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Discurso de posse

Permiti, senhores acadêmicos, que eu vos recorde, neste momento, as palavras com que há 120 anos, um velho e quase esquecido autor teatral francês, Eugène Scribe, iniciou o seu discurso de posse na Academia Francesa. O autor do Fra Diavolo assim abriu sua oração:

“Haveis lido, sem dúvida, que tendo a República de Gênova ousado desafiar o poder de Luís XIV, foi o doge forçado a vir a Versalhes implorar clemência ao grande rei. E, enquanto ele admirava aqueles jardins maravilhosos onde em tudo a Natureza foi vencida, os repuxos brilhando ao sol, as florestas de laranjeiras, as maravilhosas terraças, alguém lhe perguntou o que lhe causava maior pasmo ou lhe parecia mais extraordinário em Versalhes. E o doge respondeu: ‘O que aqui mais me espanta é a minha própria presença’”.

E eu também, Senhores, no meio de todas as ilustrações que me cercam, de todas as pompas literárias, que se oferecem às minhas recordações, e aos meus olhos, diria que o que mais me devia espantar era a minha presença aqui, se uma reflexão não me viesse fortalecer e acalmar. A Academia, essa Câmara representativa da Literatura, quis que todos os gêneros, reconhecidos pela carta de Boileau e pelas leis do bom gosto, tivessem no seu seio mandatários por ela escolhidos, E como, nas nossas assembléias legislativas, o eleito de um pequeno burgo vem sentar-se nos mesmos bancos que os representantes das grandes cidades, a Academia, dando-me um lugar em seu seio, veio elevar e engrandecer o humilde gênero de que sou o representante, inspirando-me assim o maior orgulho, se um simples autor de peças vaudevilescas pudesse agasalhar tal sentimento.

Esta palavra, até aqui, é do autor de Bertrand et Raton e de Adrienne Lecouvreur. Tornando-a por empréstimo, eu que sou também um autor de pequenas comédias, acrescentarei, por minha conta, que se o pasmo do doge de Gênova era o mesmo de Scribe, o de Scrlbe é o pasmo que eu, por minha vez, experimento.

A CADEIRA 34

Na verdade, ninguém teria mais motivos do que eu tenho, senhores acadêmicos, para inquietar-me com a alta honra que me concedeis. Analisando-me e analisando os meus eminentes antecessores, surpreende-me, mais do que a vossa benevolência, a desmarcada audácia com que ousei apresentar-me diante de vós, pleiteando uma sucessão a que não me davam direito nem as minhas virtudes, que são poucas, nem as minhas Letras, que são pobres. Se acolhestes sob o vosso teto e honrastes com a vossa companhia quem era tão despojado de títulos e tão carecedor de direitos, decerto menos o fizestes para exaltar-me que para demonstrar a ausência de preconceitos desta Casa ilustre. Elegendo-me, destes público e solene testemunho de seu e vosso espírito democrático. Em meu nome, não encontrastes mais que a oportunidade para o exercício desse espírito e estou a ver que, por entendimento secreto, ou tácito acordo, haveis deliberado, cada um de vós, que depois do decano da vida parlamentar do Império, de um deputado do Império e chanceler da República, de um governador, deputado, senador e ministro da República e de um governador de Estado e arcebispo ilustre, não conviria senão um ato de humildade, que estabelecesse assinalado contraste com o opulento passado da Cadeira 34. Tendes a sabedoria de elevar as vossas escolhas ao ponto de ambicionarem as glórias acadêmicas homens altamente colocados na vida pública nacional, e ao mesmo tempo consolidais a regra com exceção como esta, acolhendo os que se encontram, como eu, na planície, numa demonstração de que aqui podem chegar também os que não tenham por si o prestígio dos grandes nomes, a sedução da fortuna ou a exaltação do poder.

AMBIÇÃO DE GRANDEZA

Disse acolhendo, porque fui eu que vim ao vosso encontro e bati, não uma, mas duas vezes à vossa porta. E por que bati? Por que ousei tanto? Eu mentiria se não dissesse que era porque aspirava ao vosso convívio cordial e afetuoso, e queria ter a medida da vossa estima, expressa nos vossos sufrágios. Não é outra coisa o que têm buscado entre vós os que aqui me antecederam, inclusive os homens de Estado, a quem não bastavam os triunfos colhidos na tribuna parlamentar e nos altos postos de governo.

Pascal, tão da intimidade do nosso Machado de Assis, condenava a ambição de grandeza que mora no coração de cada ser humano, para exaltar a humildade que deve dominar o espírito cristão. Mas não o fazia sem compreendê-la e desculpá-la, porque via em tal ambição, imperiosa e irreprimível, um traço fundamental da nossa personalidade. “A maior de todas as nossas baixezas”, dizia o jansenista de gênio, é a procura da glória, mas é essa mesma que é a maior prova de excelência do homem. Porque, quaisquer que sejam as posses que ele tenha neste mundo, qualquer que seja o seu bem-estar e as suas comodidades essenciais, ele não se satisfaz se não estiver na estima dos outros homens.” Essa necessidade universal, de ser estimado, de que fala Pascal, é um elemento que não apenas impõe aos homens uma conduta capaz de lhes atrair simpatias, ou dedicações, mas faz com que tantos venham bater às vossas portas, no desejo insopitável de desfazer suas próprias dúvidas! Os homens de Estado – e têm sido tantos! – que aqui vêm impetrar guarida, não vos pedem em verdade a consagração de suas Letras: o que eles pedem é um atestado público de estima, que lhes dais, ou lhes negais, pois que assim o fizestes repetidas vezes. É por isso, senhores que até ilustres generais têm querido trocar suas espadas de verdade por estes nossos inocentes espadins, que não atentam contra coisa nenhuma, nem violam sequer a virgindade dos livros ainda não lidos que enchem as nossas estantes. Alguns deles, atenuando a sua marcialidade e o seu belicismo, já chegaram a ingressar neste pequeno exército sem soldados, em que todos são iguais, sendo embora tão diferentes, e, às vezes, até opostos entre si.
  

O CEARÁ E A ACADEMIA

Não quero deixar de assinalar com emoção a circunstância de que, há mais de três decênios, não ingressava nesta Casa um representante de minha província, o Ceará, representado, na fundação desta Casa ilustre por figuras como Araripe Júnior, Clóvis Beviláqua e Heráclito Graça, sobre ter em José de Alencar e Franklin Távora dois de seus patronos. Faz exatamente 33 anos que aqui ingressou o Sr. Gustavo Barroso, o erudito folclorista da Terra de Sol e Ao Som da Viola, o admirável contista de A Ronda dos Séculos, o historiador ilustre das nossas campanhas militares, a quem a condição de adversário político jamais tolheu a admiração intelectual e a amizade que há tantos anos lhe tributo. Sou o quinto filho do Ceará a ingressar nesta Casa –, não, porém, porque lhe tenham faltado figuras capazes de alcançar, pelo seu merecimento, o lugar que entre vós alcancei pela vossa bondade. Domingos Olímpio, o autor de Luzia-Homem, esteve no limiar da Academia, quando de sua fundação, e depois, duas vezes candidato, não logrou ser eleito, como seria de justiça. Se há alguns adversários que facilitam eleições, há outros que fulminam e sideram os concorrentes. Uma vez, teve o romancista cearense de se defrontar com a figura impressionante de Euclides da Cunha, a que ninguém poderia disputar a precedência. E da outra vez preponderou a mocidade e a simpatia de Mário de Alencar, ainda longe de ter realizado a obra literária que veio a produzir. Farias Brito, de não menor merecimento, tentou suceder ao cearense Heráclito Graça, e teríeis então tido um filósofo no lugar de um gramático. Mas a timidez de Farias Brito levou-o a recuar da primeira investida, e o recuo enfraqueceu-lhe a candidatura quando a renovou na vaga de Sílvio Romero. Além destes, outros houve, que poderiam ter aqui chegado, como Rodolfo Teófilo, Papi Júnior, Antônio Sales e Leonardo Mota. Foram, porém, homens desligados da metrópole intelectual do País, e mesmo Antônio Sales, poeta e romancista, que militou na imprensa do Rio de Janeiro e nela se distinguiu ao ponto de entreter polêmica com João Ribeiro, cedo se retirou para a terra natal e ficou praticamente esquecido. Nomeando alguns dos vultos das Letras cearenses que poderiam ter com mais direito do que eu aspirado à Academia, não lhes quero simplesmente reverenciar a memória, e, embora esta Casa não tenha preconceitos regionalistas, desejo afirmar que aqui me sinto menos como um legítimo detentor desta Cadeira que como uma espécie de curador de ausentes...

O GOSTO DOS CONTRASTES

Rara e espaçada é a nossa vinda a esta Casa, porque não apenas exigis que medeie a idade de Cristo entre a eleição de um e outro cearense, como ainda nos aplicais uma cláusula singularíssima: por tradição que se firmou na vaga de D. Silvérlo Gomes Pimenta, quando da eleição do eminente Sr. Gustavo Barroso e se confirmou agora na de D. Aquino, só nos pode caber a vaga de um acadêmico arcebispo. O que me deu esperanças ao apresentar a minha candidatura à vaga deste ilustre antístite foi saber que esta Academia tem, por vezes, o gosto dos contrastes e das soluções inesperadas. Lembro-me de que, quando se deu a vaga de Alcindo Guanabara, considerado o grande jornalista da República, a qualquer homem da imprensa, e muitos, sem dúvida, haveria, no rol dos possíveis candidatos, preferistes as virtudes sacerdotais e a velhice do arcebispo de Mariana. Este era uma glória da igreja pela cultura, pela fé, pela piedade, pelo zelo e intransigência de seu apostolado. De Alcindo Guanabara, servidor da política de Campos Sales e, por fim, da de Pinheiro Machado, dizia-se, porém, que tinha convicções para as ocasiões e que não tinha ocasião para as convicções. Já aqui foi narrada maliciosa anedota preparada para demonstrá-lo. Anedota improvável, sem dúvida, e já contestada com boas razões, mas nem por isso menos expressiva. É que lhe encomendara a direção do Jornal do Commercio um artigo sobre Cristo para uma sexta-feira da Paixão. Acertada a retribuição e o dia da entrega, Alcindo Guanabara, pela força do hábito, teria interrogado: “E esse artigo sobre Cristo, é a favor, ou contra?” O dente agudo da sátira mordia o jornalista que, amigo de José do Patrocínio, tirado por este da obscuridade, com ele rompera todos os vínculos para se converter no mais acirrado adversário da Abolição, nas colunas escravagistas e conservadoras do Novidades... Talvez por isso mesmo D. Silvério Gomes Pimenta, ao ser recebido nesta Casa, declarou que sabia que o seu discurso ia ser objeto de grande curiosidade, pois todos queriam ver como se sairia fazendo o elogio de um herege. Mas o sutil arcebispo, com as galas de sua inteligência e a sua capacidade de espargir indulgências, garimpou os escritos de Alcindo Guanabara e deles extraiu algumas frases que lhe bastaram para que o proclamasse um espírito voltado para Deus...

