outros idiomas, para o desempenho de missões culturais, como a que lhe coube em Haia, ao ministrar um curso cujas lições reunidas em volume receberam o titulo de O Selvagem Americano perante o Direito.
Ensaio de justa fama foi a monografia acerca de Alexandre de Gusmão – primeiro estudo dos que apaixonaram o autor na pesquisa dos precursores e do desenvolvimento da doutrina de Monroe. Paixão, na verdade, facilmente compreensível, pois, como expoente das letras jurídicas, gratos lhe eram os temas em que o Direito e a História ficavam associados.
Com outras obras do gênero, não vos ocuparei a atenção, senhores acadêmicos. Detenho-me, para não transpor fronteiras, a fim de apontar Rodrigo Octavio a estender-se pela América – sua Pátria mais ampla e muito estremecida. As peculiaridades do Novo Mundo o fascinavam a ponto de ele, nas freqüentes peregrinações, se enfeitiçar pelos seus temas, como aconteceu de certa feita em que, junto às velhas civilizações do continente, reuniu elementos para compor o livro a que deu nome de México e Peru.
O arco do triunfo
Vai longe o dia em que, na Paulicéia, um jovem bacharel, ao sair da Faculdade, passou pelas arcadas desapercebido de que transpunha um arco de triunfo.
Evoquei-o até agora em sua esteira luminosa, pelo hemisfério das Letras: mas, para focalizá-lo em suas dimensões exatas, não lhe posso omitir a outra parte da vida, que é toda de fama, como jurista: advogado militante, magistrado, internacionalista, mestre e autor.
A sua devoção ao Brasil e ao mundo ganhou magnitude na escala em que se elevou aos mais altos postos a que pode atingir como cultor da ciência do Direito. Na justiça do país, sua última beca o investia da solenidade de Ministro do Supremo Tribunal Federal, para que foi nomeado depois de brilhante exercício, de cerca de quatro lustros, nas funções de Consultor Geral da República. Na administração, reclamado pelos seus méritos de jurisconsulto, serviu como secretário da Presidência da República, no período de Prudente de Morais; e no posto de subsecretário de Estado das Relações Exteriores, durante o governo de Epitácio Pessoa.
A operosidade e o brilho revelado nos cargos que ocupou credenciaram-no para inserir nas memórias aquele lamento dirigido ao Brasil e que há pouco vos citei: “Trabalhei por ti quase quatro decênios e o teu serviço quase me matou.”
E trabalhou sem medir horizontes.
Trabalhador sem fronteiras
A fama de Rodrigo Octavio, como jurista, transpôs fronteiras. De cerca de 25 missões participou ele fora do país. Foi árbitro de inúmeros Tribunais Internacionais. Acompanhou Rui na Conferência da Haia. Formou na delegação que em nome do Brasil subscreveu o Tratado de Versalhes. Chefiou a nossa representação à 1.a Assembléia da Liga das Nações. Assinou o tratado que criou a Corte Internacional de Justiça. Participou, obrigatoriamente, enquanto teve forças, de todas as reuniões Pan-Americanas e Congressos de âmbito maior, para estudos atinentes ao Direito Internacional Privado. Ministrou cursos e proferiu conferências em escolas e sociedades, na Europa e na América. Possuía, talvez, a mais completa coleção, reunida por um brasileiro, de títulos honoríficos conferidos por universidades e institutos estrangeiros. Pertencia aos quadros da Academia das Ciências de Lisboa e de diversas instituições culturais de outros países. Para cúmulo de honrarias, envergava cascata pomposa das mais altas condecorações com que 17 governos o agraciaram, por serviços prestados à nobre causa do bom entendimento entre as Nações.
E tudo isto coube a um homem só. Mas homem de talento, envergadura, devoção e reservas invulgares.
O mundo que não viu
Na alma do insigne brasileiro, a consciência jurídica, a inclinação para a vida social, a imaginação sonhadora do internacionalista e o senso estético do homem de letras se agruparam para a prática de um tipo moderno de diplomacia, de que, entre nós, foi ele o mais completo precursor.
Nas energias esgotadas no empenho de favorecer e apressar o entrelaçamento das instituições de todos os países, e estabelecer um sistema mundial de confiança, entendimento e soluções pacíficas das disputas entre os povos – a sua visão clarividente pressentiu a precariedade dos esforços, se não se estabelecesse, para secundá-los, a universalização do princípio que Paul Valéry sintetizou na frase célebre: “Uma sociedade de nações supõe uma sociedade de espíritos.”
Os anelos de fraternidade universal ganharam foros de religiosidade em seus projetos de vida. No Brasil, na América e no mundo, o literato poliglota tinha em mente, de hábito, este programa aplicável a todos os setores de atividade: cooperação intelectual. Mas cooperação que principia em casa e na escola, entre pessoas de idades diferentes, desejosas de se compreenderem e se modificarem, em procura de ajustamento na civilização em mudança; cooperação pela qual atingiremos a paz, a fortuna e o bem-estar, como Rodrigo Octavio tinha almejado para o mundo que não viu.
