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A falta que Gullar já faz

 

Fomos amigos por cerca de 50 anos, mas na Academia Brasileira de Letras é que passamos a nos encontrar duas vezes por semana. Gullar não faltava às sessões, só deixou de comparecer quando foi hospitalizado para morrer. Relutou tanto em ingressar e agora se sentia tão contente ali. Chegou a me dizer: “A Academia é hoje o meu melhor programa cultural”. Era dos primeiros a chegar ao chá. Ficava aguardando o colega seguinte para começar a conversar, ou melhor, a discursar, com aquela voz de quem iniciou a carreira como locutor de rádio no Maranhão. Sabia contar casos e tinha muito humor. Suas histórias eram engraçadíssimas. Mas do que gostava mesmo era dos assuntos controvertidos. Grande polemista, dizia, no entanto, que não se importava em ganhar a discussão: “Não quero ter razão, o que eu quero é ser feliz”. Tinha opiniões próprias e originais. E mesmo quando se discordava, valia a pena ouvi-lo. 

Gullar sempre gostou de desarrumar ideias feitas. Operou isso na linguagem com “Luta corporal”, ao se insurgir contra o código vigente com uma atitude poética revolucionária. Depois que questionar virou uma categoria estética consentida, escreveu “Poema sujo”, provando que a linguagem pode ser também criativa ao se afirmar, não só ao se negar. E igualmente contestou as certezas da vulgata marxista. Em Moscou, onde esteve exilado, desconcertava o professor nas aulas de doutrinação ideológica com objeções do tipo: “Se Engels diz que a História é uma mudança permanente, como é que fica quando chegar a sociedade perfeita? Vai mudar para onde?” Irritava também a esquerda radical ao desmontar a tese do bandido social: “Uma pessoa já nasce Pelé, não é o meio que o faz”. E sobre a crença de que a violência é fruto da miséria, ele provocava: “Se fosse assim, como se explicaria que numa comunidade pobre haja milhares de moradores honestos e uma minora de bandidos”. 

Nas assembleias contra a ditadura militar, a última palavra costumava ser a de Gullar, pela sensatez em meio à “porra-louquice” da época. Essa lucidez ele manteve até a morte. Não o visitei no hospital, me informava de seu estado através de Luciana, minha amiga e sua filha. Às vésperas de morrer, consciente da gravidade de seu estado, ele recusou a opção que a medicina lhe oferecia de prolongar a vida artificialmente, com aparelhos. Respondeu que não. Na verdade, não era uma renúncia à vida, que, como ele argumentou, tinha sido muito digna e, por isso, não achava justo prorrogá-la daquele jeito.

À Luciana, manifestou seu último desejo: “Me leva para a Praia de Ipanema. Quero entrar naquele mar e ir embora.”

Um final que poderia constar do “Poema sujo”.

O Globo, 07/12/2016