No caso presente teríamos uma inversão daquele espetáculo: é ao herege que cabe a tarefa de fazer o elogio de uma figura eminente do clero. Mas o meu estado de perplexidade é tal que nem mesmo saberei dizer se sou de fato herege, embora, em sã consciência, não possa nem queira afirmar que sou católico. O que alivia um pouco os meus escrúpulos de sucessor de um arcebispo é que costumam teimar comigo, assegurando-me que o sou, alguns dos meus amigos padres, e até um bispo e um arcebispo que me honram com sua nobre estima. É uma forma que têm de preservar a nossa amizade encurtando generosamente as distâncias que poderiam separar-nos. Insistem em julgar-me não pelas minhas palavras, de negativa, mas pelos meus atos, que supõem ter uma expressão afirmativa. Um deles chegou a um requinte dialético, que não me furtarei a citar.

Sustenta que os verdadeiros católicos não são aqueles que assim se proclamam através de palavras logo desmentidas por seus próprios atos, e sim aqueles que, mesmo afirmando o contrário, revelam, pela sua forma de proceder, um espírito verdadeiramente cristão. Enquadrados por uma lógica tão férrea, teremos que nos render e admitir que o Brasil é um País essencialmente católico, pois que sua população há de estar praticamente dividida, não posso dizer em que proporção, entre católicos de confissões e católicos de ações. Espantará a alguém tal conclusão? Pois se até o genial e louco adolescente Arthur Rimbaud que preseguia os padres com ditérios da maior impertinência, e escrevia “Morte a Deus!” nos muros das igrejas, foi postumamente declarado um crente! A Claude Edmonde Magny tudo isto se apresentava como atos de fé indiscutíveis. E escreveu: On ne cherche à profaner que ce quon tient pour sacré. Tenho, para mim, que a universalidade da Igreja vem da disposição cordial com que aceita como provas de fé ao mesmo tempo a compunção e a blasfêmia.

O PADRE SOUSA CALDAS

E não estará certa nisto? E haverá caso que melhor o demonstre do que o do patrono da Cadeira 34. O padre Antônio Pereira de Sousa Caldas? Perseguido como incréu pelo Tribunal do Santo Ofício, não chegaria a ser uma das mais altas glórias da Igreja? Teve um destino singular este brasileiro educado em Portugal. Era tão precoce e tão apegado aos estudos que ingressou na Universidade de Coimbra com permissão especial, pois lhe faltavam ainda três anos para alcançar a idade mínima, exigida aos matriculados. Soprava então da França o vento das idéias novas, e os enciclopedistas preparavam, com a letra impressa, a derrocada do Absolutismo. O ano do nascimento de Sousa Caldas – 1762 – era o mesmo em que Jean-Jacques Rousseau publicara o Contrato Social, era o mesmo em que Émile, ou le Traité d’Education era banido na França por suas idéias manifestamente antimonarquistas. Sua juventude, seu período universitário, coincidia com o crepitar das reivindicações que, dentro em pouco, sobre os escombros da Bastilha e os despojos da realeza, iriam estabelecer os Direitos do Homem. Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau eram os nomes que seduziam as imaginações moças e atrevidas. Até Coimbra chegou o eco desse tumulto de idéias, desse rumor ainda confuso que preparava um mundo novo... E era o jovem universitário coimbrão tão ousado nas idéias e tão franco na maneira de enunciá-las que, acusado de ser pedreiro-livre, o Tribunal do Santo Ofício resolveu honrá-lo com suas atenções, ordenando-lhe a prisão. O tio, sob cuja guarda se encontrava, obteve para ele a proteção do governo, sob a condição de encerrálo, por seis meses, no Convento de Rilhafoles, onde, para curar-se da heresia, devia fazer exercícios piedosos em companhia dos frades. O que há de extraordinário é que o estudante perseguido tão bem se deu no meio deles que só por muita insistência da família terminou os estudos de Direito em Coimbra. Doutorado, rejeitou o cargo de juiz de fora no Brasil, e nem os vários meses que permaneceu em Paris e em Lisboa, já depois de formado, lhe amorteceram o impulso para a vida religiosa. Uma vez maior, dirigiu-se a Roma e ali obteve ordens sacras. Queria ser padre, nada mais que padre. Veio para o Rio de Janeiro, onde se tornou famoso pela eloqüência e cultura. Várias vezes foi-lhe oferecida a dignidade episcopal, mas sempre a recusou, não querendo ser bispo.

UM SERMÃO FAMOSO

O orador sacro Sousa Caldas era de tal modo eloqüente, tão imaginoso, tão torrencial, tão fluente, que poderia falar duas, três, quatro horas seguidas, com encanto geral dos ouvintes sobre o mais simples de todos os assuntos. A respeito desse dom extraordinário conta-se que, certa vez, estava pregando na Igreja de Santa Rita, quando outro sacerdote teve de sair com o Santíssimo, para atender a um doente em artigo de morte. O doente morava nos confins da Gamboa e o outro padre para lá se fora a pé, acompanhando a pessoa que trouxera o chamado. Como seria longa a demora, Sousa Caldas teria que continuar a prédica até o momento de seu regresso... Após esgotar o tema do Evangelho sobre o qual falava, Sousa Caudas entrou a discorrer sobre a Eucaristia. E falava, falava, falava... Falava com tão persuasiva eloqüência, com tal beleza de expressão, que quando o viático voltou, mais de duas horas depois, estava ele ainda a falar, sem que os ouvintes se tivessem dado conta do tempo decorrido. “Parecia Inspirado”, dizia dele o cônego Januário da Cunha Barbosa, “parecia inspirado por um poder sobrenatural”.

POESIA DAS BOAS AÇÕES

Pois este Bossuet brasileiro tinha o condão de reunir à eloqüência de grande pregador a humanidade de um frade mendicante, aos arroubos de um grande tribuno a simplicidade de um carmelita descalço. Não fazia o menor caso dos bens materiais e o dinheiro que lhe vinha às mãos logo delas saía, repartido com os pobres. Narra-se que, um dia, no Passeio Público, conversava com alguns amigos, quando um mendigo em andrajos deles se acercou. Sousa Caldas não tinha dinheiro algum no bolso da batina. Mas seguiu o pedinte, notando depois os amigos, ao regressar, que não mais trazia nos sapatos as fivelas de prata, antigamente de uso. Como sua oratória, sua Poesia era também a de um catequista. A tradução que fez dos Salmos de David é cantada ainda hoje, senão nos templos católicos, ao menos nas igrejas protestantes do Brasil. Pela obra poética, podemos estimar o orador sacro, avaliarlhe os arroubos, medir-lhe as imagens, pesar-lhe a eloqüência. Vêde, por exemplo, este soneto em que descreve uma tempestade:

Tremei, humanos: toda a natureza,
Do seu Deus ao aceno convocada,
Sobre negros trovões surge sentada

Em cruel fúria contra nós acesa.
Do rosto seu escondem a beleza
Medonha escuridade acompanhada
De abrasadores raios, e pesada
Saraiva, que no ar estava presa.

Agora, perde a cor, de medo cheio
O monarca feliz e poderoso,
Que o vil orgulho abriga no seu seio.

Tu descoras também, ateu vaidoso,
E menos cego, sem achar esteio,
A mão que negas beijas duvidoso.

A humildade que o acompanhou na vida também o seguiu na morte. Desaparecido a 2 de março de 1814, foi sepultado no convento de Santo Antônio, e para o seu jazigo o poeta José Eloy Ottoni escreveu um epitáfio
em latim.

Onde, porém, está o seu túmulo? Em lugar nenhum...

Exumados os seus ossos, ao fim de alguns anos, e não tendo sido reclamados pela família, foram colocados num ossuário comum, do qual, já bem cheio, os bons frades se desfizeram, atirando-os ao mar. Assim teve Sousa Caldas uma sepultura de almirante holandês... A santidade de sua vida parecia reclamar como coroamento esta humilhação póstuma. E se é verdade que os humildes um dia serão exaltados, sua exaltação começou com a escolha do seu nome para patrono desta Cadeira. As obras pias que praticou não valerão menos que as poéticas. Se estas lhe deram para sempre um lugar nesta Casa, e se, como as academias, o céu também existe, há de nele haver lugar para Sousa Caldas. E, em vez de longos discursos, ouvirá o coro dos anjos do Senhor, sentado numa poltrona mais macia e de um azul ainda mais celeste que o das nossas...

O ECLETISMO DA ACADEMIA

O destino desta Cadeira tem sido o de trazer à vossa companhia homens ligados às atividades da política partidária e ao exercício de posições na vida pública. O primeiro ocupante foi um historiador, um poeta, um crítico, e um ficcionista: João Manuel Pereira da Silva. Este brasileiro ilustre, pai de uma filha belísslma e elegante, que fazia sucesso nos salões mundanos de Paris depois da queda de Napoleão III, era o mais antigo dos deputados do Império, pois vinha da legislatura de 1850, quando, em 1888, foi escolhido senador na lista dos conservadores da Província do Rio de Janeiro, por influência, segundo então se escreveu, da senhora Condessa de Barral, amiga e confidente de D. Pedro II. Não foi ministro de Estado, nem chefe de gabinete, nos quarenta anos redondos de sua intermitente atividade parlamentar no Império. Mas iniciaria, apesar disso, a tradição política que marca esta Cadeira. Outras tiveram, também, a ocupá-las, expressões significativas do regime desaparecido – um ex-deputado, ex-senador e presidente de província como Alfredo d’Escragnolle Taunay, Visconde do Império; o presidente de província Inglês de Sousa; antigos ministros de Estado como o Barão de Loreto e o Barão Homem de Melo; parlamentares notáveis do antigo regime como Afonso Celso Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, este um monarquista que rompera os vínculos com o Império por amor à idéia da Federação. Liberais e conservadores, monarquistas e republicanos, couberam todos eles no grupo inicial da Academia, porque esta, ao surgir, no seu ecletismo, não pretendia ser uma instituição política eivada de espírito sectário, mas uma representação da cultura e da inteligência brasileira, sem preconceitos de opinião partidária ou de escolas literárias.