Bandeirante espiritual
Onde, porém, mais de perto a sua atuação como jurista lhe repercutiu nos brasões de homem de letras, foi na obra realizada na cátedra e pela pena, com que encheu uma estante de sólidos volumes, a represarem grossos mananciais que jorraram dos vários campos da ciência do direito.
Na vocação de professor fez discípulos notáveis e, nos cursos jurídicos, semeou em sucessivas gerações o grão fecundo de sua alcandorada e universal sabedoria. Mestre de ricos predicados, fazia das lições torneios de cultura e alterava a rotina da classe com a sua técnica pessoal de confundir-se com o auditório, para trazer à superfície o espírito criador que havia em cada inteligência.
O amor e o respeito pelos jovens foi um dos seus traços marcantes. Por isso, como mentalidade, nunca envelheceu. Apaixonado pelos novos e a cativar-lhes a confiança, evoluía sempre e regalava-se com fórmulas de prudência necessária à profilaxia sensata, contra epidemias de aberrações ou exageros.
Na vida literária, eu o recordo em uma fase que me bordeja a mocidade, e em que ele se comprazia em discutir valores ainda verdes, para os quais a sua casa estava constantemente aberta. Apreciava a caudal espontânea da poesia de Olegário Mariano; e se orgulhava de ter sido o primeiro a publicar um soneto do poeta da Água Corrente. Lia com enlevo os Epigramas Irônicos e Sentimentais de Ronald de Carvalho, e sabia de cor o Epitáfio que não Foi Gravado, de Felipe d’Oliveira. Gabava os exemplos de renovação erudita e harmoniosa que havia nos escritos de Ronald e Alceu Amoroso Lima. Reclamava contra a ausência de Álvaro Moreyra quando a assinatura dele fugia dos jornais. E, já no fim da vida, não deixava de sorrir, contente, ao descobrir, num verso de Manuel Bandeira, uma flor de sensibilidade expressa em forma que não lhe ferisse os nervos requintados.
O ativo companheiro
Antes de concluir o esboço de perfil e a penumbrosa referência à obra do varão preclaro, por cuja vaga me deixastes ingressar nesta Casa – concedei-me, senhores acadêmicos, por indulgente vênia, a mercê de recordá-lo, entre vós, na ilustre Companhia.
Contemplo-o ainda, brilhante e operoso, em desafio à sentença goethiana de que há poucos homens dotados de extraordinário entendimento e dispondo, simultaneamente, de pendores para a ação. É que o entendimento amplia os horizontes, mas paralisa as criaturas.
Desses homens há poucos, é verdade: Rodrigo Octavio, no entanto, foi um deles e dos que melhor harmonizaram as duas propensões.
Na atividade irrequieta, soube impregnar-se de objetiva sabedoria; e, ao adicioná-la, nos processos mentais, ao talento permanentemente trabalhando pelo gosto de estudar e produzir, o que de modo invariável obtinha era a multiplicação das ramagens enfloradas de sua inteligência transbordante de seiva.
Na ansiedade de avançar pelo futuro, na vocação para empreender, nele se externava um traço essencial – o nervosismo; e faltaria equilíbrio nesta síntese evocativa se, paralelamente ao intelectual posto em relevo até agora, não vos falasse, também, do inquieto escravo da emotividade.
Sensível, às raias do exagero, dela jamais se libertou; mas, se por um lado lhe sofreu os efeitos negativos, soube contudo beneficiar-se pelo influxo que lhe serviu de sopro inspirador, a arfar e impelir para adiante as desfraldadas velas dos ideais mais caros.
Com estes ideais singrou, impaciente, as águas traiçoeiras da aventura humana. E lá se foi, adquirindo títulos de Cultura, como não pretenderia homem de igual têmpera, pouco sedentário, para quem o movimento é condição de estabilidade.
Não se enclausurou, nem se tornou perdulário. Conciliando, no coração, as vozes de comandos opostos, com alto engenho se faz feiticeiro do tempo, exímio partilhador das horas e mestre insuperável no tirar proveito do conflito das tendências e dos contrastes da vida.
Dispondo de perfeito autodomínio, antes de macular os votos do sacerdócio intelectual, prodigalizou-os com virtudes raras.
Dinâmico, afetuoso em excesso, mitigador inveterado de emulação mental, arquiteto imaginoso de empreendimentos oportunos, Rodrigo Octavio demandava apoio, estímulo e evasão, na companhia de almas irmãs, no convívio de homens do mesmo estofo.
Revelou-se, por este aspecto, e desde cedo, espírito de equipe, com vocação marcada para as atividades associativas.
