A mensagem de Medeiros de Albuquerque
Não são minhas, Sr. Viriato Correia, e nem vos são endereçadas, as primeiras palavras do discurso com que, investido do mais honroso dos mandatos, vos vou trazer a saudação da Academia.
São as palavras de um morto, e constituem a mais singular das mensagens ainda dirigidas a esta Casa.
Com efeito, Sr. Presidente, V. Ex.a sabe que Medeiros e Albuquerque sempre foi, nos pleitos acadêmicos, o mais veemente partidário da eleição do Sr. Viriato Correia. A Academia acabou de ouvir, entre assombrada e divertida, a história da carta em que ele se propunha a votar depois de morto. Escreveu Medeiros esse documento não muito tempo antes de morrer. Como para lhe dar maior cunho de autenticidade escreveu-o no papel timbrado de A Folha, órgão de que era diretor. A carta diz assim:
Exmo. Sr. Presidente da Academia Brasileira.
Comunicando a V. Ex.a e aos meus colegas a notícia da minha morte, peço-lhes licença para levantar uma questão: a do voto póstumo.
O Regimento Interno em nenhum dos seus artigos determina que os votos póstumos dos acadêmicos não poderão ser recebidos e apurados. Ora, não é lícito subentender nenhuma restrição de direitos: todo aquele que não está formalmente negado pode, portanto, ser exercido. É disso que me prevaleço, enviando desde já a V. Ex.a o voto para a eleição do meu sucessor.
Note V. Ex.a que meu direito é tanto mais líquido quanto a Academia não deve alegar a morte de qualquer dos seus membros para lhe retirar prerrogativas, se ela é a primeira (lá está a sua bandeira a proclamar) a garantir-lhes a imortalidade.
Poder-se-ia apenas levantar dúvidas sobre a questão do voto por carta, quando alguns dirão que me acho nesta cidade. Mas há nisso um engano, porque, como V. Ex.a sabe, quem morre vai ipso facto para a Cidade dos Mortos.
Assim, nada impede que V. Ex.a consulte, logo que receber esta carta, a Academia sobre a admissão futura dos meus votos. Se, entretanto, ela decidir arbitrariamente pela negativa, peço a V. Ex.a que, desde já, os abra, os leia em sessão e os inutilize.
Apresento a V. Ex.a os meus póstumos cumprimentos.
Desta maneira, sob a forma de uma ironia quase macabra, expressava Medeiros e Albuquerque um dos seus grandes desejos, qual o de ver na Academia o maior dos seus amigos literários. Quando ele morreu (contou-nos, agora mesmo, o Sr. Viriato Correia) esta carta foi entregue à presidência da Casa. Tratando-se de um fato inédito, e que só um declarado pendor para o humorismo poderia justificar, é explicável que a estranha missiva nunca tivesse chegado ao conhecimento da Academia. Aprouve-me lê-la, porém, na cópia que Medeiros entregou à própria família. Pareceu-me essa a maneira mais expressiva de associar, desde o começo, o nome daquele nosso glorioso colega à solenidade a que estamos assistindo.
Se ele estivesse ainda conosco, aqui o veríamos, decerto, nesta tribuna, interpretando os sentimentos da Academia na festa de hoje. É, portanto, natural que, pela saudade, o façamos vir à nossa companhia. Que a sua sombra nos seja benévola, a nós ambos, ao grande amigo dele, que ora transpõe estes umbrais, e a mim, que o procuro substituir, sem aquela graça leve, aquele sorriso de demônio amável, aquele saber a um tempo sólido, ornado e pitoresco, dons incomparáveis do seu espírito.
Esboço de uma biografia
No vosso formoso discurso, Sr. Viriato Correia, afirmastes que, ao vos eleger, a Academia tinha ido buscar um representante das camadas populares. E essa observação talvez traia um pouco de malícia para com a índole do nosso Instituto, índole que, pela própria definição da palavra Academia, não pode deixar de ser o seu tanto aristocrática. Mas o Brasil parece ter o segredo de tornar democráticas as organizações mais intrinsecamente aristocráticas. Nosso Império não foi mais do que uma república, dirigida por um mestre-escola bonacheirão. E a nossa Academia – como é democrática e republicana, e como se delicia em exibir essas salutares tendências! Para que a criaram os homens entusiastas da geração de 1890, senão para dar um justo testemunho de glória e admiração a um mestiço pobre e doente, em cujo cérebro havia fulgores de gênio? Qual foi um dos primeiros chamados para os quadros que a haviam de constituir, senão o negro, filho da quitandeira? É verdade que esse negro tinha sóis no espírito, falava, não raro, com uma voz igual à dos varões sagrados de Israel, e se deixava arrebatar em visões enormes, como Ezequiel ou como João em Patmos.
Esse propósito de pôr a glória acadêmica ao nível daqueles que, pela cor ou pela situação social, mais humildemente representam o povo brasileiro, parece-me o primeiro indício da longa vida que está reservada à nossa Instituição.