João Manuel Pereira da Silva é, dos fundadores desta Casa, um dos que ficaram, como Artur Azevedo, sem elogio acadêmico. Seu sucessor, o Barão do Rio Branco, exatamente como Vicente de Carvalho, sucessor de Artur, tornou posse por uma simples carta, o que era então permitido pelo vosso regimento. É essa uma das várias razões pelas quais o seu nome vai caindo no esquecimento. Era, contudo, um homem digno de ser aqui lembrado.

Sabemos que foi, como Varnhagen, um dos pioneiros da nossa historiografia. Faltava-lhe, talvez, o espírito crítico e a capacidade de síntese, uma teoria ou filosofia da história, que infundisse aos seus trabalhos um valor permanente. Foi principalmente um vulgarizador, sendo que grande parte dos assuntos de que se ocupou foram aqueles de que se tornou testemunha, por força de sua situação na imprensa e na Política.

Acumulou elementos, historiou fatos, biografou pessoas, fornecendo subsídios valiosos aos que vieram depois dele. Além da História da Fundação do Império Brasileiro, da História do Segundo Período do Reinado de Pedro I do livro sobre a Menoridade de D. Pedro II e as Memórias do Meu Tempo, foi também um dos precursores do conto brasileiro, conforme o demonstrará, em breve, o ilustre acadêmico Barbosa Lima Sobrinho. Educado em Paris, fez parte de um grupo de brasileiros privilegiados, que Joaquim Nabuco declarou que poderiam ter fundado uma Academia Brasileira..., na França! Lembrava, além de Pereira da Silva, os nomes de Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre, Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sales Torres Homem, Maciel Monteiro, Joaquim Caetano e outros. Sobre todos eles, teve Pereira da Silva a distinção de ter sido o colaborador da Revue Contemporaine e da Revue des Deux Mondes, da França, e de ter escrito, diretamente em francês, um livro sobre a situação social, política e econômica do Brasil e outro sobre literatura portuguesa. Este último livro foi apreciado por Machado de Assis, na coluna “A Semana Literária”, que publicava no Diário do Rio de Janeiro, a 20 de abril de 1886.

Depois de notar que se tratava de uma série de estudos publicados originariamente na Revista Contemporânea, de Paris, e de salientar o valor da contribuição prestada às Letras portuguesas, Machado de Assis assim conceituava os pendores do crítico e historiador literário:

A sua crítica é geralmente justa, delicada, convencida, nem sempre profunda, é verdade, e muitas vezes desejaríamos que o autor se demorasse nos estudos de certos livros; mas é preciso lembrar que o Sr. Pereira da Silva tinha que dar antes uma notícia que uma apreciação de obras, em grande parte estranhas aos leitores franceses.

Não foi esta, aliás, a única vez que Machado de Assis se ocupou das Letras de João Manuel Pereira da Silva. Antes já a História da Fundação do Império fora por ele comentada, ao aparecer o primeiro volume.

Salientava a figura tutelar desta Casa: “É difícil aos homens militantes da política apreciar com o olhar imparcial do historiador os acontecimentos do passado; mas uma vez alcançado isso, a glória realça o dever e o aplauso redobra de entusiasmo.” Era o caminho que Machado de Assis esperava que Pereira da Silva trilhasse. Quando, retirado da vida pública, escreveu ele as Memórias do Meu Tempo, deu-lhes um tom de imparcialidade tão grande que há nelas, em geral, mais homenagens aos liberais, como Teófilo Ottoni e Francisco Otaviano, do que mesmo aos conservadores, seus correligionários. Tem esse livro páginas muito vivas e esclarecedoras. Nenhum dos nossos historiadores terá com mais precisão descrito os efeitos do primeiro encilhamento e o craque bancário, que se lhe seguiu, na administração financeira de Sousa Franco. E o melhor elogio que se lhe fará é o de dizer que Oliveira Lima repetiu quase textualmente algumas passagens de seu livro, ao tratar do assunto em O Império Brasileiro.

Um dos seus trabalhos, Manuel de Morais, alcançou divulgação na língua inglesa, em tradução de Richard e Isabel Burton. O autor dos Varões Ilustres do Brasil desde os Tempos Coloniais, prefaciador das obras poéticas de Tomás Antônio Gonzaga e Junqueira Freire, tinha com Sousa Caldas apenas uma afinidade: dominava a tribuna parlamentar como aquele dominava o púlpito.

Na Revue Contemporaine, como na Revue des Deux Mondes, da França, João Manuel Pereira da Silva defendeu, com fervor de moço, a abolição do cativeiro. Mas, vindo para o Brasil, integrado no Partido Conservador, seria um elemento de oposição às reivindicações sustentadas pelo gabinete do Visconde de Rio Branco. A Lei do Ventre Livre encontraria, nele, um opositor tenaz, na Câmara dos Deputados. Cada uma de suas palavras era para condenar a “desgraçada instituição do cativeiro”, mas jamais reconhecia que a marcha para a emancipação fosse oportuna. Queria que a isso se chegasse pela ação privada, por meio de instituições filantrópicas, sociedades libertadoras da intervenção da maçonaria, nunca, porém, por intervenção governamental. Em suas próprias palavras:

Declaro à Câmara que a idéia de libertar todos os nascidos de ventre escravo é em si mesma fascinadora, bela, utilíssima, mas como propaganda moral, para ser espontaneamente deliberada pelos proprietários de escravos, não, porém, decretada por lei do Estado.

Este conservador era, contudo, um espírito progressista, sob certos aspectos, e excetuada essa atitude, ditada menos pelos seus sentimentos pessoais que pela intransigência do reacionarismo saquarema, tinha rasgos de verdadeiro democrata. Por exemplo, quando, em discurso de 11 de junho de 1869 combatia o recrutamento a dente de cachorro para o exército nacional. “Não vos punge – perguntava ele aos seus pares nesse discurso –, não vos punge a desigualdade perante a lei, condenando somente as camadas pobres e misérrimas da sociedade a dar contingentes para o exército, criando privilégios e isenções aristocráticas para as classes não só superiores, mas até médias do povo?” Contra o recrutamento forçado, propunha o engajamento voluntário, “a obrigação a todos os cidadãos de servir na tropa de linha para poderem exercer cargos públicos na sociedade e gozar de direitos políticos, como na Prússia, ou então, o sorteio, como na França.” Foi um paladino do desenvolvimento do nosso sistema ferroviário, pugnando, com veemência, ele que nem mineiro era, pela construção de uma via férrea que comunicasse Minas Gerais com o mar, pois lhe parecia injustiça gozarem já de tal vantagem Pernambuco, Bahia e São Paulo. Muito do que pregou da tribuna documenta esse espírito progressista, de homem que muito aprendera em seus contatos com o Velho Mundo. E ainda há nos seus discursos parlamentares algumas palavras que não perderam a atualidade, como as de um discurso de 22 de agosto de 1867, em que combatia o exagerado empreguismo reinante no Brasil. Para ele tudo começou em 1806, quando a corte portuguesa para aqui se transferiu e o Rio de Janeiro ficou cheio de fidalgos ociosos. “Criaram-se lugares na administração para lhes dar meios de vida” orava Pereira da Silva.

Cercou-se o funcionalismo de importância, de consideração, de prestígio. Pegou o gosto ou moda de ser empregado público. Ricos e pobres não acharam posição social senão no funcionalismo. Desde então temos maior número de empregados do que precisa a administração pública. Continuou a moda ou mania, que perdura ainda hoje. Houve e há tendência excessiva para os cargos do Estado. Temos um exército de empregados públicos. O país quase se converte em funcionalismo, e é isto uma grande calamidade pública. O número excessivo impossibilita pagar bem e embaraça até o serviço, que é mal feito pelo amontoado e crescido do pessoal. Criam-se empregos para os indivíduos, e não se procuram cidadãos para o emprego deles e de sua capacidade precisa. Sempre que se reformam as repartições entre nós é para aumentar o pessoal e os ordenados.

Nem parece esta, senhores acadêmicos, uma voz que ressoa, vinda de um passado remoto! É que nada se parece tanto com esta República, como aquele Império que ela destruiu por sua inadequação e por seus erros. Isso nos adverte de que pouco vale mudar de regime quando os homens não mudam de mentalidade...

Em 1889, fez Pereira da Silva, na escola pública da Glória, uma série de conferências sobre a Literatura portuguesa e a brasileira, até fins do século XIII, e com os apanhados da taquigrafia, a seguir corrigidos, compôs um volume de quase quatrocentas páginas. Aí existem algumas linhas que valem como o elogio do patrono desta Cadeira:

Refulge uma selva de inspiração na quantidade de poetas no fim do século, uns didáticos, outros epigramáicos, estes imitadores, procurando aquelas novas atmosferas. Acima de todos, pela elevação do pensamento e pela unção mística, o padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, orador sagrado que na sua época só depara rivais em Frei Francisco e São Carlos, e às vezes em José Agostinho de Macedo, desigual nos vôos, mais instruído e eloqüente em seus momentos felizes.

Contudo, era Pereira da Silva um escritor anticlerical Sua última conferência, que é também o último capítulo de seu livro, embora tendo o imperador Pedro II como um dos ouvintes, se encerra com uma crítica veemente ao reinado de D. Maria I, bisavó do nosso último monarca. A rainha louca teria instituído a beatice em Portugal, cuja corte se povoara de novo de frades e confessores.Cresciam os jesuítas em número e prestígio, multiplicando-se as manifestações de intolerância com relação ao teatro, em cujos palcos as mulheres não poderiam subir, tal como na Inglaterra de Elizabeth, mas apesar disso entretinham-se, com grandes despesas, multidões de sopranos, para entoarem cânticos nas igrejas. Pereira da Silva diz que havia procissões sobre procissões, que se multiplicavam as ordens religiosas femininas e todas as freiras de uma destas, o cláustro de Alcântara, tinham sido processadas pelo Tribunal do Santo Ofício, por ordem de um arcebispo, porque se dizia que ali entrara o diabo uma noite por uma janela...