Na Faculdade, nas redações de jornais e revistas, nos efêmeros grêmios literários de seu tempo de moço, nas portas dos editores, nas mesas das confeitarias em voga, nos teatros, nas salas de conferência, nunca deixou de reunir-se aos companheiros diletos; e entre eles, tanto queria aos boêmios do tipo de Bilac, Emílio de Meneses ou Guimarães Passos, como aos mais velhos e austeros, do jeito de Machado e Nabuco.
Com Machado de Assis
Quando se cogitou da criação desta Casa, lá estava ele, entre os fundadores, na pequenina sala da Revista Brasileira, de José Veríssimo.
De como a amou e serviu, desde os primórdios, as provas se sucedem.
Quando os historiadores da Academia lhe remexerem os papéis indispensáveis à revelação das origens e à recordação dos momentos heróicos, durante os quais a incerteza e a insegurança eram vencidas pela fé e devoção de alguns homens de letras, encontrarão, a cada passo, o nome, de meu incansável antecessor.
Nas conversas preliminares, nas primeiras reuniões, em que os nossos maiores envolvidos em compreensíveis divergências delineavam os objetivos da instituição, lançou o entusiasmo de sua juventude e o senso coordenador de sua inteligência ágil.
Podemos vê-lo ainda, a figura jovem, movimentada e loura, nos primitivos conclaves, pregando confiança aos espíritos díspares, entibiados e, não raro, agoureiros, na antevisão da inviabilidade do projeto, deste perigoso e de difícil acesso paraíso das letras...
Na primeira diretoria, subscrevendo os estatutos, vem-lhe o nome logo depois dos de Machado e Nabuco. Na sessão de abertura, cabe-lhe discursar entre ambos, para ler a memória histórica por ele elaborada, atinente aos atos preparatórios.
Com Machado de Assis, em convívio diário e prolongado até à hora em que, à sua cabeceira, viu morrer o Mestre, empenhou-se pelo êxito e prestígio da iniciativa. Eram cuidados de sempre e providências de todas as horas; e entre elas as mais desenxabidas, mas não menos necessárias.
Um pouco benfeitor
Na evolução material, deveu-lhe a Academia, destacadamente, dois subsídios relevantes: a acolhida que, por alguns anos de cruéis dificuldades, lhe proporcionou, armando-lhe a sede provisória em seu próprio e modesto escritório de advocacia; e, ainda, a sugestão que soprou certo dia aos ouvidos de seu constituinte e editor – o velho Alves, sem herdeiros – da qual mais tarde resultou o polpudo legado.
Ao acadêmico devotado preocupavam as agruras econômicas, pois, clarividente e prático, sabia que as atribulações materiais roubam a paz aos espíritos.
Incumbido de pronunciar as palavras de despedida do Silogeu, na derradeira mudança, dizia ele:
Falei-vos em pobreza franciscana, e talvez tivesse sido lisonjeiro para com os haveres desta Companhia...
Os frades, embora descalços e mendicantes, têm sempre teto para abrigar suas fadigas, e teto amplo, descortinado, de ordinário, em sítio de beleza, entregue ao refrigério das brisas e aberto à contemplação dos horizontes.
E, nós, mais pobres que franciscanos, nem teto possuímos...
Rodrigo Octavio, contudo, jamais acreditou que das facilidades da existência dependia o renome da Academia; e este modo de entender elucida por que os esforços por ele devotados aos alicerces, ao erguimento e a todas as questões materiais, falecem de maior sentido, cotejados com o balanço do trabalho intelectual, com que a honrou e engrandeceu.
O rastro luminoso
Almejou, e o conseguiu, ser acima de tudo acadêmico exemplar, pelas atitudes e o cultivo do labor literário. Na presidência, na diretoria, nas comissões, no plenário, dedicou-se com apaixonado zelo aos objetivos que norteiam as atividades da Casa de Machado de Assis.
Percorrendo-lhe os anais, vamos encontrá-lo, a miúdo, no burburinho das atas; abundante nas páginas da Revista; e, na tribuna, com o nome inscrito entre os maiores. Tribuna que ocupou enquanto pôde vir até aqui e onde se tornou figura quase obrigatória, nas horas magnas das festas públicas.
Na sessão inaugural proclamava Nabuco:
“Uma Academia nova é como uma religião sem mistério: falta-lhe solenidade. A nossa principal função não poderá ser preenchida senão muito tempo depois de nós, na terceira ou quarta dinastia de nossos sucessores.”
Pouco resta, senhores acadêmicos, para que as trombetas do tempo anunciem o meio centenário deste egrégio Cenáculo. Começa, pois, a envelhecer... Mas o grisalhar das instituições é diferente do nosso, pobres mortais, cujas forças diminuem com o passar dos anos. Elas, ao contrário, vivem mais e melhor, porque amparadas pela obra realizada. É no impulso proveniente do passado que encontram energias para novas empreitadas, ânimo de adaptação às exigências que vão surgindo, para que a vida continue.
