Senhor Presidente, senhores acadêmicos,
Céus! Como é difícil a composição de um discurso de posse na Academia! Eu, que escrevo desde menino, que sempre vivi do que escrevo, que já proferi incontáveis discursos e conferências (escritos e improvisados), em todo o Brasil e lá fora, em Paris, Londres, Lisboa, Porto, Coimbra, Oxford, na Sorbonne, na UNESCO, sei lá – sentei-me para escrever este, crente de que o faria como fiz os outros, livre, espontâneo, sem peias ou restrições –, agora sinto o cérebro mirrar-se, tenho a cabeça reduzida como as das múmias de certas tribos, a dos pré-incaicos Jivaros, por exemplo.
Deve ser o sentimento da enorme responsabilidade. O discurso de posse é a etapa decisiva, a prova de fogo, para o ingresso definitivo na ilustre Companhia, para a conquista do direito de falar e de votar. Mas são muitas as implicações, as praxes e tradições; é o receio de ferir susceptibilidades; é o medo das gafes, que estão sempre à espreita de uma brecha; é a expectativa dos eminentes companheiros, e a dos amigos e admiradores, que deixaram seus cômodos para vir à posse, sabe-se lá com que sacrifícios, antes, durante e depois. É um mundo de motivos inibitórios. É natural que todos esperem uma peça inteiriça, com todos os matadores de um grande discurso, e, mais, talvez inconveniente, audacioso, como sempre têm sido os meus. Ou, então, acadêmico, no sentido semântico da crítica negativista, com manifestações de cultura clássica, de erudição, de citações surpreendentes, e de outros truques impressionantes.
Isso é o que seria fácil com o auxílio de dicionários de frases célebres, catadas pelos infatigáveis dicionaristas, ou com recurso à livralhada coberta de pó, que atravanca meu pequeno apartamento. Seria fácil um discurso assim, armado, uma colcha de retalhos de cerzidura invisível, declamado, as frases divididas como os compassos na música. Seria realmente fácil.
Então, optei pelo simples, conversado, confessando minhas fraquezas e debilidades, como quem vai passar pelo Dia de Juízo para a imortalidade. Devo confessar meu deslumbramento ao entrar nesta Casa, talvez como o fizesse Molière, se tivesse entrado, em pessoa, na Academia Francesa. Mas não me atribuam uma insólita comparação com o genial Poquelin. É que os autores de teatro não podem, nem devem, desprezar a simplicidade que caracteriza sua forma peculiar de expressão. O dramaturgo dirige-se exclusivamente ao povo, para atingir a todas as camadas pelo sortilégio do teatro, que reprime toda e qualquer tendência separatista.
Como justificativa de minha inibição, posso, entretanto, apresentar a prova do contraste entre a dificuldade de compor este discurso, e a facilidade com que elaborei minha obra dramática, meus ensaios, meus artigos e crônicas, toda a minha produção literária, crivada de lugares-comuns, que apavoram os intelectuais de outros distritos literários, mas que, na Literatura teatral, são providências como os símbolos de que dispõem os dramaturgos chineses, para a penetração no espírito das multidões.
Ao escrever este discurso, tantas vezes me perguntei: que fenômeno é este, o da minha gaucherie? Pois não sou, e apenas, escritor e jornalista? Não! Não o era, nem uma coisa nem outra. Era apenas uma pessoa que escrevia e que falava, com aquela irresponsabilidade criadora de quem diz o que sente e o que pensa, sem a censura das inconveniências, ou das conveniências dos carreiristas. Agora, não. Agora sou escritor. Só agora. Antes, escrevia sem saber que o era, sem pensar em ser escritor. Faltava o “diploma”, o reconhecimento dos que já o são, a passagem pelo crivo dos únicos que podem conferir a licença.
Nesse estado de espírito, ao saber que me eram abertas as portas da Academia, fui assaltado pelo mesmo espanto daquele índio mexicano que pintava pequenos quadros em sua aldeia para vendê-los na feira semanal da Cidade do México, com o único intuito de levar de volta aos seus os alimentos de que não dispunham para a subsistência e sobrevivência da tribo.
Aconteceu que, certo dia, expostos no chão seus quadros de pintura primitiva, passou pela feira o diretor da Escola de Belas-Artes. Contemplou os quadros com a autoridade que lhe dava o exercício do cargo, recolheu-os, apesar dos protestos do pobre índio, e levou-os para o Salão a fim de expô-los com todas as honras das grandes exposições de Artes Plásticas. O índio, perplexo, conta-se que dormia à porta da Escola, enquanto se preparava o grande acontecimento, receoso de que roubassem o produto de seu trabalho irresponsável e ingênuo, destinado a converter-se em comida para a família. Chorava, pedia, implorava a devolução das obras, em vão. Chegou o dia da exposição, repleta da fina flor da sociedade snob, e da mais alta crítica. Foi um triunfo! Da boca dos críticos para os ouvidos dos que devem fazer coro saíam os maiores louvores; dos retângulos toscos manchados pelo índio saltavam os mais altos valores pictóricos e estéticos. Era a consagração diante de um homem aparvalhado e medroso, que nunca assistira a um espetáculo semelhante, sempre pedindo, em prantos, que lhe devolvessem os quadros para vendê-los na feira.
É que os vendia a compradores iguais a ele, analfabetos mas não incultos, que fruíam na contemplação das obras os prazeres estéticos que não são privilégios dos cultos, quando se sabe que a Arte antecedeu o Pensamento, e que não é apenas a floração de civilizações superiores. Sabe-se que os horríveis selvagens que viviam dispersos pela Terra, hediondos, disformes, mais parecendo macacos do que homens, tinham já o sentimento da Arte. Procuravam o Belo, enfeitavam como podiam suas horrorosas fêmeas, decoravam suas armas de pedra, fabricavam instrumentos de música, por meio de punções de sílex, gravavam sobre ossos planos os lineamentos essenciais de certos animais, com uma exatidão suficiente para que sejam, ainda hoje, reconhecidos. Nossos mais remotos ancestrais preferiam umas formas a outras, experimentavam um prazer particular em reproduzi-las. Sabe-se mesmo que o sentido da Beleza não é completamente estranho a certas espécies de animais.
Assim, ao pobre índio não faltariam compradores no seio do povo que vai à feira. Mas, depois daquela consagração retumbante, e da influência dos que o consagraram, o infeliz artista ficou perturbado na sua espontaneidade e quase privado de levar o sal e outros elementos que faltavam na sua maloca.
Mutatis mutandis, senhores acadêmicos, minha situação é idêntica à desse índio.