Quando apareceu essa obra, em volume, em 1886, Carlos de Laet, no “Microcosmo”, de 13 de abril, do Jornal do Commercio, não lhe regateara elogios, principalmente no tocante à pureza estilística e à vernaculidade, mas teve um rasgo de protesto contra o que considera um prejuízo do autor. E diz:

Quero aludir aos preconceitos religiosos... Preciso se torna explicar-me... Quererei com aquilo inculcar que o ilustre conselheiro seja um desses historiadores impensadamente milagreiros e que, com pueris narrativas, mal sirvam à causa da religião que professam? Não, pelo contrário; mas neste contrário é que vai justamente a injustiça do historiador. O seu livro é um pertinaz arrazoado contra a influência do catolicismo em Portugal. Desgraças, para que evidentemente concorreram diuturnas e complexas causas, são teimosamente atiradas à conta do elemento religioso. No fim de contas, padres e frades é que levam a culpa de tudo. Não se pode ir mais longe em tal modo de ver, porém tudo isso pareceu-me singular, a mim, que já suponho atrasado de mais de meio século o velho ódio sans culotte que só se apaziguaria enforcando o último frade nas tripas do último rei. Essa tenção feita destrói a imparcialidade histórica, que é mister respeitar.

Esses rasgos de Pereira da Silva e Carlos de Laet nos levam a uma reflexão curiosa: a de que desses dois fundadores teriam andado mais certos se tivessem trocado de patronos; era o segundo o que mais merecia ter tido por patrono um padre e na linha de sua sucessão um arcebispo... Fique, nestas palavras, uma referência ao menos, e ainda que breve, ao primeiro ocupante desta Cadeira, sobre o qual neste recinto até aqui se fez silêncio...

RIO BRANCO E A ACADEMIA

O sucessor de João Manuel Pereira da Silva dispensaria a minha palavra, tantas vezes tem sido aqui lembrado. Mas pareceria omissão imperdoável, senão criminoso desdém, ou atrevida impertinência, passar pelo vulto excepcional de Rio Branco sem render-lhe um tributo, ainda que apagado, sem a vibração das grandes vozes que no seu louvor me antecederam. Homem público dos mais eminentes de nossa Pátria, José Maria da Silva Paranhos Júnior de tal modo se agigantou no cenário nacional que nos dias de hoje é quase geral a impressão de que o acolhestes no seio desta Academia para que ela se beneficiasse com os reflexos do seu prestígio e com as cintilações de sua glória. Não foi isto, porém, o que verdadeiramente se deu: essa glória apenas despontava. Rio Branco não dera mais que o passo inicial para a realização da grande obra de demarcação das nossas fronteiras. Não foi, até então, mais que o simples advogado do Brasil, junto ao árbitro norte-americano, na questão das Missões. Negligenciada no Império, a República se dera pressa em tentar resolvê-la. Não houvera apenas pressa. Além do açodamento incompreensível, num governo que ainda não havia sequer adquirido estrutura jurídica, houve uma dadivosidade tão pródiga que tocou as raias do escândalo. A missão do Governo Provisório a Montevidéu ficaria registrada em nossos anais diplomáticos como um exemplo de como se não deve agir. Recusados os termo do tratado que Quintino Bocayuva negociara, o primeiro Presidente civil da República, Prudente de Morais, tivera o mérito de descobrir, na pessoa de Rio Branco, o homem para a ocasião. Foi o barão quem levou a Grover Cleveland, Presidente dos Estados Unidos, a convicção de que o Brasil tinha direito à parte do território das Missões configurada hoje pelo nosso mapa, e reclamada, antes, pela Nação argentina. Quando Rio Branco aqui ingressou não tinha a seu critério a vitória do Amapá, nem ascendera ainda ao posto de chanceler, no qual permaneceria até morrer, e que lhe daria a oportunidade de solucionar a questão do Acre. Por tudo isso, é lícito dizer que esta Academia, em 1898, acolheu menos o diplomata ilustre que o cultor das belas-letras, o antigo jornalista cuja pena deixaria traços vivos na imprensa do tempo do Império, o estudioso da História Pátria que tinha a seu crédito as “Efemérides”, as anotações à obra de Schneider sobre a Tríplice Aliança e a biografia do Barão do Serro Largo. Eleito em ocasião em que se encontrava ausente do País e sem os benefícios de uma candidatura única, foi este o verdadeiro pórtico de sua fama. Foi daqui que partiu o primeiro ato de reconhecimento nacional de seus altos méritos. Antes que Rodrigues Alves o chamasse para o Ministério, antes que o Congresso Nacional lhe proclamasse a benemerência, antes que as multidões o consagrassem com o seu aplauso, antecipando-se a tudo e a todos, a Academia Brasileira de Letras o integrou em seus quadros, e o fez quando esse homem avesso às convenções era ainda um continente rico de energias cívicas à espera de quem o descobrisse.

Amadurecera no voluntário exílio, longe da Pátria, o moço estudioso, mas alegre, orgulhoso da agilidade com que executava os lances mais difíceis da capoeiragem e que desafiara os preconceitos da rigorosa sociedade imperial casando com uma atrizinha do famoso Alcazar da rua da Vala, uma das importações do empresário Arnaud... A vida, para ele, não fora apenas a dos mapas, a dos manuscritos, a da História, a dos arquivos, a dos documentos, a dos tratados. Vivera, quando moço, como um moço, e por isso mesmo tivera capacidade para devotar-se, por inteiro, na idade madura, ao serviço da Pátria. Os que foram moços com o espírito de moços, com as extravagâncias e as alacridades próprias da juventude, é que em geral chegam à velhice aureolados de dignidade. Ai dos moços que vivem a mocidade como velhos, porque estes quererão desforrar-se, com a triste ilusão de que poderão viver a velhice como moços! E terão apenas encontrado igual ridículo nas duas extremidades da vida, o duplo ridículo dos velhos precoces e dos adolescentes retardatários... O Juca Paranhos, nas noitadas do Alcazar, sobrevivera apenas nos gostos burgueses e nas atitudes popularescas, com que despia o fraque ministerial para regalar-se, em mangas de camisa, com as suculentas peixadas à lusitana nos restaurantes das cercanias do cais. No resto, cederia passo ao homem de gabinete, capaz de longas vigílias, de intermináveis serões, atento sempre, dia e noite, aos absorventes deveres do seu cargo. Tão absorventes que o roubaram ao convívio da Academia, em que não chegou a tomar posse, mas a que prestigiava em todas as oportunidades, fazendo de Machado de Assis um companheiro de mesa e, apesar de sua aversão aos discursos, o orador oficial do almoço a Guglielmo Ferrero. Nada faltou à sua consagração – o nome numa Avenida, numa cidade, num território –, nem uma estátua em bronze, em praça pública, aquela estátua em cujo pedestal Carlos de Laet queria que figurassem duas nobres efígies: uma a de Joaquim Caetano da Silva, patrono da Cadeira 19 desta Casa, e um dos precursores da conquista do Amapá, com seus profundos e alentados estudos sobre o Oiapoque e o Amazonas; outra, a de Teixeira de Melo, um dos fundadores desta Academia, menos conhecido, porém, não menos eficaz preparador de outra vitória, a do território das Missões. Nenhum elemento faltou à sua consagração; nem mesmo o literário, com a biografia monumental de Álvaro Lins; os notáveis estudos de Levi Carneiro, e como ainda não bastasse, e decerto não basta, em se tratando de uma figura como a de Rio Branco, aí está o Sr. Luís Viana Filho, entregue a um intenso e apaixonado labor, para levantar, ainda uma vez, o gigantesco perfil do barão, com a minúcia de investigador e a acuidade de analista que são o traço fundamental de seus estudos biográficos. Se há palavra nova a dizer sobre Rio Branco irá dizê-la esse confrade que me venceu no primeiro pleito acadêmico a que concorri e sem que eu me sentisse derrotado, pois a Academia Brasileira de Letras nele distinguira um lídimo escritor, um homem de letras em trânsito na Política, e não um político que surgisse como cultor acidental das Letras. Direi apenas que se nada faltou à glória de Rio Branco, tampouco faltou sua figura extraordinária à maior glória desta Academia.

O SUCESSOR DE RIO BRANCO

Depois de Rio Branco, passou a ocupar esta Cadeira o General Lauro Severiano Müller. Não era este um homem de letras, e para cumprir a formalidade estatutária, fez imprimir um dos seus discursos políticos, “Os Ideais Republicanos”, em papel encorpado e tipos grossos – discurso que Lima Barreto, nas páginas satíricas dos Bruzundangas, disse ter saído em papelão e impresso em letras garrafais. A explicação da sua candidatura foi dada por Medeiros e Albuquerque. Entrou Lauro Müller nesta Academia derrotando o historiador, educador e jornalista Ramiz Galvão, que só muitos anos depois aqui encontraria um lugar. Ramiz Galvão era um barão de 1888, mas vivia apagado, na modéstia de sua cátedra e de suas tarefas do Instituto Histórico e Geográfico. Lauro Müller era, naquela hora, uma das expressões mais luminosas da vida pública brasileira. Nele o que viam os acadêmicos, que o atraíram, que o animaram, quase diria que o seduziram a candidatar-se, era um companheiro de Rio Branco no grande Ministério de Rodrigues Alves, o maior dos presidentes da primeira fase da vida republicana. Era um daqueles que haviam impulsionado o progresso brasileiro, precipitando o ritmo da nossa civilização, abrindo perspectivas novas, construindo, saneando, demarcando fronteiras, querendo fazer do Brasil uma verdadeira Nação. Notai que, daquela equipe, daquele conjunto de homens públicos jamais igualados em nenhuma circunstância da vida brasileira, aqui chegaram os três principais: Rio Branco, Oswaldo Cruz e Lauro Müller. – Este havia sucedido a Rio Branco na pasta das Relações Exteriores, e se era difícil a escolha de novo chanceler, o nome de Lauro Müller há de ter sido lembrado menos pela sua experiência, que era pouca, naqueles domínios, do que por ter sido um dos ministros de Rodrigues Alves, um dos companheiros de Rio Branco no ministério das capacidades.

Medeiros e Albuquerque dizia que o mérito de Lauro Müler como homem de letras não teria sido escasso ou desdenhável, se a vocação incontestável do escritor, documentada em algumas páginas já citadas nesta Casa, não fora nele suplantada por uma outra, mais imperiosa, a do homem político. Mal saído da Escola Militar, já participava de conciliábulos republicanos e assinava pactos de sangue. É dos que, a 15 de Novembro, ergueu a espada contra o ministério Ouro Preto e contra o Imperador. Está no piquete que avança para deter o Ministro da Marinha, Barão de Ladário, que tentava reunir-se ao ministério, ainda encurralado naquela praça d’armas. É ele quem faz recolher o almirante ferido ao palácio dos condes de Itamaraty e manda buscar os médicos que lhe salvam a vida. O único sangue derramado na manhã daquela parada cívica não chega, assim, a dar cores de tragédia à proclamação da República: o barão ferido defendia menos o Império que a sua própria dignidade de ministro. E há de vir, em breve, a sentar-se, como também se sentaria aquele tenente, numa das poltronas do Senado da República.