Viestes do povo, Sr. Viriato Correia, e timbrais em fixar os ambientes dessa origem, que tão nítidos transluzem em vossas páginas encantadoras.
Remontemos, por um momento, àquela suave manhã do dia 23 de janeiro de um ano do outro século, manhã em que, num lar paupérrimo, nasceu um menino que na igreja recebeu o nome de Manuel Viriato. Era esse menino filho do comerciante Manuel Viriato Correia Baima e de sua esposa, D. Raimunda Silva Baima, ambos brasileiros.
Pirapemas, a aldeia em que nascestes, ergue-se à margem do Itapicuru, a meio caminho de São Luís e de Caxias. Foi lá que também nasceu João Francisco Lisboa, cujo nome honra uma de nossas Cadeiras.
O povoado em que nasci – dizeis no mais comovido dos vossos livros – era um dos lugarejos mais pequenos, mais pobres e mais humildes do mundo... Uma ruazinha apenas, com umas vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização – a escola apenas. As ruas e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo solto: as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois...
Eis aí o quadro ingênuo em que vos iniciastes nas formas deste velho, melancólico universo.
Tínheis nove anos (e éreis o mais velho de quatro irmãos) quando o vosso pai morreu, deixando a família, a bem dizer, na miséria.
Vão passando os dias, e o pequeno órfão, conduzido para a capital do Maranhão, é matriculado no Colégio São Luís. Aí, sob a vigilância do cônego Osório, faz as primeiras letras. Passa, depois, para o Liceu do Maranhão, onde vai fazer o curso secundário. Já a esse tempo, vai lendo os seus autores fáceis e românticos – o seu Perez Escrich, o seu Alexandre Dumas, o seu Coelho Neto, dos líricos livros de estréia. Sonha os primeiros sonhos de amor... Tem as primeiras namoradas...
E os namoros o preocupam muito mais do que os livros. Com referência aos deveres de estudante, é ele esquecido e relapso. Que importa a sua vadiação, porém, se, mesmo sem estudar, a sua inteligência já desperta comentários, nos meios de São Luís? Que importa o seu evidente desamor aos livros, se ele é dotado de uma vibrante fibra de orador e vive a fazer discursos eloqüentes? Que importa o seu desdém pelo conselho dos mestres, se, inspirado pelas namoradas de treze anos, ele tem a faculdade poética, e sabe traduzir, em quadras e sonetos madrigalescos, os suspiros do seu ardente coração?
Sim, meu caro confrade, os primeiros aspectos literários que revestiu a vossa personalidade, naquele momento de adolescência, foram exatamente esses dois, de que hoje vos afirmais inteiramente destituído: o de orador e o de poeta.
Mas aproximava-se o início do século, e, com ele, chegava o momento em que havíeis de partir para o Recife, a fim de vos matriculardes no curso de Direito. E eis que, certa manhã, o velho Manuel Correia, vosso avô e homem discretíssimo, vos chamou a sua presença. As palavras que vos dirigiu foram muito meditadas.
– Meu neto, você vai partir para Pernambuco, vai estudar o seu Direito. E sua mãe, que é tão pobre, só lhe pode mandar cinqüenta mil réis por mês. Agora, escute: eu estou disposto a lhe fixar, pelo meu lado, uma outra quantia: dar-lhe-ei cem mil réis mensais.
Ainda não tínheis tido tempo de beijá-lo, de clamar que aquele era o melhor avô do mundo, quando o velho retomou a palavra:
– Para isso, porém, estabeleço uma condição inflexível.
– Qual é?
– É que nunca, mas nunca, você há de fazer versos. Vá estudar. Se tiver grande necessidade de escrever, escreva prosa. Versos, nunca. Se os fizer, eu lhe cortarei a mesada. Estamos entendidos?
Que poderia responder o pobre poeta de quinze anos? Meteu a musa no saco, e aceitou o pacto platoniano do absoluto silêncio poético.
Ao aceitardes esse pacto, a vossa sinceridade não foi total, meu caro confrade, pois, embora lhes atribuindo a autoria aos personagens que enchem os vossos contos, tendes deixado semeados de belos versos os livros que publicais.
Eis, portanto, que, aos dezesseis anos, estais no Recife, para dar começo ao curso jurídico. Vossa primeira impressão, ao defrontardes a cidade, foi de assombro. Vínheis de São Luís, dos portos modestos do Maranhão, do Ceará, do Rio Grande do Norte e da Paraíba. E o Recife, com os seus navios, os seus armazéns ao lado do cais de desembarque, produziu-vos impressão impagável. Passastes a viver sob o encanto da velha cidade do Capibaribe, ainda não nova-iorquizada como está hoje.
O Recife dos começos deste século, com o seu recolhido ar colonial, como era cheio de suavidade e de poesia!