Comecei a escrever justamente para dar de comer à família, que se formava, e que crescia, sem controle de natalidade, quando o chefe ainda era imberbe (casei-me aos dezoito anos). O jornal pagava pouco e atrasado, e o ato de receber era uma verdadeira humilhação, determinada pela superioridade dos gerentes sobre os redatores. O Teatro acenava com melhores proventos, já agora, naquela época, representados pelo direito autoral, estabelecidos em bases orgânicas e estáveis pela nascente Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, fundada por um grupo de intelectuais (alguns, depois, acadêmicos, como Viriato e Paulo Barreto), até ali espoliados pelos usuários das obras do espírito. O caminho a seguir era, portanto, o da produção dramática. De que recursos dispunha eu para a composição do drama? Nenhuns! O remédio era escrever, como o índio pintava seus quadros. Não tinha compromissos com ninguém. Nem com a estética, nem com o estilo, com a técnica ou a crítica. Nem mesmo sabia que o gosto da Arte é tão natural no homem como o instinto de conservação. Compromissos tinha-os sim, mas com o senhorio, que reclamava aluguéis em atraso, e com a nutrição das crianças.
Escreveria para o povo, igual a mim, de igual para igual, orientando-o na sua própria linguagem e na mesma maneira de sentir os eternos conflitos humanos, dos quais eu próprio participava. E as obras foram surgindo espontâneas, fluentes, originais, porque nem mesmo copiar sabia ainda, como quem narra de boa-fé acontecimentos de que foi parte, dramas de que foi personagem. E, mais, com o ardor, a afoiteza da mocidade ainda virgem de preconceitos, sem medo de nada, nem da polícia, como a criança que não sabe o que diz, mas diz o que quer. Escrevia assim, só com a intenção absurda e infantil de “consertar o mundo”. Fi-lo despreocupado, sem pensar na Glória, nos inefáveis benefícios da consagração ou nos contratempos da popularidade.
Quem escreve pensando na Glória não chega a essa bem-aventurança. Escrevi sempre pensando em ganhar a vida, como no exercício de qualquer outra profissão.
O povo aceitou, aplaudiu, e pagou. Minha inocência chegou ao ponto de, apesar de já considerado, por descuido da crítica, como escritor, nunca me incluí nessa categoria. Sempre que me qualificava, em papéis oficiais ou nas fichas dos hotéis, fazia-o como jornalista, que era, afinal, minha única profissão. Não aceitava chás nos salões das mais ilustres damas da sociedade, como era de moda, e muito conveniente aos plumitivos. Nunca usei a expressão: “Nós, escritores...”
Pois um dia, o meu querido amigo Viriato Correia, como o Diretor das Belas Artes que passou pela feira, resolveu me convencer de que eu era escritor, e que tinha pleno direito de candidatar-me à Academia. Confesso que experimentei um prazer novo, diferente de todos os que já sentira ao longo de uma vida de escritor que não sabia que o era. Assim mesmo, para forçá-lo a me convencer, recusei a insinuação. Nunca ouvira tantos elogios na minha vida. Viriato sacudia-me, arrancava os botões do meu paletó, insultava-me, até. Eu, que sofro quando sou atacado, e que detesto exercer o direito de defesa, pela inutilidade dessa atitude em nosso meio, precisava de quem me lavasse a alma, carregada de ofensas gratuitas, que me impediam de tentar subir além dos poucos degraus que já havia galgado. Lembrava-me das palavras do meu amigo e antigo diretor, Paulo Barreto, quando o fui consolar dos mais torpes insultos que vinha recolhendo de seus contemporâneos, concorrentes sem outras armas, quando me disse: “Menino, no Brasil, para subir é preciso deixar uma gota de sangue em cada degrau.”
Mas Viriato insistia: “Você é um escritor autêntico, como já disse tantas vezes de público, em discursos. Suas obras são aplaudidas nos teatros do Brasil e do mundo. E são vendidas nas livrarias, daqui e de fora, em sucessivas edições. Seu povo o festeja nas ruas. Que falta mais?”
Contudo, fiz um exame de consciência, submeti-me a uma rigorosa autocrítica, e, a fim de me livrar da perseguição dos filhos, dos genros, e, principalmente, dos netos, para os quais sou um gênio, e já agora, depois de “imortal”, mais do que gênio, senão um verdadeiro semideus moribundo, cuja morte querem evitar para que não se desencadeiem desgraças de proporções bíblicas – e ainda para fugir aos intermináveis telefonemas de Viriato, candidatei-me. Candidatei- me, embora sem esperança, e passei a cumprir o chamado rito. Não era para a vaga do meu grande amigo. Ele ainda vivia, e, por isso, o estímulo continuava. Desisti duas vezes, contra sua vontade. E mal sabia ele, afinal, que me encaminhava para a sua própria vaga. Nunca teria pensado nisso, senão no fim, como o veremos. Com efeito, há nos arquivos implacáveis do meu amigo João Condé um autógrafo de Viriato que diz assim, textualmente: “Não morrerei nunca! Os candidatos que tenham paciência!”
O cumprimento do rito foi outro estímulo. Afinal, entrava na Casa de todos os acadêmicos, e era recebido pelos maiores vultos da nossa Cultura como se visitasse velhos colegas, antigos condiscípulos. Alguns só me conheciam de nome, e a obra, e dela me falavam com familiaridade. Ao sabor do cafezinho ou do uísque, juntavam o sabor de néctar da prosa erudita. Para um homem de teatro, era o ensaio. E a intimidade ia surgindo tão rapidamente, que, embora por tática, eu não falasse em eleição, e não solicitasse o voto, espontaneamente provocavam o assunto, cautelosamente, para não suscitar uma esperança, ou para que não tivesse ilusões.
Realmente, as visitas acadêmicas foram uma das mais agradáveis fases da campanha. Além das gentilezas, com a mais enternecedora colaboração das esposas, sempre com ares visivelmente de pena do candidato já velho, desfrutava o prazer de maravilhosos contatos humanos.
A Academia, apesar da juventude intelectual de muitos dos seus membros, tende, às vezes, a transformar-se numa verdadeira gerontocracia, com o salutar predomínio dos velhos, que, entretanto, nunca chegam à decrepitude conflitante com os companheiros ainda moços, naturalmente esquecidos do velho conceito latino: Senectus est morbus. Não. Velhice só é doença nos que não se realizaram na imortalidade. Aqui, a imortalidade não significa livrar-se da morte, mas revitalização, vontade de viver mais, e vontade satisfeita, como é fácil de ver-se. E eu precisava desse revigorante psicodinâmico. Por isso renasci para recomeçar, sem invejar a longevidade dos companheiros mais velhos e vigorosos, como me sinto agora.
Com que alegria entrei pela primeira vez na sala de sessões, embora ainda sem direito de voz e de voto, mas fruindo, calado, o prazer das intervenções orais de todos os companheiros! Todos nivelados na mesma idade cultural, apenas desnivelados para cima pela experiência e pela memória de fatos coetâneos, como pela extensão do patrimônio cultural adquirido nos anos que passaram sem deixar outras marcas. Aquela sala foi para mim uma câmara de reflexões. Não falei, mas pensei muito, como o papagaio da anedota. Pensei até, e com tristeza, que completara os quarenta, cobrira a última vaga. E era pena, porque então acarretaria para os outros companheiros, segundo a célebre quadrinha de Fontenelle, o desprezo dos detratores e despeitados. E lembrei-me ainda da inteligente versão que dessa quadrinha do sobrinho de Corneille fez o nosso Lauro Müller. Passou também pela minha cabeça o episódio de La Bruyère, que fizera três tentativas frustradas na Academia Francesa, e respeitara a derrota que lhe infligiu Fontenelle, pelo seu valor; mas quando foi, mais tarde, alijado por Pavillon e Toureil, escritores medíocres, e conseguiu entrar com apoio de Boileau e de Racine, provocou protestos como este, de Suard:
Quand La Bruyère se présente,
Pourquoi faut-il crier “haro”?