Onde melhor retrato poderíamos encontrar da alma brasileira? As nossas revoluções, todos o sabem, geralmente se resolvem em largos gestos de confraternização. Os opositores mais veementes, os articuladores de libelos, os subscritores de manifestos ameaçadores, os que firmam com letras de fogo a indignação dos J’Accuse! de hoje são os reconciliados de amanhã, entre lágrimas copiosas e abraços fraternos. E de tal forma que, não raro, se anulam as intenções desses movimentos na mole complacência dos seus líderes e pregoeiros. Sobrevém a fusão ou a confusão dos campos, antes opostos, logo que um deles arvora a bandeira do triunfo. As conversões mais recentes se revestem de tal fervor que os sinceros e antigos adeptos da causa vencedora começam a ser sacrificados para tomar possíveis as compensações aos cristãos novos. E, ao fim de tudo, chega-se à conclusão de que quanto mais se muda tanto mais tudo permanece a mesma coisa. No alvorecer da República não foi senão isto o que aconteceu. Antes de um ano após o 15 de Novembro um dos barões conservadores da Monarquia, como Lucena, já governava um Estado, e meses depois estava feito ministro, enquanto um líder republicano do destemor de Silva Jardim era atirado às feras... A sabedoria de Lauro Müller foi a de ter continuado em evidência, sem conhecer o ostracismo, desde que em 1890 o despachara o Governo Provisório para Santa Catarina. Governador de Estado aos 26 anos, quando o bigode mal começava a sombrear-lhe o lábio superior, foi uma das poucas e legítimas revelações de estadista da novíssima geração republicana, a que se seguira à dos signatários do manifesto de 1870.

Muitos militares, velhos e jovens, foram elevados a tais posições, sem esquecer os civis de tradição republicana. Mas, enquanto um histórico, como Pedro Tavares, rapidamente se incompatibilizava no Maranhão, e enquanto um militar, como Clarindo de Queirós acabaria prisioneiro em palácio, no Ceará, sob a metralha dos seus inimigos, Lauro Müller não conheceria dificuldades de tal natureza. Constituinte, governador, deputado, senador, ministro do Estado –, só não alcançou a presidência da República, que ajudara a fundar. Ministro da Viação realizou, com a sua mentalidade de engenheiro militar e de homem de ação as obras portuárias do Rio de Janeiro, como complemento das quais fez traçar e executar, pela mão de Frontin, a Avenida Central, hoje Rio Branco. Ferindo interesses privados, tapando os ouvidos ao clamor dos que protestavam, ignorando a veemência dos editoriais de quase toda a imprensa –, que considerava um absurdo e um desperdício a abertura de umavia tão ampla –, Lauro Müller deu carta branca a Frontin. Arrastados, ambos, pela via da amargura, o único erro que cometeram foi o de não a terem duplicado, com a abertura de outra avenida, paralela e com as mesmas dimensões.

Duas vezes sucessor de Rio Branco, no Ministério das Relações Exteriores e na Cadeira 34 desta Casa, não escapou à maledicência e à sátira,– e como fosse muito magro, diziam que não tinha o mesmo peso que o barão, e como não fosse homem de letras, apesar de dois ou três sonetos que escrevera nos tempos da Escola Militar, argüia-se que aqui ingressara com as obras... do porto! Mas os que o conheceram de perto, como Medeiros e Albuquerque, reconheciam nele um espírito arguto, forrado de não pequeno ceticisino. Múcio Leão, no seu admirável discurso de posse, contou uma anedota, que mostra até que ponto Lauro Müller tinha o espírito prevenido contra a velha política, a do voto a descoberto, a das atas falsas, as das degolas de deputados nas comissões de reconhecimentos de poderes, onde só se passava por especial mercê dos dirigentes da política de então... Humberto de Campos ia figurar numa chapa oficial, no Maranhão, e já se considerava eleito. Mas Lauro Müller o prevenia:

Escute, menino... Quando o chefe do seu partido lhe disser que você está incluído numa chapa de deputado... não creia que é deputado. Quando vier a eleição, e o seu nome for votado... também não creia. Quando chegar à Câmara, e se vir empossado na Cadeira... ainda não creia. Só creia que é deputado quando o pagador do Tesouro lhe aparecer no fim do mês, e lhe pagar o subsídio...

Tal era o jogo das escamoteações, a falsidade do regime eleitoral. Nem mesmo nos postos executivos estavam tranqüilos os homens públicos. Com a irrupção da primeira grande guerra mundial, Lauro Müller se viu obrigado a deixar o Ministério das Relações Exteriores, sob a pressão da opinião pública, trabalhada pela maioria da imprensa e, especialmente, pela palavra de Rui. Defensor da neutralidade, não foi a mão dele, mas a de Nilo Peçanha, que referendou a nossa declaração de guerra à coligação dos impérios centrais. Voltou, então, às atividades parlamentares. E se não alcançou eventualmente a presidência da República foi porque o consideravam esperto demais. Gilberto Amado, ainda agora, num livro em que recorda sua mocidade, naquele anteguerra, diz que Lauro Müller ficara imobilizado nas classificações zoológicas. Rui Barbosa chamava-o de enguia. Pinheiro Machado descrevera-o como uma “raposa de espada à cinta”. Não seria pela espada, que o preteriam, porque também Hermes da Fonseca ostentara uma. Apenas, ninguém o confundiria com animal tão vivo, símbolo de astúcia, que decerto possuía sem ostentar... Lauro Müller só era preterido em razão de sua fama de esperteza. Mas o próprio aliadófilo Medeiros e Albuquerque, que conspirou para tirá-lo do Itamaraty, é quem assim lhe faz justiça:

Havia nisso um exagero, porque ele, afinal, não foi um tipo de deslealdade. Evidentemente o chefe de um pequeno Estado como Santa Catarina, para ter podido manter-se na primeira plana da política, precisava não ser tolo. Mas não chegou à incorreção.

Não lhe faltava finura, nem malícia. Quando, em 1906, veio ao Rio de Janeiro, para a Conferência Pan-Americana, o Secretário de Estado da América do Norte, Sr. Elihu Root, cada membro do governo Rodrigues Alves deu-lhe um presente que lhe relembrasse a passagem pelo Brasil. O de Lauro Müller foi o mais comentado, não porque fosse o mais rico, mas porque parecia o mais adequado à ocasião. Valia como um tributo de amizade, sem deixar de valer como uma advertência. Que presente era este? Era uma peça de museu, um prato do tempo do Império, no qual se encontravam estampados o emblema da Monarquia e a legenda que passou à história como o grito do Ipiranga: “Independência ou morte!”

Seu pensamento sobre este capítulo ficou muito bem expresso no seu discurso de posse, em que declarou:

São cada vez menores os riscos de que as nações possam perder subitamente a sua independência; são, entretanto, cada vez mais numerosos os deslizes em que podem comprometer a sua soberania. A posse violenta repugna cada vez mais aos sentimentos liberais como à hipocrisia do nosso tempo e assusta rivais poderosos, que são muitas vezes impedimento intransponível; mas a arte humana a tem mais uma vez substituído pelas aproximações privilegiadas, que são os tentáculos da supremacia econômica na ante-sala das deliberações políticas.

E proclamava, como necessidade suprema, organizar a Nação, para torná-la forte e independente. Não era bastante definir-lhe os contornos geográficos, como fizera Rio Branco. Era necessário, também, dar uma consciência nacional vigorosa ao seu povo, educando-lhe a vontade na pertinácia e na estima de si mesmo, a fim de não aparecermos perante o mundo com os saturnos da nossa própria reputação.

PRECOCIDADE DE D. AQUINO CORREIA

Depois de Lauro Müller, quem vem empossar-se nesta Cadeira? Um homem de letras? Não, não é um simples homem de letras, conquanto poeta, historiador, biógrafo e sermonista de fama. É um arcebispo? Não, também não é apenas um arcebispo. Claro que a dignidade eclesiástica dá ao homem de letras um prestígio que o destaca como candidato. Mas para suceder a Lauro Müller, na Cadeira por onde haviam passado Pereira da Silva e o segundo Rio Branco, teria de pesar também a sua condição de homem público. O novo acadêmico era, como os seus antecessores, uma figura de projeção na vida nacional. Era o moço que acabara de governar o Estado de Mato Grosso.

Se Lauro Müller amanheceu na política governando um Estado mal lhe repontava o buço e ainda com galões de simples tenente, foi também notável exemplo de precocidade o seu sucessor, D. Francisco de Aquino Correia. Durante quase meio século envergou ele as vestes sacerdotais –, e o ano em que se doutorou em teologia na Universidade Gregoriana de Roma, era o mesmo em que nascia, no Estado do Ceará, quem neste momento é entre vós recebido. Quando, aos 29 anos, D. Aquino foi escolhido bispo titular de Prusíade, era o bispo mais novo do mundo! A fama de orador e as virtudes eclesiásticas já haviam feito dele uma figura marcante no cenário mato-grossense. Os embates da política local, política sanguinária e violenta, levaram à exaustão as facções que ali se digladiavam. Orgulhosas e intransigentes, nenhuma das duas queria ceder passo à outra. Mas as rivalidades se abateriam, como se abateram, mediante a escolha de uma figura neutra, eqüidistante de ambas as facções, isenta de qualquer participação nas lutas que há longo tempo talavam a vasta e mal povoada unidade da Federação. O nome que realizaria o milagre da concórdia, que faria descer paz sobre os espíritos, era o do jovem salesiano elevado a bispo por Pio X. Ei-lo presidente de Mato Grosso, eleito aos 32 anos de idade, e no mesmo ano, o de 1917, em que publica o seu primeiro livro de poesias, sob o título de Odes. E na ocasião o mais jovem de todos os presidentes de Estado. Note-se que isto sucede numa República leiga. Mesmo nos tempos do Império, sendo a religião oficializada, e as nomeações dependentes apenas do Imperador e de seu ministério, não era coisa todos os dias ver-se uma batina no governo de uma província. O padre cearense José Martiniano de Alencar, por duas vezes passou rapidamente pelo governo de sua terra, uma vez como delegado da Regência, outra ao alvorecer do Segundo Reinado, e o padre Vicente Pires da Mota, que sete vezes governou províncias, do Ceará a Santa Catarina, incluída entre elas, por duas vezes, a de São Paulo, foram dos poucos que administraram não só paróquias, mas províncias. D. Francisco de Aquino Corrêa inscreveu-se destarte, como a primeira exceção, nos fastos republicanos, não por simples nomeação, mas por unânime eleição popular. No segundo ano de seu governo, recebia as honras de conde palatino e era, no terceiro, elevado a arcebispo metropolitano e transferido da sede titular de Prusíade para a sede residencial de Cuiabá. Arcebispo aos 35 anos de idade, havia de alcançar a Academia Brasileira de Letras aos 41. Parecia que era esta a meta final de suas ambições terrenas, pois desde então se limitou a honrar os títulos já conquistados. Durante trinta anos foi ele um dos vossos –, e nesses trinta anos de convívio convosco foi exemplo de suavidade e cordura, de compreensão e bondade, de simpatia e indulgência. Fez-se estimar, estimanno. Honro-me de ocupar-lhe a Cadeira, reconhecendo embora que melhor sucessor encontraria ele em quem tivesse os seus dons, inclusive o dom arquiepiscopal. Perdoai-me, pois, senhores, se com minha audácia, fiz com que vosso pequeno exército em que todos são iguais, ainda que opostos, ficasse mais uma vez sem capelão...

