MACHADO E A ACADEMIA
Certa vez, em uma destas idas até o ponto do bonde, ocorreu um pequeno episódio que dá a medida do interesse de Machado pela respeitabilidade da Academia, a que ele, presidindo desde o seu nascimento e corporificando-a mesmo, emprestou toda a própria circunspecção e prestígio. Por essa forma, contribuiu certamente, e muito, para que ela atravessasse incólume o período indispensável para que se a acreditasse resolvida a viver, crescer e vencer.
Machado entendia, e não cessava de o dizer, que a Academia devia ser, também, uma casa de boa companhia; e o critério das boas maneiras, da absoluta respeitabilidade pessoal, não podia, para ele, ser abstraído dos requisitos essenciais para que ali se pudesse entrar. Por esse tempo, alguns de nossos colegas andavam procurando criar no ânimo de Machado uma ambiência favorável à aceitação da candidatura de certo Poeta, de notório talento, mas de temperamento desabusado e assinalado sucesso em rodas de boêmios... Nesse dia o nome do poeta veio à tona; a controvérsia fora acalorada. Machado não interveio nela; conservou-se calado; mas, quando o levávamos para o bonde, na Avenida, ao chegar ao canto da rua da Assembléia, ele nos convidou a que seguíssemos por essa rua, e, a dois passos, nos fez entrar em uma cervejaria, quase deserta nesse momento. Não sabendo de todo o que aquilo significava, nós o acompanhamos sem dizer palavra, e vimo-lo deter-se no meio da sala, entre mesinhas e cadeiras de ferro, e, também sem dizer palavra, estender o braço, mostrando, ao alto de uma parede, um quadro, em cores vivas, em que, meio retrato, meio caricatura, era representado em busto, quase do tamanho natural, grandes bigodes retorcidos, cabelo revolto na testa, carão vermelho e bochechudo, o Poeta, cuja entrada no seio da imortalidade se pleiteava, sugestivamente empunhando, qual novo Gambrinus, um formidável vaso de cerveja... A cena causou em todos profunda impressão e, tal era o respeito havido por Machado, que, em vida dele, não se falou mais na candidatura de Emílio de Meneses...
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Pode-se afirmar que o prestígio e o sucesso da Academia Brasileira eram a grande preocupação do Mestre.
Machado não era um homem sociável, era mesmo de difícil familiaridade. Finamente polido, atencioso para com toda a gente, tinha ele, entretanto, um muito limitado círculo de relações de visita, e essas mesmas, confinadas no seu bairro, dentro de um pequeno raio da casa em que, por tantos anos, viveu.
Era natural que, a homem dotado de tal temperamento, não fosse fácil incorporar-se a grêmios, participar de sociedades, procurar fazer vida comum e conjunta. A Academia, entretanto, o conquistou. Machado se entregou de corpo e alma ao novo instituto que foi para ele a preocupação permanente, consoladora e luminosa de seu derradeiro decênio.
Do interesse, da atenção constante de Machado pela Academia, interesse e atenção sempre manifestados, podem dar testemunho todos os que com ele entretiveram correspondência literária. De tal asserto é demonstração eloquente o belo livro de Graça Aranha sobre a correspondência de Machado e Nabuco. Não há linha nessas cartas, de um e de outro, que não houvesse sido animada pelo amor dessa Casa, e, vindo esse alto e contínuo interesse de homens de tão superior espírito, é esse, sem dúvida, justificado motivo de desvanecimento e orgulho para egrégia Companhia. E deve valer qualquer cousa, deve ter alguma significação um instituto que, de modo tão vivo e diuturno, preocupou espíritos que pairavam em tão alevantado nível.
Por esse tempo quase não havia entre nós convivência literária, excluídos os encontros de amigos e de companheiros nas salas dos jornais e mesas de confeitaria. Entretanto, alguns jornais houve que, pelo acentuado feitio literário e pela individualidade atraente de seu núcleo de redatores, se constituíram, em diversas épocas, assinalados pontos de convívio de poetas e escritores. Assim, a Gazetinha; depois A Semana, como mais tarde a Revista Brasileira, de cuja excelsa roda era Machado a figura primacial. Servia-se às 5 horas um modesto chá com torradas. Foi nessa pequena sala da Travessa do Ouvidor que, em 1896, se concertou a criação da Academia Brasileira de Letras e se a fundou realmente.