Pour faire un nombre de quarente
Ne falloit-il pas un zero?
Esse foi o pior momento do meu mutismo, quando passou pela minha cabeça a quadrinha de Suard. Era o receio de que alguém se lembrasse de adaptar essa quadra ao meu caso, assim:
Se é Joracy que se apresenta,
Por que protesto assim severo?
Pra que tenhamos um quarenta,
Não se utiliza sempre um zero?
Consola-me, entretanto, saber que, pelo menos nesse particular, não seguimos o modelo da Francesa.
Por outro lado, tenho minha Cadeira altamente prestigiada pelos nomes ilustres de seu patrono, Manoel Araújo Porto Alegre, de seu fundador, Carlos de Laet, e dos seus sucessores, Ramiz Galvão e Viriato Correia.
Mesmo que não me ocorresse a obrigação de levantar a figura e de enaltecer as virtudes literárias e humanas de meu antecessor imediato, eu o faria espontaneamente. Viriato Correia foi uma criatura impressionante pelo complexo de qualidades positivas que se fundiam na sua personalidade. Humilde, apesar de sua origem, nascido de um homem que poderia ter sido um senhor feudal na sua região, mas que era bom, generoso, e incrivelmente altruísta, parecia exagerar sua humildade inata, dela fazendo seu único motivo de orgulho. Sua capacidade – tão rara em nosso meio – de admirar a obra alheia e de proclamar espontaneamente o valor de seus contemporâneos, e até dos desafetos, que os tinha, muitos, gratuitos, era a mais forte característica de seus sentimentos de solidariedade e de fraternidade, sem imposições de ordem religiosa. Viriato, que tinha a cabeça superpovoada de ideias e de pensamentos, não tinha, por isso mesmo, como tantos, o horror da solidão. Vivia só, e no abandono em que vivia, por vontade própria, nem a morte temia, a morte que tanto e confessadamente o apavorava quando na companhia de seus amigos e companheiros. No convívio espiritual de quantos estimava, quer os do fundo da História, ou em presença dos vivos, alegava que não tinha vagar para admitir o fenômeno inevitável de seu fim. Muitas vezes, sutilmente, adverti-o de que poderia ser assaltado no seu recolhimento por um mal súbito, sem a necessária e imediata assistência que lhe dava sempre o seu dedicado amigo e médico, Peregrino Júnior. E ele respondia que o medo da morte era tão grande, que não admitia, sequer, a ideia de defender-se dela. Quando me telefonava, todas as manhãs das sextas-feiras, para me dar meticulosas contas de sua atividade da véspera junto aos companheiros da Academia, em favor de minha candidatura, encerrava o diálogo, invariavelmente, assim:
“Mas não é para minha vaga, hem!”
E eu tinha que prolongar a conversa, consolando-o da ideia incoercível, que, certo, o perseguia, de que minha entrada nesta Casa não poderia ser mais retardada, como me dizia, nem que fosse preciso ceder-me, como cedeu, sua própria Cadeira. Era tal o seu empenho (e quanto isso me emociona!), que, estou certo, admitiria seu sacrifício como última cartada em meu favor. Não foi à toa que me recordou o episódio de sua candidatura, provocado por um gesto impensado de Medeiros e Albuquerque. Os senhores acadêmicos devem conhecer o episódio. Para conseguir a eleição de Viriato, Medeiros, que foi o seu maior amigo, imaginou uma carta póstuma à Academia. Na carta fazia esta coisa singularíssima: advogava o direito de votar depois de morto. Pedia que a Academia discutisse esse direito em plenário. Se o direito lhe fosse reconhecido, que se aproveitassem os votos que enviava num envelope fechado. Mas, se os acadêmicos decidissem pela recusa, pedia que o envelope fosse aberto e lido em voz alta o nome que ele encerrava. O nome que encerrava era o de Viriato. Disse ele, em seu discurso de posse, que a carta era uma espécie de Cavalo de Troia, deixado à porta da Academia. E confiava em que os acadêmicos tivessem medo de almas do outro mundo. Mas o ardil póstumo não pegou, e a carta foi rasgada pelo Presidente, que era Ramiz Galvão, justamente a quem o candidato aflito sucedeu. Com que intenção Viriato recordou para mim o episódio? Não sei. O que sei é que escreveu, antes de morrer, o discurso com o qual me receberia, e que me leu, na íntegra, pelo telefone. Infelizmente, na balbúrdia em que deixaram o seu gabinete de trabalho, no dia seguinte ao de sua morte, não consegui encontrar o manuscrito, que pretendia ler hoje desta tribuna. Sei ainda que há de provar alguma coisa a circunstância de haver redobrado os seus esforços, nas vésperas da morte, comparecendo à Academia, trôpego, para deixar no espírito dos companheiros a convicção de sua última vontade, às vezes, incômoda para mim, de me ver sentado ali numa das Cadeiras do plenário ilustre, nem que fosse a 32, na qual irei sentar-me daqui a pouco, com o maior respeito e veneração pela sua memória. Sim, senhores acadêmicos, era esse o companheiro que, para eleger-se, fez cinco tentativas angustiantes, que começou a namorar a Academia ainda de cabelos pretos, para entrar aqui de cabeça branca, como, humildemente, revelou no discurso de posse.
Perdoem-me que para suceder a um acadêmico que viveu espalhando alegria na sua obra, e até nos discursos e conferências que aqui mesmo pronunciou, esteja eu a entristecer-vos com a memória de fatos de tom que não se coaduna com o espírito irrequieto de meu amigo. Perdão ainda peço, entretanto, para narrar o último episódio, o que mais me comoveu, e que prova o quanto Viriato amava aos outros como a si mesmo. Na manhã do dia em que morreu, pouquíssimas horas antes do desenlace, já apenas balbuciando algumas palavras, moribundo, talvez aceitando o fim sem medo, fez-me baixar a cabeça, e murmurou ao meu ouvido: “Como você está vendo, Joracy, vai ser na minha vaga mesmo.” O que me valeu naquele instante trágico é que ele não pensava ainda em morrer, como eu admitira. Mal comecei a sofrer, entrou no quarto uma enfermeira quase branca, mas totalmente bonita, e Viriato prosseguiu ao meu ouvido: “Pergunte a ela se quer casar comigo quando eu sair daqui.”
