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FHC – ‘Diários’, 1999-2000

 

Os desafios do processo decisório no âmbito do sistema político brasileiro são um tema da maior relevância e de repercussão geral na vida do País. Os Diários da Presidência, de FHC, oferecem rico instrumento de análise do fio da meada desse processo tal como se foi desenrolando no calor da hora do exercício de suas responsabilidades de chefe de Estado e de governo. 

O presidente americano Harry Truman tinha perfeita consciência de que no exercício dessas responsabilidades “the buck stops here”, ou, traduzindo livremente, ao presidente cabe descascar os pequenos e grandes abacaxis da sua gestão. Para o entendimento dessa matéria, os Diários dão inestimável esclarecimento. Esse é um de seus grandes méritos, que não tem sido devidamente destacado. Em parte, isso ocorre porque os que analisam o governo “de fora”, na academia, na imprensa, na empresa, na vida cotidiana, não se dão conta do tamanho do desafio do processo decisório presidencial num país complexo como o Brasil. 

Truman também dizia: “If you can’t stand the heat, you better get out of the kitchen”, vale dizer, se você não aguenta o calor das pressões, desista da cozinha do processo decisório. FHC enfrentou com coragem o calor das pressões para, no grande jogo da política democrática, dar rumo à res publica e manter o sentido de direção de seu governo. 

É compreensível que no desabafo da intimidade dos seus Diários tenha avaliado com a espontânea liberdade crítica do momento das gravações o superaquecimento na cozinha do processo decisório brasileiro. Esses desabafos em relação a pessoas e situações têm sido muito comentados, mas são as árvores, e não a biodiversidade da grande floresta da trama do processo decisório que ele desbravou com talento e determinação. 

Faço esse destaque, em primeiro lugar, na condição de estudioso do processo decisório. A minha tese de doutoramento tratou do papel da decisão de fazer e executar o Programa de Metas como o meio de que se valeu JK para levar adiante na sua gestão o desenvolvimento do País (os “50 anos em 5”) na plenitude da vigência da democracia. Esse trabalho, assim como outros que se seguiram, de menor abrangência temática, analisaram o processo decisório “de fora”, na perspectiva de um universitário. 

É distinta a perspectiva com que me sinto à vontade para comentar o terceiro volume dos Diários da Presidência, e muito particularmente os primeiros meses de 1999. Estes se caracterizaram pelo enorme esforço de FHC para superar a “crise do Real”, desencadeada pela mudança do regime cambial que estava ameaçando a política de estabilização econômica, com cujo sucesso o seu governo estava identificado. 

Tratava-se de uma perigosa situação-limite que ameaçava os alicerces do patamar de sua atuação presidencial e do sentido de direção da modernidade política, econômica e social que seu governo estava imprimindo ao País. Representava risco para o bom andamento do seu segundo mandato e de seus planos de levar adiante e complementar de maneira efetiva as realizações do primeiro mandato. 

Nesse contexto os desafios do processo decisório permeado pelos constrangimentos e limites impostos pela conjuntura vieram à tona. Explicitaram que “realidade é resistência, mais precisamente resistenciabilidade”, como observou Heidegger em Ser e Tempo. Esse processo e como FHC soube lidar e enfrentar a resistenciabilidade da realidade com que se confrontou posso avaliar não só “de fora”, como acadêmico, mas de “dentro”, na condição de seu ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio no primeiro semestre de 1999. 

O processo decisório dessa conjuntura não permitia a lógica mais simples do sequencial. Requeria enfrentar a simultaneidade dos diversos tempos com que FHC teve de se ocupar. 

O tempo de manter a coesão da sua equipe de colaboradores, de acalmar dúvidas e rivalidades e de também fazer as substituições quando se impunham. 

O tempo político da manutenção de apoio no Congresso, que passava por administrar o seu partido e os da base, com suas aspirações, conflitos e múltiplas lideranças. O tempo das expectativas, de tamanha relevância no comportamento dos mercados, especialmente em momentos de crise. O tempo da mídia, que considera sua missão não só bem informar a sociedade, mas vigiar os Poderes, o que na época alimentou um denuncismo destrutivo. O tempo das oposições, sempre prontas a explorar politicamente, em momentos de adversidade, as vulnerabilidades do governo. O tempo da diplomacia econômica nos diálogos com os mercados internacionais, na obtenção de apoio do FMI e do respaldo de outros governos, movimentação indispensável num mundo globalizado, em que o “interno” e o “externo” interagem continuamente. O tempo diplomático do Mercosul, na relação com a Argentina e o Uruguai, que se viram afetados economicamente pela mudança do regime cambial. O tempo do grande empenho de comunicação e de explicação para manter perante a sociedade brasileira, a agenda da opinião pública e o mundo a credibilidade presidencial, mesmo com significativa queda de popularidade. 

Em síntese, a capacidade de bem sincronizar os diversos tempos é a chave para o entendimento do fio da meada do processo decisório de FHC na crise do primeiro semestre de 1999. 

É o que aflora numa visão de conjunto reflexiva da leitura do terceiro volume dos seus Diários. Trata-se de uma narrativa do cotidiano das dificuldades numa situação de agrura permeada pela agilidade intelectual dos comentários de quem as avalia com o repertório de um scholar de primeira linha. Representa por isso mesmo uma contribuição de peso para a bibliografia sobre processos decisórios. Ilumina os problemas de governança e de governabilidade não só no Brasil, mas em outros quadrantes, tendo em vista a dinâmica cada vez mais complexa, aguçada pela era digital, dos sistemas políticos no mundo contemporâneo. 

O Estado de São Paulo, 16/04/2017