Desaparecida a Revista Brasileira, a Casa Garnier, que pouco depois instalava seu novo e magnífico edifício, deu abrigo aos náufragos. Foi aí que os dispersados companheiros se foram habituando a encontrar-se de novo, à tarde. Não foi preciso mais do que dobrar a esquina da Rua Nova do Ouvidor.
Machado, na extraordinária atração de sua pessoa, aliás modesta e esquiva, era a alma daquelas reuniões e tanto que, morto ele, o grupo automaticamente se desagregou. A ausência de Machado era tão sensível que, não volvemos mais, à hora habitual, ao Garnier, sabendo que já o não encontrávamos ali, e as agradáveis reuniões daquela clara e alegre casa de livros cessaram, como por encanto, de um dia para outro, sem prévia combinação. Aliás, Machado era, no fim de sua vida, tido como um deus tutelar da casa que se beneficiava do prestígio de suas obras por ela editadas. No dia da inauguração do novo edifício, o presente que receberam os convidados, para memória do acontecimento, foi um volume de Machado de Assis com a assinatura autógrafa do mestre e a data - 19 de janeiro de 1901. A mim coube um exemplar da 3ª edição do Brás Cubas, que conservo.
Já estava, a esse tempo, fundada a Academia de Letras. Empreendimento que se iniciou prestigiado por grandes nomes, por alguns de nossos maiores nomes, trouxe desde o nascedouro prognósticos de estabilidade e circunspecção.
Machado não recusou coisa alguma do que se lhe pediu para o novo instituto; tomou parte efetiva e eficiente nas reuniões preparatórias; contribuiu para a elaboração dos estatutos e do regimento interno; aceitou de boa mente a presidência que se lhe assinalou. Nessa primeira diretoria, coube a Joaquim Nabuco o posto de Secretário-Geral e de mim, tão-somente pelo que a Academia contava esperar de minha jovem operosidade, se fez o Primeiro-Secretário.
Não foi de folga e segurança o primeiro período de vida da Academia, carecedora de tudo, sem patrimônio de espécie alguma, sem casa que desse abrigo à sua existência meramente espiritual.
E Machado não arrefeceu em sua confiança; não teve um movimento de desânimo; acompanhou-a na sua pobreza franciscana, na sua peregrinação em busca de um pouso... E partiu da vida sem que houvesse tido a satisfação de ver a Academia enriquecida pela generosa doação do livreiro Francisco Alves.
(Minhas memórias dos outros, 1935.)
FRANCISCO ALVES
E tratando da Academia, o nome de Francisco Alves não pode morrer numa simples referência. Ele dela tudo merece e a mim é muito grato dele me ocupar.
De todos os que têm entrado nessa casa, é possível que seja eu quem tenha tudo, se não mais freqüente, todavia mais variado contato com Francisco Alves.
Editor de meus primeiros livros de Direito e desse explosivo catecismo das Festas nacionais, conheci-o como livreiro, tratei-o como homem de negócios, de poucas palavras, brusco, mas sincero, leal e profundamente honesto. Conheci-o também no trato pessoal, em íntimo convívio, havendo passado juntos, no delicioso confinamento da montanha aprazível, algumas estações de verão, no Hotel das Paineiras; e advogado, tive-o como cliente, indo ouvir-me sobre circunstâncias complicadas de sua vida, pedir-me estudo de papéis para aquisição de prédios e redação das respectivas escrituras, e, certa vez, em vésperas de partida minha para a Europa, conselho sobre seu testamento.
Francisco Alves, sem herdeiros necessários, preocupava-se com o destino de seus bens, que, aliás, a esse tempo (1904), não haviam tomado o vulto que o decênio subsequente lhes deu. De nossa conversação verifiquei que ele, vacilando ainda no que pretendia fazer, se inclinava para o benefício das letras de preferência ao da caridade pública. Sugeri-lhe, então, que constituísse um fundo para que, com as rendas, a Academia Brasileira distribuísse prêmios que estimulassem o desenvolvimento das letras nacionais. Seria um meio de perpetuar seu nome, feito nos livros, e de fazer beneficiar o livro no Brasil do que do livro tinha vindo.
