Pelo mundo afora, democratas se preocupam com os percalços e distorções que a democracia representativa anda enfrentando. Os exemplos se sucedem, em sociedades divididas ao meio, optando por caminhos menos racionais, sempre por diferenças mínimas. Para só falar dos mais clamorosos, além da recente eleição de Trump, houve o surpreendente resultado do plebiscito britânico pela saída da Europa, o Brexit. E enquanto na França não vem Marine Le Pen, o tão sonhado acordo de paz que sepultaria uma guerra de 50 anos na Colômbia foi derrotado em votação popular.
Cada uma dessas decisões tem uma soma de circunstâncias que ajudam a explicá-la. Mas, em todo canto, analistas examinam como se estão construindo os caminhos que levam a esses retrocessos políticos. Tudo parece apontar para uma constelação de fatores interligados, somados a aspectos específicos de cada caso. Talvez possam ser agrupados como a soma de desinformação com ressentimentos, numa explosiva mistura em que as emoções são insufladas até dominarem a razão, virando hostilidade e disposição bélica.
Uma constatação clássica afirma que em toda guerra a primeira vítima é a verdade. Tudo indica que essa vítima já caiu, e sua queda ajuda a armar os espíritos. Tanto assim que o Dicionário Oxford registrou o termo pós-verdade como a palavra do ano — o que tem motivado reflexões da mídia e começa a ecoar nos setores mais atentos da academia, enquanto outros setores, ainda que eventualmente bem intencionados, ajudam a engrossar as fileiras do embuste. Basta um exemplo: em recente congresso no exterior, uma intelectual de prestígio veio comentar comigo sobre o projeto de reforma da educação no Brasil, que proporia acabar com o ensino fundamental gratuito. Ou ao menos, acabar com ele na primeira infância. Estranhei e neguei. Ela garantiu que recebera pedidos de solidariedade de intelectuais brasileiros seus amigos, para que ajudasse numa mobilização para evitar esse descalabro, denunciando internacionalmente esse crime — versão que não corresponde aos fatos e não tem o menor respaldo na realidade, como pode constatar qualquer pessoa que se disponha a ler o projeto. Mostrou-me essas mensagens, em confiança. Foi espantoso ver esse mecanismo em ação tão escancaradamente mentirosa. Mas, uma vez acionada a engrenagem, é muito difícil contê-la ou limitar seus efeitos.
No caso do Brexit, Arron Banks, fundador e maior financiador do movimento pela saída britânica da Europa, reconheceu e justificou as mentiras da campanha, explicando ao jornal “The Guardian” o segredo de sua vitória: “Fatos não funcionam. O negócio é ligar as pessoas emocionalmente.”
Essa estratégia é mais eficiente agora, porque a era digital permite que falsidades se espalhem mais fácil e rapidamente, de propósito ou por ingênuos que acreditam e compartilham rumores sem conferir, achando que estão só enviando para amigos que, por sua vez, dividem com amigos, em efeito-cascata. Mentiras crescem e se alastram sem limites, mesmo se brotam de manipulação deliberada ou irresponsável — e estudos mostram que, em grande parte, surgem de brincadeiras adolescentes, para botar lenha na fogueira e se autovalorizar, já que o número de cliques gerados aumenta as possibilidades de ganhar com publicidade. Se, por um lado, a internet pode estimular o debate democrático e facilitar o acesso a variados pontos de vista e análises fecundas, por outro lado a tendência dominante — sobretudo na função de busca personalizada, em mecanismos como o Google — é de servir mais do mesmo, fechando as pessoas em bolhas segundo o que já clicaram antes, impedindo-as de encontrar fatos que refutem as informações falsas que já compartilharam.
Há muitos meios de encobrir a verdade. Durante anos, nos anestesiamos com bazófia e bravatas, de quem garantia que nunca soube de nada, que só Jesus Cristo foi tão íntegro ou que político é mais honesto que concursado. Com o repórter José Casado — que assinou o que escreveu e garantiu a veracidade com seu nome profissional — aprendemos esta semana que Sérgio Cabral usava um telefone criptografado, sob o nome de Nelma de Sá Saraca, enquanto saía a sassaricar por aí com dinheiro público.
Mas entre a Jararaca e a Sá Saraca, há um espaço de atuação que é responsabilidade de cada um de nós: o de exigir informação mais completa e confiável, embora menos sensacional. E nos abrirmos para mais harmonia, conversando com amigos que não pensam exatamente igual a nós. Sem impor ou aceitar narrativas únicas. Aristóteles ensinou que a amizade entre cidadãos é um dos pilares da cidade, pois o intercâmbio constante da conversa entre eles é que constitui uma pólis e define a política. E Hannah Arendt lembrou que as coisas adquirem mais sentido quando as discutimos com nossos companheiros e falamos sobre o que acontece, num processo que nos ensina a ser humanos. Procurar a verdade e respeitá-la também é cidadania.