Mas nem tudo são tristezas, porque Viriato, morto, é a prova viva da imortalidade acadêmica. Aí está ele, em suas obras, vivendo ainda, agitado, percorrendo todas as áreas da atividade intelectual, sempre lido e lembrado, suas obras recriadas na memória e na compreensão e interpretação de seu pensamento. Ele, que manteve o ímpeto de sua imaginação criadora até perder as últimas reservas de sua energia física, quase cego, garatujando as palavras para não perder um só segundo, antes da hora da partida, tinha tanto ainda o que dizer, quando já não era mais possível nem preciso – parece que transmitiu, nas obras, aos seus leitores uma espécie de capacidade de continuarem por ele, pela interpretação profunda, as obras que deixou como herança coletiva. Morreu querendo dizer tudo, sem se lembrar de que já o dissera, principalmente às crianças, que, na fase adulta, vão dizer o resto. E disse-o nos ensaios, nas crônicas, na História, no Teatro, sobretudo no Teatro, que era sua vocação máxima, e que lhe deu o mais amplo acesso ao coração dos homens e das crianças.
Se se quiser pesquisar a personalidade do escritor em Viriato Correia, bastará analisar sua Literatura infantil, e tomar como plano de referência sua repercussão no espírito das crianças, que deram vida própria às suas personagens, transformando, por exemplo, o terrível Cazuza em companheiro vivo de todas as horas de folga e de brinquedo, até mesmo nos bonecos que confeccionavam, representando o herói, que fora o autor, na infância, em marionetes com alma feita da plasticidade das narrações, lidas e relidas, e recitadas de cor em presença do criador, nas escolas primárias. Era a vocação do teatro que lhe dava essa força de penetração para comunicar-se com o minileitor, que devia ser atingido de forma a não contar o escritor com qualquer tipo de contribuição intelectual.
Viriato conseguiu contar às crianças a História da Liberdade no Brasil, obtendo resultados que lhe deram a convicção de que os pequenos leitores, nas suas composições escolares, assimilaram de modo crítico as narrações dos diversos episódios de nossa libertação política. E morreu pensando nelas, quando escrevia a História da Literatura para Crianças. Pode-se dizer que, com o seu maravilhoso poder de transmissão, seria capaz de escrever um livro infantil sobre a Teoria da Relatividade ou a Desintegração Atômica, fenômenos que muito poucos conseguiram explicar aos homens mais adultos e mais letrados, mesmo cientistas.
Só foi escritor, nada mais que escritor.
Quando o convocaram para o Magistério, revelou-se um verdadeiro pedagogo. E a tal ponto estimava conduzir os moços à plenitude dos conhecimentos de humanidades, que chegava a dizer, como o fez a mim, muitas vezes, que o Magistério deveria ser exercido gratuitamente, pelo prazer de conduzir, de ensinar, como missão, e não como profissão rendosa. Inarredável ingenuidade de um homem puro. Certa vez, mostrando-me a “bolada” (palavra dele) que recebera como professor, disse-me que era um escândalo pagar--se tanto a quem tinha, como todos, o dever de ensinar o que sabe. E note-se que Viriato não era um mãos-abertas. Apenas a origem do dinheiro é que não o agradava, como muito menos o agradava gastá-lo. Nasceu rico e viveu como se tivesse feito voto de pobreza, apesar do dinheiro que ganhava e que deixava, vultoso, nas mãos dos seus editores, para retirá-lo aos poucos, na medida de suas necessidades mais prementes. Lamentou a eliminação dos bondes, que eram transporte mais barato, e passou a transportar-se em ônibus elétricos, e dizia-me que era para habituar-se, gradativamente, à vertiginosidade atual da vida, que conduzia os homens mais depressa ao fim. Receio inútil, porque viveu intensamente, durante 83 anos.
Manuel Viriato Correia Bayma do Lago nasceu numa quarta-feira de chuva no dia 23 de janeiro de 1882, no povoado de Pirapemas, Maranhão, onde também nasceria João Francisco Lisboa, para aumentar o número de grandes maranhenses. Pirapemas é uma das quatro povoações humildes em que está dividido o Município de Coroatá. Ao saudá-lo aqui, por ocasião de sua posse a 29 de outubro de 1938, Múcio Leão caracterizou bem a origem do filho do comerciante Manuel Viriato, citando trechos de um de seus livros, no qual afirmou:
O povoado em que nasci era um dos lugarejos mais pequenos, mais pobres e mais humildes do mundo. Uma ruazinha apenas, com umas vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores, e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização, a escola apenas. As ruas e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo solto, as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois.
Mas pouco importa o lugar em que nascem os homens que trazem a dotação e a força, mesmo telúrica, para crescer, agigantar-se, em qualquer lugar. Viriato, do lugarejo em que nasceu só trouxera a formação moral. Foi criança no Maranhão; rapaz na Faculdade de Direito do Recife; fez-se homem na casa de Medeiros e Albuquerque, e na vida literária e jornalística do Rio foi um dos maiores escritores contemporâneos. Mas não perdera a ingenuidade do menino de Pirapemas. Ingenuidade que muitas vezes o fazia confessar uma ignorância quase imperdoável, se não fora a pujança de seu talento criador, de inspiração que não sentia a falta de uma cultura enciclopédica como a de tantos ignorantes brilhantes. Para ele, a cultura eclética pareceria supletiva da falta de imaginação. Não precisava disso. Exemplo dessa confiança no seu poder criador, é o fato de nunca haver tomado conhecimento do significado do seu nome. Não sabia que Manuel é uma corruptela de Emanuel – “Deus conosco”. Que era o nome de Jesus. Ele próprio contava, como narra o biógrafo e parente, Hércules Pinto, que, em Pirapemas, quando o casal via morrer todos os filhos recém-nascidos, o recurso para que sobrevivessem os vindouros era batizá-los com o nome de Manuel. Assim também era batizado o menino cuja vida estivesse em perigo. Diziam – e ele nunca achou explicação para isso – que Jesus era Manuel. Como se explica essa ausência de curiosidade, de uma curiosidade tão frequente em escritores que querem parecer cultos, ou, pelos menos, eruditos? Explica-se em Viriato, porque nele nada era falso. Não o interessava parecer culto quando sabia que a cultura autônoma, sem erudição, transparece na obra, resulta da assimilação crítica dos fenômenos da própria vida, de tudo o que se aprende e se esquece. E sua obra está aí. O que aprendeu na História foi transfigurado e interpretado para colocá-la ao alcance de todos os graus de inteligência e de receptividade, e ainda para dar-lhe a graça de sua verve. Os episódios que lia ou estudava nos historiadores rígidos, narrados no estilo dos relatórios, e orientados no sentido das conveniências oficiais, Viriato transformava em estórias transparentes, renovadas, vencendo as distâncias com a luneta de seu estilo translúcido, que penetrava na intimidade dos acontecimentos, e mesmo no ethos de seus heróis, ou simples personagens. Ninguém como ele, e, graças à sua vocação para as letras teatrais, sabia surpreender e captar, nos episódios áridos da História, a substância dramática, o assunto específico do Drama, a temática adequada, sem a qual o Teatro não existirá. Ninguém como ele, talvez só Machado de Assis, fazia do diálogo veículo da ação, que conduz o leitor ou o espectador, imperceptivelmente, no sentido do tema, persuadindo-o a participar, efetivamente, de suas ideias e pensamentos. Como muito poucos escritores, pode ser chamado de garimpeiro da História, catando pepitas que passaram sem luzir aos olhos de tantos, e que ele soube reunir nas Histórias da Nossa História, no Brasil dos Meus Avós, no Baú Velho, na Gaveta de Sapateiro, e, principalmente, nas Alcovas da História e na Casa de Belchior. Teria inventado o que ninguém percebeu na História do Brasil? Não. Apenas aprendeu nas cenas visíveis o que teria acontecido nas cenas ocultas. Desde a Terra de Santa Cruz (1921), até ao País do Pau de Tinta (1939), Viriato, instintiva ou intuitivamente, serviu-se da acuidade própria do autor teatral para recontar a História como se dela tivesse sido testemunha pessoal. E para demonstrar que não era um simples polidor de histórias já narradas, deu-nos Minaretes, Contos do Sertão, Novelas Doidas e Histórias Ásperas, que são obras de ficção nascidas de sua extraordinária capacidade de imaginação, sem influências, sem filiação a escolas, da mais evidente originalidade, até ao aspecto técnico. Esses foram os seus contos. Mas, mesmo no romance Balaiada, de fundo histórico, a ficção está presente, completando-a, dando-lhe plasticidade, reforçando as cores dos cenários, o que dá aos leitores a impressão de um espetáculo.