Senti que a Alves agradou a ideia. Apresentou-a, desde logo, ali mesmo, sob diversas formas, e retirou-se para voltar mais tarde, para a redação do instrumento quando houvesse assentado uma resolução.
E não voltou. Ausentei-me, pouco depois, do Brasil e quando, muitos meses passados regressei, da primeira vez que me encontrei com o velho livreiro, este me disse, com ar discreto, que havia feito seu testamento e que minha sugestão não havia ficado no olvido.
Doze anos se passaram sobre estes acontecimentos antes que, por morte do testador, o testamento pudesse ser aberto e conhecido. Nunca mais volvera Alves a falar-me em tal assunto, se bem que nossas relações seguissem assíduas, tendo ele continuado a ser o meu editor e eu a ser seu advogado. Ainda em meados de 1917, no próprio mês que foi o último de sua vida, tratamos sobre negócios. Eu havia chegado de uma viagem aos Estados Unidos e fora informado que o meu amigo estava enfermo no Hotel das Paineiras, onde, desde alguns anos, tomara o hábito de prolongar a sua estada. Fui vê-lo. Havia num acidente de trem, com o solavanco, caído e fraturado uma perna. Pediu-me que voltasse. Estava, então, pensando na constituição de nova sociedade para a casa comercial, de que ficara único interessado depois da liquidação consequente à morte prematura de seu sócio e muito querido amigo, Manuel Pacheco Leão. Tivemos diversas conferências. Mas, como seu estado de saúde se agravara, nossas conversas tiveram de se espaçar. A fratura não teria, nela mesma, maior importância, mas Alves, além de idoso, era diabético; certa manhã, antes que cousa alguma houvesse sido assentada, fui surpreendido com a notícia de sua morte.
O segredo que encerrava o testamento, e de cuja extensão eu não fazia ideia, caiu, então, como uma notícia inacreditável, no domínio do público. Só depois que, no dia seguinte, todos os jornais a referiram, com minúcia, e se deu a conhecer o teor do extraordinário documento, é que se convenceu toda a gente que se não tratava de uma balela. O velho trabalhador paciente e incansável, modesto e sóbrio, que vira correrem-lhe os dias todos da sua vida, sem exceção de um só, na monotonia da mesma luz mortiça, sem revérberos e sem clarões, debruçado à mesa simples de trabalho, no fundo abarrotado do seu armazém ou num despido quarto de hotel, que jamais se permitiria o desperdício de uma festa ou o luxo de uma gravata de cor, afundava na morte num inimaginável esplendor de prodigalidade.
Eu tivera a fortuna de, bem cedo, conhecer Francisco Alves logo que vim, bacharel de fresca fornada, tentar a iniciação de meus passos de advogado. Levara-me à sua casa, então à Rua Gonçalves Dias, Carlos de Carvalho, o grande jurisconsulto, meu velho e saudoso mestre, que nela me deu crédito. E bem me lembro que algum tempo depois, após uma missa de sétimo dia, em São Francisco, ainda o meu velho mestre e amigo levou-me a almoçar no armazém do Alves. À mesa sentaram-se ainda, além da dedicada companheira do livreiro, entre outros Sílvio Romero, já glorioso, e Felisbelo Freire, desconhecido, recém-chegado da província.
Alves simpatizou comigo; ofereceu-me um desconto nos livros de que precisasse, a ele devo o incremento que pude dar aos livros que me vieram do meu Pai, e desde então jamais cessaram nossas relações.
Em 1897 ele editou dois livros meus. Pude, em situações várias, auscultar-lhe a bondade do coração e a inteireza do caráter e é de toda a justiça que a Academia Brasileira, que, recolhendo-lhe os haveres, beneficiou desses altos predicados, tudo faça para que a lembrança de seu nome e a recordação da sua vida não se apaguem da memória reconhecida dos pósteros.
Possuidora do enorme acervo, a Academia pôde dar prumo à sua vida, e, ainda por outro bafejo da sorte, veio avolumar-lhe o patrimônio a doação do Governo francês do palácio de sua sede.
E teve a Academia, então, instalação própria e luxuosa.
(Minhas memórias dos outros, 1935.)