A POESIA DE D. AQUINO

A poesia de D. Aquino Correia encontra a sua melhor definição nas pa1avras que ele próprio escreveu no prefácio dos dois volumes das Odes e que vale como uma profissão de fé literária. Nesse prefácio a que deu o título musical de “Prelúdios”, proclama que “a Poesia, por qualquer lado que se encare, é naturalmente divina e religiosa” – e, portanto, “filha predileta do Altíssimo”. Não admitia outra poesia que não fosse moralizante, cheia de unção, espelho de sentimentos puros. Para ele, devia ser o verso “um fruto do coração do homem”, mas isento de máculas e elevado para Deus. Fora desses limites, não tolerava nem reconhecia outra poesia, e não via senão manifestações de impudor, ou mesmo “lenocínios de sereia” na sua expressão textual. Esta sereia seria a sereia do pessimismo, tangido pelas liras de Byron, de Musset, Leopardi, Espronceda e outros. Que não diria então de um Baudelaire, de um Verlaine, de um Rimbaud? Não os nomeia, mas fala de uma escola, que mormente nos últimos tempos, não raro há transformado em pútridos alcouces o santuário imaculado da Poesia e das Letras! Protesta contra a desfaçatez e a imoralidade, proclamando que a Poesia, para ele, não foi a adolescente loura e sentimental de Casimiro de Abreu, mas o anjo do céu que acompanhou o jovem Tobias nas peregrinações para o ideal. Os conceitos de D. Aquino Correia, são sem dúvida, susceptíveis de controvérsia. Haverá alguns que subscreverão, mas há de haver também muitos que os refutem.

OPINIÕES EM CONFLITO

Já advertia Montaigne, a propósito da Poesia, em seus Ensaios que il est plus aisé de la faire, que de la congnoistre. Porque até certa medida ela pode ser julgada pelos preceitos e pela Arte, mas a boa, a excessiva, a divina, está acima das regras e da própria razão. Notai que é um homem do século XVI que proclama que as regras existem para os poetas menores, não para os maiores. Estes transcendem as regras, suplantam os cânones, criam eles mesmos suas medidas e valores estéticos, porque são próprias do gênio criador as manifestações de independência. Mas um poeta menor assim proceder por artifício ou cálculo, fabricando um código abstruso a pretexto de inovações, em vez do reconhecimento dos historiadores e críticos literários o mais que conseguirá obter será o alarido inconseqüente dos seus confederados, na feira vã dos cabotinismos. Grande mérito já seria conhecer cada escritor suas limitações e a natureza das tarefas a que se pode abalançar, na Prosa como na Poesia. Sobretudo nesta. Difícil, realmente, há de ser julgá-la, quando tem sido e continua a ser objeto de definições as mais diversas, as mais opostas e contraditórias. Uns a querem livre, espontânea, rebelde às fórmulas, sem conhecer regras ou limitações de caráter formal. Alguns, como François Mauriac, dão-lhe mesmo direito de investir contra a própria razão. Para eles, o raciocínio é prosaico e banal, os pensamentos enganam e mentem, tendo o nosso adversário sempre razão sobre um ponto qualquer. Daí sustentar que toda a dignidade do homem está, não ao pensamento, mas no canto e na Poesia, a de um Francis Jammes, por exemplo. Mas outros a querem, ao contrário, sujeita ao metro, à rima, aos processos da arte poética, e mais do que isto, com um “fim”, ou seja, cientificista, historicista, moralista, catequista, cívica, patriótica, didática...

Eis virada pelo avesso a pregação de Victor Cousin, na primeira metade do século passado, quando queria a religião pela religião, a moral pela moral, a Arte pela Arte... Em vez da Arte pela Arte, quer-se a Poesia interessada; em vez da Poesia abstrata advoga-se a Poesia militante... Os que menos querem são os que asseveram, como Artur Orlando, no seu discurso de posse nesta Casa, que “a Poesia não tem que ser científica, nem realista, nem simbólica, nem impressionista, nem parnasiana”, bastando-lhe “que seja social no sentido de não ser somente um produto da sociedade no seio da qual ela nasce, mas ainda de construir uma sublimação da sociedade, uma criação do futuro, que vai além do meio atual”. O próprio grupo surrealista francês, de André Breton, Aragon, Jacques Prévert, Paul Éluard e outros, na reação violenta “contra as fórmulas, as escolas, as convenções, as tradições, as coisas estabelecidas, a ordem burguesa, o patriotismo, os exércitos, as igrejas, a obediência, a disciplina, os lugares comuns de toda a espécie”, pretendia infundir à Poesia uma direção, via nela um meio de atingir determinado fim – e lançava manifestos dizendo que “a Poesia é inseparável da revolução”.

Esse grupo reclamava “a independência da Arte – pela revolução – pela liberação definitiva da Arte”, o que representa um verdadeiro círculo vicioso. E por um dos seus porta-vozes mais autorizados, Paul Éluard, proclama: “A Poesia verdadeira está inclusa em tudo o que não se conforme a esta moral que, para manter sua ordem e seu prestígio, não sabe senão construir casernas, prisões, igrejas, bórdeis.” Para ele, os poetas haviam descido de uma vez da torre de marfim sobre a qual se haviam plantado, em esplêndido isolamento, e ido às ruas, insultado os seus senhores, renegado os seus idolos, ousado beijar na boca a beleza e o amor e aprendido em suma, os “cantos de revolta das multidões infelizes”. Vemos em cada um destes testemunhos, em cada uma destas posições, em visível conflito umas com as outras, um sinal da grandeza e do prestígio da Poesia, que torna a vida menos árida e o homem um ser um pouco menos mesquinho.

Além dos conflitos de doutrina, há também os conflitos de escolas. Para os tradicionalistas, irredutíveis em seus pontos de vista, o que praticam os seus adversários é a excentricidade, a extravagância, a licença, a anarquia, a loucura, quando não a burla em que se compraz a audácia dos mistificadores. Para os destes grupos, aqueles por sua vez não representam senão a rabugice dos decadentes, a insistência no erro, a incapacidade de renovação, a confusão no julgamento, a inversão dos verdadeiros valores literários. Ninguém os harmonizará e só estarão em paz, nesta guerra que lavra surdamente os que, como Guilherme de Almeida, ou Manuel Bandeira, ou Ribeiro Couto, içaram seus estandartes num e noutro campo, poetas moderníssimos aqui, poetas tradicionalistas acolá, metendo às vezes a mão nos alforjes dos clássicos da língua, de onde fazem vir à luz arcaísmos que fosforecem como se fossem palavras novas em folha...

A SOMBRA DE HEREDIA

D. Aquino Correia não atingira a este ecletismo. Não tinha destas táticas perturbadoras. Armou sua tenda no campo da tradição, do verso medido, e não só medido como rimado, evitando qualquer ousadia ou liberdade, disciplinado não apenas na forma como no pensamento, no metro como nas idéias.

Nem caberiam ousadias, ou liberdades, na poesia de um padre, de um bispo, de um arcebispo, embora pudesse caber o fundo sentimento religioso mesclado de alegria, como em Francisco de Assis, ou de êxtase místico, como em Teresa de Jesus. Porque bem conheciam as tendências do seu espírito, foi que os seus companheiros, na Universidade Gregoriana, em vez de lhe darem como lembrança, ao se formar, um missal, ou um breviário, preferiram dar-lhe um livro de versos, Os Troféus, de José Maria de Heredia... Ninguém se espante, que era este o mais popular dos poetas franceses da época. Tão popular que, em outubro de 1888, o Novidades, jornal de Alcindo Guanabara, promovia um concurso destinado a premiar as melhores traduções de dois dos seus sonetos –“Antônio e Cleópatra” e “O Leito”... Os julgadores foram três dos fundadores desta Casa: Machado de Assis, Artur Azevedo e Luís Murat... E o primeiro lugar coube a um menino de dezessete anos, Mário de Alencar, que deixava em segundo Castro Fonseca, e em terceiro o futuro bicho-papão da crítica indígena, Osório Duque Estrada...

A iniciativa sacudiu o meio literário que acabara de ensarilhar as armas utilizadas nas refregas do abolicionismo. Apenas um espírito notável pela sua independência – o patrono da Cadeira 30, Pardal Mallet –, levantou um protesto contra o que lhe parecia uma subserviência. Pelas colunas da “Cidade do Rio”, atacou, com alguma veemência, o ruidoso concurso. Ora, para que haviam dado o menino de José de Alencar e tantas outras figuras! E o culpado era Alcindo, que lhe parecia um perversor da mocidade intelectual do País. Sim, ganhara o concurso o adolescente Mário de Alencar. “Mas” – escrevia Pardal Mallet, – “ser grande tradutor de sonetos é não prestar para nada, é não ter originalidade, é não ter talento, é ser um simples arranjador de palavras...” Outros, porém, não eram do mesmo parecer. A despeito da escassez de sua obra, foi grande a influência que o parnasiano francês, discípulo dileto de Lecomte de Lisle, exerceu no fim do século passado e no princípio deste. Tão avassaladora, tão intensa, tão viva, que nessa época, para se tirar carta de poeta no Brasil, era necessário traduzir pelo menos um dos seus sonetos favoritos – o “Recife de Coral” ou “A Concha”...