Para não entrar, fastidiosamente, no mérito de cada uma de suas dezenove obras de Literatura Infantil, começadas em 1908, para terminar em 1962, ou mais adiante, na véspera de sua morte, bastaria dizer que foi o único rival válido do grande Monteiro Lobato. Se não grangeou nesse terreno movediço a mesma fama e repercussão do Mestre do Pica-Pau Amarelo, isso se deve apenas ao fato de não haver dado às obras o caráter diretamente didático que, com tanta felicidade pedagógica, deu Lobato às suas. Entretanto, em Viriato, o didatismo é diferente, indireto, ensinando os fenômenos da vida que não estão nos fatos da Ciência, mas nos conflitos da sociedade humana. Nessa área, certo, será maior no futuro, ou tão grande quanto o foi o criador de D. Benta.
Mas onde Viriato está todo, de corpo inteiro e de espírito presente, é no Teatro. Era a sua paixão, a mesma que assaltou Machado de Assis, que, infelizmente, não conseguiu, como confessou, penetrar-lhe o mistério, o segredo, que só os eleitos como o autor de “Juriti” descobrem e decifram. Nas suas 27 peças, de todos os gêneros, Viriato deixou os traços de sua personalidade, expendeu sua opinião sobre todos os conflitos sociais e políticos. Depois do telurismo de “Sertaneja”, sua primeira peça, em 1915, de “Sol do Sertão”, em 1918, de “Juriti”, em 1919, e outras, trazendo-nos usos e costumes de sua terra, enveredou pelo Romantismo em “Zuzú”, “Uma Noite de Baile”, “Pequetita”, “Maria”, e outras, para compor, depois, com mestria, a sátira, em “Sansão”, “Carneiro de Batalhão”, “Rei de Papelão”, “Pobre Diabo”, para logo retomar o mais puro romantismo em “À Sombra dos Laranjais” e “Estão Cantando as Cigarras”. E chegou à audácia, na época, como ele mesmo considerava, com seu teatro de caráter social em “O Homem da Cabeça de Ouro”, “Dinheiro é Dinheiro” e principalmente em “Sansão”, sua obra-prima, no gênero. Não pretendo analisar uma por uma, tão vasto é o seu repertório. Mas há em todas um traço fundamental, a mais pura, a mais cândida ingenuidade. Não escrevia, como supunha, peças propriamente de caráter social com intenção política. Era poeta, desviado do caminho pelo suborno de um avô. Do “sertanejismo” de que falou Sílvio Romero, referindo-se a Joaquim Serra, também maranhense apaixonado pelo seu sertão, passou a apreender, nos grandes meios urbanos do Rio e de São Paulo, os aspectos cômicos das cidades atordoadas por supostos hábitos franceses, deixados por aqui pelo famoso Alcazar Lyrique, mas ressaltando os pormenores cômicos. Excluída a “Marquesa de Santos”, peça de mestre, no gênero, que define o temperamento do Príncipe mulherengo, e a esperteza pecaminosa de D. Domitila, e na qual procura reabilitar o proclamador da Independência, pode-se dividir o teatro de Viriato Correia em dois ciclos, ambos no campo do Teatro de Costumes: o sertanejo, e o que poderia ser denominado, por um título geral, molieresco, de “Escola de Maridos”. O primeiro, são verdadeiras águas-fortes do sertão de sua infância; e o segundo, o das lições de vida conjugal. Nas obras desse ciclo, é prodigiosa sua imaginação criadora. Adivinhava, porque nunca tivera a vivência das situações que transplantava para o palco. Nelas, ensina aos maridos a melhor técnica para enganar as esposas. E não se esquece de ensinar às vítimas a conveniência do conformismo, da complacência. Mas, para efeito teatral, cria, e resolve, os contratempos úteis à mais irresistível comicidade. Era no tempo dos bilontras, dos maridos farristas, dos últimos boêmios, que são os melhores maridos, apesar dos pesares... Enganavam, sim, mas chorando de remorsos, e com tanto talento, que, quanto mais enganavam, mais carinhosos se tornavam. E pagavam às esposas um alto preço pelos atos de adultério bem elaborados. Eram jóias e vestidos de bom gosto, muitas vezes escolhidos pelas amantes mais práticas e mais exigentes. Viriato foi o mestre que sabia ensinar, mas não sabia fazer. Acabou vítima de seus vícios de imaginação.
