‘Papai, que é plebiscito?’
Assim começa um conto de Artur Azevedo, que constava de muitas antologias escolares na época em que havia leitura de coletâneas literárias como parte integrante do currículo de Língua Portuguesa no país. A maioria dos que então estudaram acompanhava o desenvolvimento da história lida em voz alta pelos alunos em classe, desde o início em que o pai fingia dormir para não ter de revelar que não sabia a resposta, passando pela insistência do filho e a pressão da mãe para que tirasse a dúvida da criança, até a cena da zanga paterna que incluía sair da sala e se trancar no quarto. Após consultar um dicionário que lá havia, o triunfal chefe de família podia elucidar que plebiscito era uma lei romana que queriam introduzir no país, num caso típico de estrangeirismo.
A história tem muita graça na linguagem divertida do autor, que ao mesmo tempo ridiculariza o autoritarismo patriarcal e os excessos nacionalistas da época — que acabariam levando à Primeira Guerra Mundial. Tive de resumi-la para comentá-la, pois tenho me lembrado muito desse conto ultimamente, por diferentes razões. Por um lado, acentua que criança tem curiosidade sobre política. E sobre as palavras que encontra e não conhece. Por outro lado, nos recorda que a satisfação dessa curiosidade tem a obrigação ética de procurar ser clara e equilibrada. Na atual discussão tão acalorada, sobre escolas sem partidos e os perigos da doutrinação ideológica, por vezes parece que os debatedores apontam para o alvo adjetivo e abandonam o substantivo. Esquecem que o problema não está em incentivar ideias, estimular a formação do conhecimento sobre ideologias, apresentar os argumentos de diferentes visões do mundo e da sociedade. O risco para a educação está em alguém com poder querendo doutrinar, falar como doutor que não admite contestação nem dúvida, ser dogmático, impor uma forma única de encarar a realidade e analisar os fatos, carimbando com rótulos pejorativos e frases feitas tudo aquilo que não se encaixa com perfeição na agenda do momento. Com frequência, partidária.
Quem usa sua posição de autoridade para impingir seu pensamento de modo autoritário, sobretudo diante de quem tem menos conhecimento para refutar, comete um abuso de poder. Ainda mais quando a resposta discordante pode resultar em notas baixas ou expor o aluno a ser ridicularizado. Não é democrático e ensina a se defender com hipocrisia. É preciso aceitar a divergência como parte integrante da educação. Um bom professor tem condições de sugerir caminhos e ideias que julga mais recomendáveis, sem desrespeitar outras opções. Pode mesmo provocar sutilmente o discordante a perceber incoerências nos pontos que defende, mas precisa ter empatia com ele e entender o que o leva a pensar diferente. Todos na turma aprenderão com isso.
Uma amiga que estudou na Inglaterra conta que aos 16 anos tinha aula de Política, analisando a organização do Estado e o funcionamento das instituições. E os alunos aprendiam a debater. Certa ocasião, a turma foi dividida em dois times para um debate: uns defenderiam o grampo de papel, outros tentariam mostrar a superioridade do grampo de cabelo. Não importava a mínima quem ganharia. O que pesava era a maneira de discutir. A avaliação dos alunos levava em conta quem apresentava argumentos pertinentes, não gritava, esperava a vez de falar, era impessoal, se apoiava em dados concretos, refutava de modo consistente.
Em minha infância, muitas vezes perguntei a meus pais sobre política. É claro que me respondiam segundo suas opiniões. Mas deixavam espaço. Lembro de ficar algum tempo pensando se seria melhor o Brasil aceitar que estrangeiros com dinheiro viessem explorar o petróleo e só nos deixassem uma parte pequena, ou se seria preferível não explorar nada enquanto não tivéssemos os recursos, mesmo ao risco de perdermos o bonde. Por volta dos 10 anos, concluí que era convicta defensora de “O petróleo é nosso”. Mas depois examinei com frieza as razões da concessão frente à partilha. Também escolhi ser parlamentarista após ter pesado muito os argumentos — o que me faz respeitar o presidencialismo e achar, hoje, que talvez uma forma de semipresidencialismo possa ser preferível.
Isso me faz voltar ao plebiscito. Andam falando em plebiscito revocatório na Venezuela. Pode ser útil ter algum mecanismo desses, de recall de presidente. É menos traumático que impeachment, um sintoma de problemas no funcionamento da democracia representativa quando temos dois em 25 anos. Já que não há o voto de desconfiança como no parlamentarismo, nem o ostracismo da velha democracia ateniense, pode ser bom debater alternativas.
A reforma política é prioridade absoluta da nação. A educação também. É assustador ver que são encaradas tão levianamente, com veementes palavras de ordem e desqualificação das ideias alheias, por gente que nem se dá ao trabalho de ler as propostas. O futuro exige que examinemos esses assuntos com cuidado e isenção.