Entre Calero e Calheiros, no esforço geral em que cada um faz o possível para atrapalhar, tudo se precipita. Pela madrugada, sucedem-se tenebrosas transações enquanto dorme a pátria mãe, distraída. As medidas contra a corrupção, recém-aprovadas na Câmara, rapidamente viram medidas contra investigar a corrupção. Daí a pouco, à luz do dia, enquanto vidros transparentes revelam a mentira, o presidente do Senado manda dizer ao oficial de Justiça que não está, na certeza de que está alhures: acima da lei. Ajudado por uns e outros, acaba provando que está mesmo.
Tudo muda muito rápido. Na tentativa de entender alguma coisa mais permanente, focalizo um retrato trazido agora pelos dados estatísticos. Setenta por cento dos nossos estudantes de 15 anos não sabem o básico de Matemática. Qual a porcentagem dos adultos nas mesmas condições que estão no Congresso? Nas redações de jornais? Nos tribunais? Nos escritórios de advocacia? Na direção de sindicatos e órgãos de representação profissional? Em salas de aula ensinando a esses estudantes? Talvez esses dados expliquem a constatação de Ricardo Paes de Barros: a produtividade brasileira cresce à metade da velocidade que cresce a produtividade na África. Um vexame.
Mas os números não contribuem para aliviar o espanto, na análise da votação para intimidar a Lava-Jato. Fruto de 98% do PT e 24% do PSDB, passando por 66% do Solidariedade, 60% do PSD, 70% do PTB, 77% do PTN, 95% do PRB e os votos quase maciços do DEM, do PDT, do PMDB. Neste, salvam-se três cabeças com opinião própria — os deputados José Fogaça, Lelo Coimbra e Sergio Zveiter. Também se salvam as bancadas do PV, do PSOL e do PPS. A lista é longa, mas deve ser lembrada nas próximas eleições, quando pesarmos cada candidato a merecer nosso voto. Não que as Dez Medidas contra a Corrupção devessem ser aceitas sem debate e correções. Pessoalmente, discordo de algumas — como a suspensão do habeas corpus, a aceitação de provas ilícitas, a pegadinha, o pagamento em dinheiro para quem denunciar. Nem concordo que juiz possa ficar dando entrevista sobre matéria que vai julgar. Mas não dá para engolir a pressa em desfigurar o projeto aprovado, enquanto o país estava em choque e luto pela tragédia da Chapecoense.
Voltando aos dados do Pisa, deixo a Matemática e examino o aprendizado da linguagem. Quem procura ler ou entender o que lê? Situação similar, de vergonha: a maioria não atinge o nível de exercer cidadania, garantem os técnicos internacionais.
Observo a justificativa de voto de um deputado pelo qual já tive admiração, Jarbas Vasconcelos: “Um país onde um procurador denuncia um ex-presidente dizendo que ele, Lula, é um comandante de quadrilha… Ele, procurador da República, não pode adjetivar a denúncia”. Perdão, deputado, em sua gramática qual é o adjetivo? “Comandante”? “Quadrilha”? Sugiro um epíteto para sua desculpa: esfarrapada.
Em matéria de adjetivos, aliás, andamos nos superando. Por mais que o poeta Drummond tenha ensinado que, entre dois adjetivos, devemos preferir o substantivo, a realidade atual parece exigi-los. Na tentativa de anistia ao caixa dois circulou pela Câmara um documento órfão, com o texto da proposta obscena e a recomendação de ser inserido “onde couber”. Como assim? É claramente incabível, não cabe em lugar nenhum. Não tem cabimento. A prática já é crime, prevista em diferentes artigos da lei, não há como pretender anistiar.
Mas não faltam adjetivos. A desobediência de Renan, transformada em crise entre o Senado e o STF, trouxe vários à baila. O cidadão pode escolher à vontade, entre os que têm sido aventados. Insensata. Desnecessária. Artificial. Impensável. Grotesca. Anômala. Inadmissível. Inédita. Desmoralizante. Imerecida. Imperdoável. Inaceitável. Ridícula. Perigosa. Inverossímil. Repugnante. Inacreditável.
O leitor pode ainda aplicá-los ao fato que preferir. Em colunas para múltipla escolha. Ao que andam fazendo com nosso dinheiro. À anistia ao caixa dois. Ao urinaço no palácio do Planalto. A ministro gravar presidente. A Congresso julgar Judiciário. E ao que mais nos ocorrer, antes de passarmos aos tomataços, por enquanto simbólicos, ainda dirigidos a fotos de políticos — como se viu na manifestação de domingo.
Um amigo sugere recorrermos a séries de enumeração caótica, como as do Capitão Haddock, personagem das histórias de Tintim. Para começar, oferece: Cínicos! Covardes! Sacripantas! Asquerosos! Safados! Azêmolas! Biltres! Fedorentos! Energúmenos! Calhordas! Filhos de uma égua! Cretinos! Rebocos de igreja velha! Feios! Desgraçados! Canalhas! Escória! Estrupícios! Desonestos! Antas! Babacas! Bestas! Insetos! Pilantras! Gananciosos! Lambões! Molambos! Malandros! Trastes! Velhacos! Perebas! Pústulas! Alcatras de pernilongo! Mequetrefes! Patifes!
E mais todos os xingos do jogo de truco, em que os mineiros são mestres. Enquanto é tempo. Antes de nos reduzirmos ao adjetivo “irremediável”.