Outra exceção é a peça biográfica, a que mais amava, ainda inédita, sobre “O Grande Amor de Gonçalves Dias”, escrita em 1959, e que vale, pelo conjunto de meios de expressão, tanto quanto qualquer outra biografia, meticulosa e comentada, do gênio da Poesia, maranhense e universal, como a excelente obra de Marques Rebelo. Com que prazer Viriato lia para nós, os amigos, vezes seguidas, a obra inédita sobre os amores do “Poeta do Exílio”, como o chamou Josué Montello. Como ele lhe dava vida, calor, beleza plástica, numa interpretação que nenhum ator fará melhor! Era a última obra, feita com o mesmo entusiasmo da primeira. E que Viriato nunca parou de escrever. Outra obra ainda não representada, e de um valor dramático excepcional, encontrada, depois da morte do autor, nos guardados de Josué Montello, e a mim confiada para publicação em separata da Revista de Teatro da SBAT, é “Maurício de Nassau”. Nela, Viriato, respeitando e abrangendo todo o período áureo da dominação holandesa, compôs uma peça que nos dá a impressão de obra do mais liberto ficcionismo, com todas as características das peças normais, ao mesmo tempo didática. As obras educativas não devem ser feitas por encomenda, mas escolhidas entre as do repertório já feito, principalmente as de assunto histórico. “Maurício de Nassau” deveria ser utilizada pelos órgãos oficiais da Educação como a mais conveniente ao ensino do capítulo de que trata. Como disse, Viriato nunca parou de escrever. E quando precisava de descanso, escrevia ainda para jornais e revistas, todos e todas, que lhe disputavam colaborações, assim também o Rádio e a TV. Para escrever-se uma biografia completa de Viriato, acrescida da sua vasta bibliografia, talvez nem mesmo Raimundo Magalhães Júnior, que aumentou as horas do dia, terá tempo para pesquisar. Eram tantos os periódicos que contaram com a prioridade de seus trabalhos, que sou forçado a me dispensar até de uma simples enumeração. Como um dos fundadores da Careta, a revista nova, na época, não copiada das estrangeiras, perpetuou-lhe a memória, com o auxílio das finíssimas caricaturas de J. Carlos. Seu último trabalho, a História da Liberdade no Brasil, foi tão impetuosamente vulgarizado e imortalizado, que chegou a penetrar no mundo arquipopular do Samba. Subiu o Morro do Salgueiro e trouxe para a cidade a última Escola que lhe faltava conquistar, cujos “alunos” deram vida às liberdades por ele narradas e exaltadas, em forma de teatro processional. Era tão simples o acadêmico da Casa de Machado de Assis, tão do povo, que não se chocou, como não acredito que ninguém se choque, quando um dos oradores populares que o saudaram em pleno terreiro da Escola de Samba lhe deu o título de “Acadêmico do Salgueiro”. Ao contrário. Levado pelo Correio da Manhã para visitar a Quadra Calça Larga, e ouvir cantar, e ver dançar, sua “Liberdade”, sentiu-se tão feliz que não viu no arroubo do orador ignorante nenhuma ofensa à sua condição de imortal, mas a consagração do povo, que, pela atração irresistível de sua obra, aproximava-se da Cultura e do sentimento de liberdade. E disse que era só o que faltava. Com efeito, não lhe faltava mais nada, senão o julgamento supremo do povo, que tanto amava. Por isso, deve ter morrido feliz, plenamente realizado, como poucos escritores terão morrido, talvez ouvindo os ecos longínquos de sua obra, cantada pelas multidões no delírio coletivo de um carnaval impregnado de seu talento e de sua cultura.
Foi, sem dúvida, de inspiração profética a escolha que o fundador da Cadeira 32, o terrível polemista Carlos de Laet, fez, indicando o nome do dramaturgo Manuel de Araújo Porto Alegre, aquele que permitiu a Martins Pena conquistar o título de fundador da Comédia Nacional. Na fila de dramaturgos só discrepou o panorâmico Ramiz Galvão. Porto Alegre tinha tudo para ser um bom dramaturgo, com altura suficiente para patrocinar os dois outros e os que venham a seguir. Era também pintor, arquiteto, poeta e crítico, artes que confluem para o Teatro. Na comunhão das artes que informam a Arte Cênica, a Poesia, a Pintura, a Arquitetura e a Crítica nunca podem estar ausentes sem prejuízo de sua harmonia e de sua força de expressão artística. Foi bem lembrada a homenagem de Laet ao talento de Porto Alegre, equivalendo à aprovação crítica das Brasilianas do gaúcho de Rio Pardo, e com aquela autoridade do polemista ferrenho das memoráveis pugnas literárias que abraçavam tantas áreas penetradas pelo espírito e pela Cultura. O patrono tivera, assim, consagrado o seu alto poder descritivo, não só nos poemetos reunidos naquela obra, como nos quarenta contos de “Colombo”. Laet, pela sua incrível vocação de polemista, era um crítico soberanamente intransigente. Escolhendo-o, recomenda-o ao respeito e à estima de seus sucessores, como à de todos os ocupantes das demais Cadeiras. Disso deu exemplo quando esteve sentado na que cedeu, mais tarde, a Ramiz Galvão.
Quando se sabe que a bondade é a suprema inteligência, não se pode negar a Ramiz Galvão o direito, que lhe foi assegurado, de ingressar na Academia de Letras. E, se lhe quiséssemos exigir os títulos específicos, não lhe faltariam obras que o recomendassem à imortalidade. Mas cometeu um erro, um profundo erro, o de não dar às suas produções o caráter literário, às vezes inútil, que recomendou à posteridade tantos escritores sem valor. Foi imprevidente, se pensava na Academia? Ou foi honesto, como não poderia deixar de ser um escritor de sua estatura e formação? Veja-se: foi médico, com valiosas teses publicadas, foi professor de Grego, de Retórica, de Poética e de Literatura; foi educador, escolhido para preceptor dos netos de D. Pedro II; foi filólogo do Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega, foi crítico literário, deixou estudos sobre Vieira, Mont’Alverne, Cláudio Manuel da Costa e Fagundes Varela, foi historiador, respeitado, até, por Capistrano de Abreu, foi biógrafo de Barbosa Machado e de Frei Camilo de Monsserrate. Édson Nery da Fonseca diz que foi um homem enciclopédico, mas preferiu apresentá-lo como bibliotecário e bibliógrafo, desistindo de fixar em seu livro “uma biografia de Benjamim Franklin Ramiz Galvão”, embora afirme que aqueles dois títulos decorrem de “sua imensa cultura geral”. – Aí está o que acontece com os escritores que apenas servem à Cultura ao invés de servir-se dela para conquistas pessoais. O modelo é Ramiz Galvão. Ingênuo e bom, chegou ao fim de uma vida quase centenária de exercícios das Letras, fundado na Cultura, mas na triste condição de aio dos príncipes, por um capricho do Conde D’Eu. E sabe-se que foi dedicadíssimo como preceptor, mesmo intimamente repugnado, quem sabe se suspeitando de que passaria à História apenas com esta epígrafe, bonita apenas para lápide de sepultura: “Ninguém o excedeu no cumprimento do dever.” Isso, se a Academia não lhe tivesse dado o título que mais mereceu.
O mesmo fenômeno poderia ter acontecido com Carlos de Laet. Mas os temperamentos eram fundamentalmente diversos. Fervoroso católico, apostólico, romano, nunca se deixou prender, totalmente, pelos princípios mais cristãos de sua religião, os que procuram incutir a resignação como principal arma de defesa contra as maldades do mundo, como elemento de sujeição paciente às agruras da vida. Lembrava aquele menino rebelde, que perdeu o presente de uma sonhada bicicleta, porque “não admitia certas coisas”. Por isso, alguém disse, de Laet, que “era uma jararaca na porta de uma igreja”. Contudo, seu veneno era o veneno da Cultura perfeita, servida de uma sagacidade intelectual única, sui generis. Nas suas famosas polêmicas, venceu a todos os contendores, inclusive ao “intratável polemista da Boêmia do Espírito”, como assinala o notável ensaísta Eugênio Gomes. Além da prática constante do jornalismo excitante, o domínio da língua vernácula, e o temperamento sarcástico, Carlos de Laet colocava acima da Religião, que professava com ardor, o sentimento estrutural da dignidade humana. Não podia ser um homem mau. Mas não ameaçassem suas convicções políticas, religiosas, culturais e linguísticas. Passava a ser uma fera, que tinha na ciência da polêmica a arma natural, invencível. Levava sempre a melhor, ou pela inferioridade dos contendores, no terreno, ou pela posição em que eles se colocavam. Foi o caso de Machado de Assis, que, para evitar uma polêmica com o gigante, atalhando-lhe um gracejo, disse-lhe, gaguejando: “Não faça tal, que os partidos não seriam iguais: isto, para você, seria uma festa, uma missa cantada na sua capela, e, para mim, uma aflição.” O dono desta Casa era tímido, ou talvez ignorasse outras facetas do espírito de quem lhe infundia tanto medo. O polemista temido era bom, também, e generoso. Quando Camilo, no Cancioneiro Alegre, investiu contra Fagundes Varela, criticando-lhe impiedosamente um erro de gramática, Laet gritou daqui para o além-mar, na defesa de seu compatriota:
Assim pudesse eu fazer a vontade, em tudo, ao distinto literato português, quando tanto insiste para que eu, destas plagas, lhe envie a pitanga e o macaco. De pitanga não é mais tempo, e quanto ao macaco, entro a hesitar se devo mandar-lhe do Antigo ou do Novo Continente. Sim, porque os há de uma e outra parte do Atlântico, fique o Sr. Camilo sabendo... Catarrínios e platirrínios – chamou-lhes o eminente zoologista Saint-Hilaire. Estes, os meus patrícios, têm as narinas separadas por largo septo, 32 a 36 dentes, cauda apreensora. Aqueles, os compatriotas do Sr. Castelo Branco, têm o septo nasal pouco espesso, sacos nas bochechas, e calosidades nas nádegas. Agora é escolher...