Honra, pois, àqueles que se foram e cuja operosidade, fundida no prestígio e tradição desta Casa, se projeta, como força, pelo futuro.
De Rodrigo Octavio, ao enaltecê-lo – e eu vos falo como privilegiada testemunha –, posso afirmar que das maiores preocupações de seu afeto e inteligência foi esta Academia, a cujo destino e grandeza irmanou a existência, desde as horas esperançosas da mocidade até os últimos e sofredores momentos da vida.
O amor, o desvelo, o escrúpulo com que lhe tratava os assuntos, o orgulho com que lhe defendia as prerrogativas, lembram os sentimentos paternais votados por Gaston Boissier à Academia Francesa.
Por temperamento e formação espiritual foi acadêmico nato. Sentia-se bem na intimidade de homens que usam, como armas do bom convívio, a Cultura e a cortesia, dando, às discussões literárias e às pelejas do espírito, ambiente de compreensão e bom humor.
Esta Casa foi para ele a continuidade do lar – mansão de uma nova família. Se colocardes, num parênteses, a Renascença – revista cultural ilustrada de que tanto se envaidecia e que fundou e dirigiu, no princípio do século, em comunhão com Henrique Bernardelli –, podeis recordar, senhores acadêmicos, que, em se tratando de vida literária, giraram em torno de vossa companhia todas as cogitações do fundador operoso que o tempo transformou no emérito acadêmico, o inseparável amigo dos mais velhos, o prestimoso companheiro dos mais moços.
Mas, nesta Academia, desoladoramente, era uma vez Rodrigo Octavio...
Idéias que germinam
Senhores acadêmicos.
Entre os sintomas imponderáveis da vida, entre os pequeninos fatos que por qualquer modo nos impressionam, sempre um se cristaliza em nosso espírito, encontra agasalho em nosso coração.
É essa a origem dos complexos que nos afligem: fonte de nossos desânimos, incentivo de nossos entusiasmos.
Cresci e vivi em uma casa onde a Academia Brasileira era assunto de todas as horas e o encontro de acadêmicos fato de todos os dias.
Menino ainda, sucedeu-me assistir por várias vezes às sessões acadêmicas realizadas no escritório de Rodrigo Octavio. Guardo na lembrança a fisionomia daqueles homens, sentados, à moda de colegiais em festa, nas cadeiras simples que se comprimiam encostadas às paredes, e davam a volta à minguada saleta.
Ainda os vejo: Machado, Veríssimo, Patrocínio, Laet, Euclides, Bilac, Alberto de Oliveira, Silva Ramos, Inglês de Sousa, Afonso Celso...
Com meu antecessor aprendi a admirá-los e, também, a reconhecer nas dignidades acadêmicas alto prêmio e meio certo de servir às letras nacionais. Desde então afaguei as esperanças, que afinal se concretizam, por me terdes permitido subir ao vosso cobiçado Olimpo.
Já vos agradeci, como se agradecer bastasse para exprimir e euforia de quem se liberta de um recalque atormentante...
O conselho do apóstolo
Acabo de reviver diante de vós a personalidade singular de Rodrigo Octavio.
Falei-vos, comovido e ufanoso, pois que a ele devo tudo: a vida, o destino e o que sou. Falei-vos fielmente por haver sido o mais íntimo companheiro das suas alegrias, tristezas e fadigas. Bem sei quanto lhe valia a prodigiosa existência – verdadeiro turbilhão de virtudes e dotes aplicados nas empresas beneméritas que lhe impunham os fados, a lhe cobrarem os privilégios e títulos de homem modelar.
Eu, que lhe fiz da sombra o meu caminho, venero-o ainda, como a um apóstolo, e jamais olvidarei a expressão evangélica de suas últimas palavras: “Vai, meu filho, cumpre sempre o teu dever.”
O que para hoje me impusestes, espero ter cumprido. Sem engenho, talvez. Para fazê-lo, necessário me foi domar o coração. Bem sabeis que a tarefa era difícil: desafio lançado à minha sensibilidade...
Saudade
Senhores acadêmicos.
No mistério das horas que voam pela noite, encapuzando nas sombras os vultos que trouxe até aqui para me guiarem os passos, eu os sinto de volta à paz onde descansam.
Os mortos, quando queremos recordá-los, ressuscitam na atenção das criaturas. Não poderei, contudo, por mais tempo me servir da vossa.
Ao deixar esta tribuna, vejo o último a partir: Rodrigo Octavio. Permiti-me, enfim, dirigir-me a ele com a exclamação que, agrilhoada, desde o início me tortura a saudade: Meu Pai!