Numa de suas poesias D. Aquino Correia diz que se pôs a ler o livro de Hérédia sobre as ruínas da antiga Roma. E foi reconstituindo, de quadra em quadra, o tema dos sonetos do parnasiano francês. Por exemplo:

Soam búzios romanos no horizonte
Do Trébia envolto a rúbidos clarões:
E eis Anibal que ausculta sob a ponte
A marcha das legiões...”

E adiante:

Aqui – a hera vil invade e mina
Os mármores de um arco triunfal;
E o sol que beija a flora submarina
De um bosque de coral...

É um resumo impressionista da obra herediana, ao fim da qual, fechado o livro, o leitor tem uma visão que não é, como ele mesmo diz, a de “uma poesia frívola e pagã” mas o símbolo de sua própria fé, a Cruz que rebrilha
como um novo sol. E exclama, por fim, que triunfa a Cruz, porque:

Só ela é que não passa, mas perdura
Como eterno troféu!

Só pelo seu paganismo impugnava D. Aquino a poesia de Hérédia. Quanto ao mais, o ideal poético do futuro arcebispo correspondia, sem dúvida, ao código de estética do sonetista francês.

D. Aquino, sem guindar-se a Horácio, ou a Boileau, compôs também alguns preceitos de arte poética, em que proclamara:

Se queres ser poeta, que tua alma cante.
Estuda, estuda a fundo, noite e dia,
O belo idioma límpido cantante,
Para engastar a rima de diamante
No ouro velho da clássica harmonia.

É este o conceito de Poesia a que foi fiel, o conceito herediano, segundo o qual deviam ser os poetas cinzeladores ou ourives florentinos, à procura de rimas ricas, de sonoridades raras, de desenhos caprichosos e sutis, sempre dentro da “clássica harmonia”. Se a Poesia de hoje se desembaraçou das formas constringentes, e se adotou uma revolucionária liberdade de movimentos, uma coisa há de permanecer de pé, nesse conselho de D. Aquino Correia, e não perde por muito repetida: a recomendação aos poetas para que se dediquem ao estudo diuturno da língua. Na verdade, assim como não há filósofo que se faça entender sem precisão de linguaguem, também não há poeta capaz de se elevar acima do banal sem uma profunda intimidade com as palavras.

Quando lemos um poeta moderno da força de um Fernando Pessoa, ou um Cassiano Ricardo, o que nos surpreende, antes de tudo, é a alquimia do verbo, a transubstanciação das palavras, a valorização extraordinária que dão aos vocábulos em suas combinação poéticas, deles extraindo uma essência nova e inesperada. Vemos que as palavras, como as pessoas, têm aparências diversas, distintas, segundo os lugares em que se encontram: o traje comum e o jeito despreocupado de andar em casa e o ar solene dos dias de grande gala. Podemos dizer que elas também conhecem as alternativas do pijama e do fardão... E não apenas destes, mas igualmente do deshabillé e do vestido de baile, pois que há palavras varonis e feminis, como nos ensina a gramática e o confirma a sabedoria daquele cônego Matias, filho da afortunada conjunção do tinteiro com a pena de Machado de Assis... Segundo o bom cônego de A Metafísica do Estilo, as palavras não só têm sexo, como ainda se amam e casam por amor, quando se encontram em horas propícias nos desvãos do espírito do escritor, onde se processa a elaboração misteriosa das idéias... É preciso que estes as tenham, de um e de outro sexo, para conjugá-las em uniões fecundas. Os que as tiverem de um sexo, apenas, vê-las-ão perecer celibatárias e inúteis... Serão carentes de expressão, nada terão a dizer, não serão poetas nem prosadores – a não ser que se limitem a fazer a prosa de Mr. Jourdain... Com rima ou verso branco, métrica a rigor ou forma livre e solta, a Poesia se manifesta onde quer que existam serem humanos tocados por esse dom precioso. Mas o poeta de língua pobre será um rude soprador de pífano, ao passo que o de língua rica fará vibrar o arco de um violino mágico, ou o teclado de um órgão portentoso.

D. AQUINO CORREIA E LÚCIO DE MENDONÇA

D. Aquino Correia era um salesiano. Os filhos espirituais de D. Francisco de Sales, organizados sob a inspiração de D. Bosco, não são contemplativos. São, como os inacianos, homens de ação, educadores aplicados em preparar a juventude para o trabalho e para a vida digna. Sua Poesia é, antes de tudo, didática e cívica, e se falar ao sentimento de quem a lê há de ser menos pela nota de vibração interior que pela objetividade com que invoca símbolos do patriotismo e da fé –, a bandeira do Brasil desfraldada ao vento, a grande Pátria dos gentis palmares, o amplo Amazonas e o Iguaçu revolto, a visão de Bernadette, a imagem da Virgem com o menino ao colo, a Eucaristia e a tragédia do Gólgota. Pouco tem de subjetiva essa Poesia e a falta de subjetividade decorrerá, provavelmente, do espírito prático dos salesianos, por um lado, e por outro da própria placidez espiritual de D. Aquino, homem decerto de fé repousada, firme e tranqüila, homem que não se perdia nos abismos insondáveis da dúvida ou da descrença. A Poesia nunca seria, para ele, aquele vinum daemonum, a que aludiu Francis Bacon, mas o canto angélico para o louvor de Deus. Nada lhe dava maior prazer que ver um discípulo de Renan, um espírito de negação, reconciliado, ainda que em artigo de morte, com a cruz e o Cristo, como François Coppée e Lúcio de Mendonça. A ambos dedicou poesias que parecem parafraseadas uma da outra.

Permiti que eu vos fale deste último por ser, não apenas um dos fundadores, mas o fundador desta Casa, segundo o testemunho de Medeiros e Albuquerque. Muitas vezes evocado no recinto desta Academia, poucos o terão retratado melhor que Pedro Lessa, em rápida passagem de seu discurso de posse. O eminente magistrado e professor de Direito, ao lembrar os aspectos mais curiosos da vida de Lúcio de Mendonça, fez menção às alternativas de seu espírito, capaz de extremos da maior violência e da maior delicadeza. “Quando estudante em São Paulo – disse aqui Pedro Lessa –, moravam na mesma casa ele (Lúcio), o eloqüente e ilustre orador sagrado, padre Francisco de Paula Rodrigues e mais um ou dois companheiros. Um dia, Ezequiel Freire, o amigo inseparável de Lúcio, lia um romance, em que abundava, excessivamente, a nota crua, em um dos aposentos da casa e Lúcio, que sempre foi um livre pensador, tão cioso de sua coerência em princípios filosóficos, bruscamente interrompeu o leitor com estas palavras: “Vamos ler no meu quarto; nesta sala o padre Chico lê o seu breviário.” Vêde, agora, o reverso da medalha, sem o qual não vos daria idéia exata do que foi Lúcio de Mendonça: não era raro dizer-lhe algum colega, na Faculdade de Direito: – “Parece que estás ficando católico; a convivência com o Padre Paula Rodrigues vai pouco a pouco modificando as tuas opiniões religiosas.” Já estavam todos certos de que no dia seguinte apareceria infalivelmente na Província de São Paulo, o jornal de Rangel Pestana e Américo de Campos, um tremendo e descabelado artigo contra a religião e contra os padres”.

Esse o curioso depoimento de Pedro Lessa, a que não falta um sabor de anedota. Quem leia a Vergastas, – cujo título talvez seja reminiscente dos versos satíricos de Machado de Assis, quando em “Os Arlequins”, exclama: “Musa, toma a vergasta, e os arlequins fustiga!” – encontrará em suas páginas veementes poesias anti-clericais, sendo uma das mais longas dedicada “ao livre pensador Angelo Agostini”, o admirável caricaturista da Abolição e da República, cujo papel ninguém ignora qual foi na famosa questão dos bispos. Basta recordar-se a célebre caricatura “O Sonho de Pio IX”, apresentado em opíparo banquete com os cardeais do Sacro Colégio, tendo os imperadores e reis como seus lacaios... A musa de Lúcio de Mendonça, inspirada nos Châtiments, de Vitor Hugo, e nas sátiras desabusadas de Guerra Junqueiro, expandia-se em sonetos, como aquele em que descreve um santo homem, um pio varão, um velho padre cura sempre a ler piedosamente, num trem de ferro, o seu breviário. Mas, ao chegar à estação de desembarque, ergue-se apressadamente e, então, cai-lhe do bolso da batina – um saca-rolhas! Tal a nota satírica, a tinta burlesca, desfecho imprevisto. Mas esse desabusado panfletário da prosa e do verso, que começara poeta romântico e acabaria os seus dias ministro do Supremo Tribunal Federal, não cerraria os olhos à vida sem que ao seu leito de morte fosse admitido aquele amigo da juventude, o padre Chico, o cura dos humildes, o amigo dos pobres, considerado um santo pelo povo de São Paulo. Era ao amigo ou ao sacerdote que Lúcio de Mendonça recebia, no momento da partida para a viagem sem volta? Padre Chico deulhe a extrema-unção. E esta despedida tocante de velhos camaradas, o rebelde e o contrito, o que negava e o que cria, forneceu o tema da poesia do arcebispo cuiabano. No Lúcio de Mendonça da primeira fase, o das “Névoas Matutinas”, via D. Aquino Correia um terno “sabiá do mangueiral”, “êmulo do albatroz da branca borboleta e do condor”. Na fase anticlerical, porém, aparecia aos seus olhos sob forma vulturina, na mais estranha das metamorfoses:

 
Mas ai! que desdenhando as músicas divinas
Do amor, o cisne faz-se abutre, e nas rapinas
Nada, nada o detém!
Fascinam-lhe a razão inspirações nefastas
E as asas geniais tranformam-se em “vergastas”
Contra a verdade e o bem!

No momento em que o padre Chico leva a Lúcio de Mendonça a extrema-unção, D. Aquino celebra vitória, menos talvez da fé que do clero. É uma hora de exultação em que lhe escapa o aspecto sentimental e humano da cena. O que vê, então, é o adversário rendido, o ateu humilhado, o livre-pensador confundido em face do padre vitorioso. E declama:

Fora de ver-te ao essa negra estamenha
Que tanta vez mordeste em sátira ferrenha,
com dentes de chacal!

Passado, entretanto, esse arrebatamento do triunfo, abre a Lúcio de Mendonça as portas do céu:

Mas ora que do padre à voz solene e calma,
O perdão do Senhor iluminou tua alma
como doce arrebol,
Canta no eterno azul, meu cândido poeta,
A par do serafim, do santo e do profeta
E da estrela e do sol!