Como se vê, entre Laet e Camilo, é como de pato a ganso: pouco avanço. No mesmo jeito, Laet tinha o prazer da luta, e, como diz Eugênio Gomes, do remoque satírico, que estava tanto na sua índole, que até os discursos de saudação a colegas, aqui na Academia, foram irônicos. Mas reconciliou-se, depois com Constâncio Alves, e alegrou-se com a circunstância de presidir à solenidade em que seu antigo e petulante adversário tomou posse de sua Cadeira. E ouviu, com fair-play, o que Félix Pacheco disse em seu discurso, reproduzindo enfaticamente o que o ensaísta baiano dissera sobre as contradições do presidente da sessão solene.
Mas Laet não foi apenas o polemista invencível; foi ainda o orador acadêmico, um grande conferencista, o jornalista puramente literário, o estilista perfeito. Foi autor, com Fausto Barreto, da Antologia Nacional que educou, para o uso certo da língua, e para as Letras, com seus excertos impecavelmente selecionados, mais de uma geração. E que aí está à espera de reedições, pois nunca foi superada, abrangendo um período que ainda é conveniente à formação da geração atual.
No mesmo sulco do meu querido Jorge Amado, na mesma época (e se tivéssemos acertado os relógios, talvez não coincidisse tanto), também fiz, no Teatro, o que o grande amigo do povo fez no Romance. Em 1930, na peça premiada pela Academia, “O Bobo do Rei”, fiz aparecer tipos humanos apanhados no Morro da Favela, que deveria apresentar à burguesia dominante, distraída e egoísta, para que os contemplasse como vítimas da desorganização social, a tempo, não de evitar, mas de atenuar os efeitos da atual inquietação. Coloquei em cena dois jovens frustrados, o Pingoin e a Picolé, como eram chamados no morro, um estudante de Direito e uma normalista, marginalizados pela desafiante crise social e educacional brasileira. Mostrei aos responsáveis pela marginalização em massa, o estado de miséria e de humilhação mortal a que foram condenados, como tantos, dois elementos válidos, dois fatores econômicos impedidos de integrar-se na comunhão nacional. E os responsáveis aplaudiram o próprio erro, a máxima culpa, riram da desgraça dos jovens, inconscientemente, inocentemente. Hoje, talvez tivessem outro comportamento. Foi essa indiferença suicida que me levou a prosseguir na missão, fazendo desfilar aos olhos dos distraídos minha galeria de tipos impressionantes de egressos da sociedade, de párias, verdadeiras toxinas a envenenar o organismo, já quase sem reservas, do País. Acreditavam os espectadores nos sociólogos reacionários e superficiais, que davam nossa Sociedade como já organizada. Diante de espectadores que iam ao teatro para divertir-se com a desgraça alheia, fiz desfilar mendigos, cachuchas, peruas delirantes, dementes luéticos, ébrios sonhadores, jovens massacrados, no início da vida, pela anacrônica organização judiciária, uma grande procissão de vítimas indefesas, cartazes vivos de propaganda subversiva, da subversão dos seus algozes. Por isso, como Jorge Amado, fui abertamente recomendado à ação repressora da Polícia, e tive interditadas minhas peças bem intencionadas, uma delas, “Marabá”, arrancada violentamente de cena, justamente a que mostrava ao Poder Público e aos seus agentes responsáveis pela ordem política e social as origens do estado a que havíamos chegado. Mostrei ainda a solução, fácil, simples, em “O Neto de Deus”. Mas a crítica, integrada na mesma desordem social, desprezava a essência teatral das obras, seus valores estéticos e artísticos, para condená-las, carrément, como teatro político, engajado, servindo a uma determinada ideologia. Queria, talvez, que eu fizesse arte pela arte, ignorando que isso não tem sentido em Poesia, nem em Novelística, e muito menos em Teatro. Certo, pretendiam que o autor tivesse uma capacidade de desumanização que devesse pôr em exercício nos seus livros e seus dramas. Não haviam lido Ramón Sander, que perguntava: “Será que pode haver Arte pura, como um som, como um raio de luz?” Claro que não.
Toda expressão literária e todas as formas de expressão estão saturadas de um sentido interessado, como a água de bactérias que a tornam potável. Com a mesma lucidez, ele responde que essa velha forma de “arte pela arte” pretende que a Arte não se coloque ao serviço de credos políticos ou sociais, que não se subordine ao papel de instrumento de propaganda. Não sabiam que as palavras têm um valor convencional, e que nisso está o alcaloide político. O mesmo acontece com os atos mais simples e rotineiros do homem na vida de relação. Saudar a um conhecido na rua é um ato político, porque expõe a interpretações dos outros, e pode ter transcendência em fatos posteriores, alheios à vontade dos dois conhecidos. Julgar uma outra pessoa, expressar um desejo que não corresponda, exclusivamente, às três ou quatro necessidades corporais, é fazer política, é fazer-se presente por meio de ideias, sugestões, crenças, que se incorporaram à nossa biologia nesse processo educativo que há na vida de relação dos seres mais intranscendentes. Só não são políticos a pedra, a árvore, a luz, o que vive sem consciência, nem de si, nem de tudo o que os rodeiam. E onde melhor se manifesta essa impossibilidade de deslindar a emoção literária de sua transcendência política e social é no Teatro.
