Nasci duas vezes. A primeira, como todo mundo. A segunda, na passagem dos 19 para os 20 anos, quando saí do seminário. Procurei encontrar um nexo entre os dois nascimentos, e, curiosamente, descobri que nada de comum havia entre eles. Exceto o medo, que foi bem maior no segundo. No primeiro, faltou-me lucidez para entender por conta própria as coisas —aceitava-as com uma curiosidade que só não era plácida porque não as entendia.
Isso não quer dizer que passei a entender alguma coisa depois. Apenas deixei de me preocupar com isso. No fundo —pensava— os outros também não entendiam nada e todos continuavam vivendo. Alguns alucinados até que acham graça nisso.
Olhando tudo em conjunto, houve momentos em que também me diverti com a vida, sobretudo quando sentia que a vida se divertia comigo. Por exemplo no dia em que, tentando tocar um prelúdio de Palestrina, decidi improvisar e comecei a tocar aquilo que me parecia escalas em tom maior. De repente, surgiu um fiapo de melodia e eu a persegui, achando que estava criando alguma coisa parecida com um oratório. O professor que me dava aulas olhou espantado para mim e perguntou:
— Onde você ouviu isso?
Ia responder que tentava seguir uma sequência de notas, a melodia surgira sem querer, sem que eu a buscasse.
— Mas isso é o "Gloria" da "Messa pro Papa Marcello"!
Nunca ouvira essa música, nem sequer sabia que existia uma peça com esse nome e muito menos com aquela melodia. Corrigiu a posição de minha mão esquerda, apoderou-se do banco, expulsando-me com o seu corpo.
Fez uma variação complicada, mudou com habilidade o tom maior para o menor, empurrou alguns registros e abriu outros, respirou fundo e engrenou a melodia. Só então entendi que se tratava da missa de não sei quem nem para quem.