O POLIGLOTA E O TRADUTOR

Uma das curiosidades da vida literária de D. Aquino Correia – curiosidade que não pode deixar de ser mencionada em seu elogio acadêmico –, é a de ter sido um dos raros poetas brasileiros que versejaram em vários idiomas. Gil Vicente compunha sonetos, quer em português, quer em espanhol, com igual mestria. Ninguém ignora que Gregório de Matos, como Cláudio Manuel da Costa, escreveu poesias verdadeiramente primorosas em idioma italiano. O mesmo se dá com o ilustre decano desta Casa, o vosso eminente companheiro Carlos Magalhães de Azeredo. José Eloy Ottoni tinha o capricho de versejar em latim. Machado de Assis e Joaquim Nabuco foram poetas também em língua francesa. E a esta lista poderíamos juntar os nomes de Olavo Bilac, Alphonsus de Guimaraens, Freitas Vale, Eduardo Guimarães, Aloísio de Castro, Ribeiro Couto, Medeiros e Albuquerque, A. D. Tavares Bastos, etc. D. Aquino Corrêa entretanto, fez versos em quatro idiomas: o nosso, o latino, o italiano e o francês. No prefácio das Odes tem ele uma confissão curiosa: a de que foi o estudo do latim que lhe avivou e definiu a vocação religiosa. Eis uma singularidade para a qual insisto em chamar a vossa atenção. Ninguém ignora que foi o estudo das línguas semíticas, o hebraico e o siro-caldaico, que afastou Ernest Renan definitivamente da Igreja, liquidando-lhe a vocação religiosa. A filologia e lexicologia desses idiomas levou-o a descobrir erros na interpretação dos textos bíblicos, principalmente os da Vulgata e esvaiu-se-lhe a fé, perdendo a igreja um futuro cônego, ou talvez mesmo um bispo. A Igreja porém, resiste sobranceira a todos os reveses e arremetidas e o que um idioma hoje lhe tira outro idioma amanhã lhe dá... O moço de Tréguier se perdeu por via do hebraico? O rapaz de Mato Grosso surgiria no clero brasileiro, para glória da Igreja, por via do latim...

De início, confessa D. Aquino que queria apenas ser poeta. E declara: “Convenci-me um belo dia de que não podia vir a ser poeta sem ter lido pelo menos as Bucólicas, de Virgilio. E mal possuindo os rudimentos da gramática latina, eis-me, sem mestre e sozinho, a traduzir as Églogas! Seu gosto era bem diverso daquele exigente Pococurante, que no Candide, de Voltaire, fala de insipidez de algumas passagens de Virgílio preferindo-lhe o Tasso e os contos para dormir em pé de Ariosto.. Empolgou-o o poeta da Eneida durante três anos seguidos. Notai-lhe, agora, estas confissões:

Bem posso dizer que o pouco de latim que sei, aprendi-o entre os pastores de Virgílio. E adiante: “Em suma, o amor à Poesia levou-me a estudar e a amar o latim. Pois bem, a esse amor pelo idioma da Igreja devo, em grande parte, a minha vocação eclesiástica, porquanto não só julguei mais difícil cultivá-lo no século como também, graças a ele, revelaram-se na Literatura cristã tantas belezas, que me encantaram e prenderam definitivamente.

Eis um dos milagres da Poesia, um poeta profano a impedir uma vocação religiosa! E um poeta profano que viveu antes de Cristo, na Roma pagã – e que de pio só conheceu a Enéias...

Não satisfeito com as simples traduções, também em latim, como em francês e italiano, versejou, sobrecarregando as dificuldades naturais da composição metrificada e rimou até mesmo com acrósticos não simples, mas duplos. Evidentemente, não ia ao exagero de considerar tais curiosidades como peças literárias, pois que as incluiu nas Odes com um título à parte e que muito bem as define, o de Diversões. Tinha-os como simples jogos de espírito meras demonstrações de habilidade e de domínio das línguas em que escrevia. A publicação valeria mais pelo preito de homenagem a amigos a quem assim distinguia que por motivos de ordem literária. São testemunhos de uma alma afetuosa e – aí assim –, flores do coração.

Tradutor de poetas latinos e italianos, eis um exemplo de sua habilidade em tão difícil Arte – a versão do poema “Minha Mãe”, de Edmondo d’Amicis:

Nem sempre com o tempo se cancela
A beleza ou a esfloram desenganos;
Pois com seus sessenta anos,
Eu acho minha mãe mais bela!

Não tem um riso, olhar, palavra, ou ato,
Que não me faça a impressão mais doce;
Ah! se pintor eu fosse,
Faria toda a vida o seu retrato!

E a retrataria, quando inclina o rosto,
Para eu beijar os seus cabelos brancos,
Ou quando entre os arrancos
Da dor, finge em sorriso o seu desgosto.

Contudo, se no céu Deus me escutasse,
Eu não pediria esse pincel divino
De Rafael de Urbino
Para coroar de glória a sua face.

Mas quisera trocar vida com vida,
Dar-lhe o vigor de minha idade bela;
Ficando eu velho, e ela
À minha custa rejuvenescida!

A lira do ilustre antístite nem sempre se voltava para as coisas sublimes que pertencem ao reino dos céus, embora fosse essa a sua natural inclinação. Por vezes, circunvagava D. Aquino o olhar em torno deste mundo – e o poeta
sacro cedia lugar ao profano. O orador, também, nem sempre guardava a sua palavra inspirada para púlpito de que pregava aos fiéis. Sabeis que fez o discurso inaugural do prado do Jockey Club Brasileiro, na Gávea, decerto com os olhos mais postos na deslumbrante paisagem, em que veria a obra de Deus, do que no frenesi das apostas, certamente obra do diabo, esse insistente e ousado atravessador dos empreendimentos divinos. Como não tinha os olhos fechados à realidade do mundo moderno, chegou também D. Aquino a compor um hino aos jogadores de futebol. Nele, via o arcebispo cuiabano o mundo à semelhança de um imenso estádio e a vida dos homens convertida num match entre as equipes do bem e do mal.

E exclama:

Avante, campeões! Já sorri-nos na lida
o gol da vitória do nosso ideal!
Embalde o inimigo nos chuta e convida
Ao torpe off-side do erro fatal...

Mesmo na contemplação de um espetáculo esportivo, impunha-se ao poetaa preocupação moralizante. Falando de futebol em termos de futebol, revela-se, naadequação da linguagem, tão douto e tão profundo conhecedor do assunto comoo nosso companheiro rubro-negro, o acadêmico José Lins do Rego.

Há ainda um traço da personalidade de D. Aquino Correia que não pode deixar de ser evocado: o da afabilidade pessoal, a elegância das maneiras, a polidez do trato, a suavidade de sua presença, que o tornava tão querido entre vós, como entre todos os que mais de perto o conheciam. Há, porém, um D. Aquino que não conhecemos, o que se oculta dos nossos olhos, o que não fazia ostentação de seus atos, o que realizava a caridade cercando-a de sigilo, o que fazia o bem às ocultas. Ainda há poucos meses, abri o boletim de uma instituição em que havia o seu retrato. E uma notícia que dizia: “Morreu o nosso amigo e benfeitor.” Era de uma casa destinada a auxiliar a educação das crianças, a Biblioteca Infantil Carlos Alberto. Como esta, outras, muitas outras instituições terão sentido a sua falta, e o lembrarão com saudade e carinho.

FALANDO DE MIM MESMO

Depois de tantos vultos eminentes, acolheis agora, entre vós, não um deputado, um ministro, um presidente ou governador, mas apesar de tudo, um militante da Política, um homem de partido.

Perdoai-me se chego a esta Casa tendo sido tão pouco, isto é, simples vereador na cidade do Rio de Janeiro. Certo este título não teria prevalecido em vossa escolha. A Academia e a vereança não se têm dado bem. Coelho Neto, quando já era uma das figuras mais ilustres desta Casa, candidatou-se em 1899 a uma cadeira de vereador, em nome da gente de teatro, e ainda que tivesse o apoio de Artur Azevedo, perdeu uma eleição que a toda a gente parecia certa... Jorge de Lima, quando vereador, deixou, por um voto apenas, de ser um dos vossos, como sabeis e decerto lamentais. Antes de mim só um acadêmico já houve, que politicamente outro título não teve. Era um homem de pele escura e palavras claras: José do Patrocínio. Não digo que com a minha eleição evidenciastes a vossa ausência de preconceitos mostrando que não fazeis discriminação contra a vereança, porque já o havíeis provado no caso do grande tribuno da Abolição. Honrando-me, a mim, com a minha escolha para tão ilustre Cadeira, honrastes também a Câmara a que pertenço e ao dar-vos os meus agradecimentos dou-vos igualmente os dela, que bordou estes dourados, e me armou com esta espada a fim de ver um dos cinqüenta converter-se num dos vossos quarenta.

Há, porém, ainda uma casa, que não é política, onde é proibido falar em Política, pelo rigor de sua regra, e onde a vossa generosidade repercutiu da mesma forma, honrando-a na minha pessoa: a Sociedade Brasileira de Autores
Teatrais, em cuja presidência me encontro. Mencionarei aqui o seu nome como expressão do amor que lhe dedico e do empenho com que zelo pelo seu progresso. É uma sociedade de trabalhadores intelectuais, menos rica em prestígio e em patrimônio, porém tão útil quanto a vossa. Direi, mesmo, que ali encontrei quase uma ante-sala desta Academia. No Gabinete da Presidência, tenho à minha vista, emoldurada, como preciosa relíquia, a ata da nossa primeira reunião, traçada pela mesma letra miúda e nervosa que escreveu A Juriti, Marquesa de Santos, Sansão e O Homem da Cabeça de Ouro. Já sabeis que aludo a essa figura gloriosa do nosso Teatro e das Letras, que é o Sr. Viriato Correia. No saguão da nossa sede, numa placa de bronze, ao lado do bustode Martins Penna, lê-se o nome de nosso primeiro presidente, Paulo Barreto, o João do Rio de A Alma Encantadora das Ruas. Pelos nossos quadros passaram Coelho Neto, Cláudio de Sousa, Rodrigo Octavio, Humberto de Campos, Goulart de Andrade, Filinto de Almeida... E hoje tenho a honra de presidir um corpo social que contém figuras tão ilustres como Olegário Mariano, Guilherme de Almeida, Luís Edmundo, Adelmar Tavares, Manuel Bandeira, Viriato Correia, Josué Montello, Menotti del Picchia...

Ao transpor os vossos umbrais relevai-me que a estes estenda eu a mão em primeiro lugar para lhes dizer no calor da efusão: Meus companheiros, levai-me aos vossos companheiros!

6/11/1956