Quando comecei a escrever, por necessidade econômica, e por imperativo da opressão reinante, estávamos no reinado do “Teatro puro”, poético, que é embriagador e se prende aos cânones mais brandos da velha tradição estética, ao conceito inerte e mortiço do “artístico”, que atirava para as costas a verdade dramática e dramatúrgica, o que desprezava o Teatro teatral (no bom sentido), ativo, dinâmico, que exalta e estimula a realidade de nossa vida, sempre em marcha, avançando, que recolhe suas melhores vibrações e as projeta valentemente nas sombras do amanhã, para desentranhá-las e para dar-lhes uma forma emocional. Esse Teatro – Teatro por antonomásia – é o Teatro político. Se o Teatro é uma arte para multidões, como sempre o foi nos seus melhores tempos, devemos convir com Sander em que o Teatro mais teatral, o que mais corresponde à sua origem, é o que chega antes, e com maior força, à consciência de um número maior de espectadores. E o que afronta os problemas e as inquietudes coletivas em sua obscura raiz, e não em sua aparência conveniente; é aquele que, fundindo em uma só emoção as crenças, as dúvidas, os temores, as esperanças, o belo, o doce e o terrível, produz nas massas uma sensação de supervitalidade, de estímulo, nessa luta eterna e universal entre o desejo e a impossibilidade, o tempo e o calendário, o indivíduo limitado e a imensidade. Esse é o Teatro político. Não é ainda o Teatro revolucionário, que existiu em todas as épocas históricas, porque a obra de arte de proporções geniais é sempre revolucionária. Não foi esse o meu Teatro, pela ausência completa de genialidade, mas foi o Teatro político, pedagógico, em serviço de colaboração com a burguesia esclerosada, feito com atitude de generosidade consciente, corretivo, que atingiu em cheio grandes massas de espectadores, daqui e de tantas outras latitudes, mas que teve suas lições indiretas e plásticas recusadas pelos principais interessados. Que foi combatido pelos que deviam recomendá-lo à consciência dos que não sabiam que eram os interessados. Mas o povo, não. O povo, como o fez Jorge Amado, deu-me o prêmio que hoje recebo ao ingressar na ilustre Companhia. Já é um índice de compreensão dos objetivos do verdadeiro Teatro político, não polêmico e panfletário, que não trata de dar ao Comunismo ou ao Socialismo um elemento de propaganda, uma arma de luta, mas um lugar no qual os mais humildes tenham acesso à Arte, como declarou Stefan Priacel, referindo-se ao Volksbühne – Teatro do Povo alemão. Só os ilustres membros desta Casa poderiam me fazer justiça. Meu Teatro era para o povo, e eu sabia que o público teatral, diante de uma obra autêntica, não precisa estar polarizado pela Cultura, e muito menos pela cultura livresca. A cultura literária, mais do que formar, deforma o gosto do público teatral. A imaginação das massas – e poucas com tanta imaginação como as nossas – precisa de uma válvula de escape, de segurança, o caminho para o infinito, que só a Arte pode dar. E, no caso do Teatro, tem-se que oferecê-lo na base de motivos universais e imediatos, cuja entranha política é inevitável, já que a imaginação só coincide, nas massas, para o protesto ou o aplauso, e atrás de cada um dos casos há uma realidade política. A Cultura é inimiga dessas coincidências coletivas na afirmação e na negação. É estática, contemplativa. Diante do extraordinário tem uma atitude compreensiva, possibilista, fria. A afirmação ou a negação do público das plateias consiste em reações simplesmente biológicas, vitais. Por isso, a Cultura, muitas vezes, dá uma impressão antivital, “negativa”, e a supercultura, como a supercivilização, conduz, individualmente, no primeiro caso, e coletivamente, no segundo, a um sentido decadente da ação e da vida. Não se suponha, de um modo simplista, que estou fazendo o elogio da incultura. Seria um sacrilégio sob o teto da Instituição máxima da Cultura de nosso povo; mas também não cairia no pólo oposto. A verdade é que a supercultura nada tem que fazer em Política, e o Teatro é a manifestação artística com maior sentido político. Rogo que compreendam a intenção da tese como explicação da natureza do povo diante do Teatro e não no seu simples enunciado.
Já tratei dos obstáculos a vencer para que um candidato venha a ocupar um dos fauteils azuis. Isso, antes, porque, depois, há uma etapa difícil de transpor: a da indicação do nome de um acadêmico para recebê-lo. Por circunstâncias que não é preciso esclarecer perante meus 39 companheiros (e como é agradável essa amplitude de compreensão no seio da família acadêmica), já que há indicações que afloram ao espírito do candidato, alguns nomes se impondo, cada um com uma justificação especial. Teria sido Viriato Correia, se não tivesse levado o discurso para o túmulo, apenas deixando-me nos ouvidos os ecos das palavras que me transmitiu, pelo telefone. Teria de ser Raimundo Magalhães Júnior, pelos vínculos de amizade, longa e fraternal, e o conhecimento mais aprofundado de minha obra, por ele já criticada em mais de uma oportunidade, e pela convivência, com a obra e com o autor, seu companheiro na direção suprema da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Teria de ser Afrânio Coutinho, crítico da obra, que a mim mesmo revelou valores estéticos, artísticos e intencionais, e animador intransigente, revelando no seu teimoso pessimismo a força de sua vontade de me ver ao seu lado. Teria de ser Marques Rebelo, carioca como eu, e, como eu, compatriota da República de Vila Isabel, orientador do melhor caminho para atingir-se a porta desta Casa. Teria de ser Jorge Amado, o velho e fraternal amigo, o bom, o assustado com a perspectiva ansiosa de uma derrota, que o entristeceria tanto como a mim mesmo. Foi a solidariedade que mais me preocupou. Teria que ser Adonias Filho, o outro grapiúna, igual a Jorge na bondade atenta, na ansiedade da justiça no julgamento, no desejo de justificar a decisão da maioria de seus ilustres companheiros, procurando sempre restabelecer o meu equilíbrio emocional, excedendo-se em otimismo para contrabalançar o pessimismo de outros. Era, então, Adonias Filho o indicado, o que honraria minha recepção, com plena aprovação de todos, e com a autoridade de sua cultura e sua consagração de grande romancista. Será ele o que me dará as boas-vindas. Antes, já me deu as primícias da leitura de seu magnífico discurso, e para a sua fala desejo chamar a atenção da minha outra família, do Teatro. É uma esplêndida lição dos fenômenos do Teatro, na sua essência, na substância, nos objetivos insuperáveis por qualquer outra forma de expressão artística. Agradeço aos companheiros que tornaram tranquila a escolha, e, especialmente a Afrânio Coutinho, que consentiu em colaborar, aceitando a incumbência da imposição do colar.
Para terminar, devo agradecer o sufrágio de meu nome, para que me fosse possível falar da mais alta tribuna cultural de nosso País. Devo agradecer a todos os companheiros, porque, ao contrário do que se pensa lá fora, todos os acadêmicos são eleitos por unanimidade. E isso porque, queimados os votos, como é do rito, depois de apurados, todos se alegram com a entrada do Filho Pródigo, todos abrem os braços para receber o vencedor, seja qual for, porque, dali por diante, não é mais o candidato, é o novo membro da família, o que chegou antes do outro, e o outro poderá chegar depois. Então, senhor Presidente, gostaria de agradecer-vos, e a cada um de nossos companheiros, individualmente, dizendo a um por um, com a mesma humildade dos criadores da mais pura expressão de reconhecimento: “Deus lhe pague”, companheiro, Deus lhe pague.
16/10/1967