No lugar do desembarque, na velha Lingüeta, eram os casarões, pintados a vermelho, a azul, a roxo. Ao lado, eram as grandes gameleiras sombrias, sob as quais descansavam da dormência causticante da soalheira, vagos trabalhadores, que esperavam um serviço eventual. De vez em quando, era o bondezinho que chegava, puxado pelos seus dois burros; ou então, era uma vitória do Agra, que se aproximava para algum desembarque, saltando, como um cabrito, sobre as pedras agudas do calçamento agressivo.
Na cidade, eram as pontes, era o rio moroso e tranqüilo... Eram, dedicados aos santos, os antigos arcos, onde a piedade dos habitantes se prosternava para a prece... Eram os quiosques, povoados de moscas... Eram os mocambos, povoados de miséria... Eram os solenes bairros das moradias familiares; e o acolhimento das mangueiras tutelares da Casa Forte e do Arraial; e a doçura sussurrante dos coqueirais de Boa Viagem e da Piedade; e a poesia mansa de Olinda; e a delícia dos banhos matinais, no Beberibe de águas transparentes; e o recolhimento do Poço da Panela, onde àquele tempo o nosso querido Olegário Mariano já andava sentindo as suas primeiras ternas cismas de patinho torto...
Sim: eram esses velhos aspectos que se apresentavam aos vossos olhos, quando fostes morar no Recife, para fazer o curso de Direito. Nada disso, ou quase nada, existe hoje. A antiga Lingüeta desapareceu... Desapareceram os arcos, que se erguiam sob a invocação dos santos... Os trenzinhos sujos de Caxangá, de Dois Irmãos e do Arraial já não existem... Transformaram-se as pontes, tendo ido abaixo uma delas, havendo surgido outras... O Capibaribe patriarcal, em cujas margens tanta vez fostes sonhar, já não é o mesmo rio que amastes, pois o de hoje contempla os vossos cabelos brancos e aquele sorria, enternecido, à vossa adolescência...
Tudo se esfumou, tudo se dissolveu, na região definitiva das coisas mortas.
Vedes assim bem claro, Sr. Viriato Correia, que não é preciso termos vivido tanto quanto o Barão de Ramiz Galvão, para sentirmos a impressão de permanecer num mundo que já não é o nosso. Somadas as nossas duas idades, a vossa e a minha, dariam pouco mais do que a idade que ao morrer tinha aquele nosso nobre companheiro. E, entretanto, cada um de nós dois já tem o espírito povoado das imagens de um mundo irremediavelmente desaparecido...
Foi no Recife, que, certa tarde, o vosso correspondente, o velho livreiro Ramiro, vos deu três livros a ler. Eram Naná, de Zola, O Mulato, de Aluísio Azevedo, e O Missionário, de Inglês de Sousa. Regressando à República, abristes Naná – e logo o feitiço do mestre naturalista se apossou de vossa imaginação. A leitura desses três romances valeu aos vossos olhos como a derrubada das muralhas de uma cidadela cheia de prodígios. Daí a dias, manifestava-se o primeiro efeito que o contágio naturalista havia operado em vosso espírito: publicáveis o conto “Mariquinhas da outra banda”.
E o novo influxo como que vos deu energias dobradas para o trabalho intelectual.
Nesse mesmo ano de 1900, indo passar as férias em São Luís, fundastes, com outros prosadores e poetas adolescentes, aquela espantosa coisa, que entre as coisas tomou o nome de Oficina dos Novos. Somavam, talvez, umas duas dúzias de rapazes, os novos que formavam esse inquieto cenáculo. Tantos deles passaram, sem deixar vestígio na precária memória nossa! Alguns, porém, conquistaram renome. Clodomir Cardoso, o panegirista de Rui Barbosa, e Domingos Barbosa, o crítico dos irmãos Azevedos, ali foi que se revelaram. A Oficina dos Novos tinha alguns grandes animadores: Barbosa de Godois e José Barreto, que em A Pacotilha acolhiam e estimulavam os talentos que surgiam; Antônio Lobo e Fran Paxeco, que os recebiam na Revista do Norte. É a esse tempo que propriamente iniciais a vida de jornalista, ao criardes, em A Pacotilha, a secção intitulada “Monoculando”. Já então manejáveis as armas da ironia, do bom-humor e da troça. Muito figurão de prestígio na política maranhense terá guardado por longo tempo a lembrança das setas que lhe desferira a mão temível dessa criança heracliana.
Uns trechos no Recife, outros em São Luís, fostes fazendo os contos que haviam de constituir o volume dos Minaretes. Quando, ali por 1903, viestes para o Rio, a fim de vos matriculardes na Faculdade de Direito, e terminar o curso iniciado na capital de Pernambuco, trazíeis pronto esse livro, de estréia.
Ao sairdes de São Luís, Fran Paxeco vos dera uma carta para Frota Pessoa, que àquele tempo exercia a atividade da crítica literária, socorrendo-se de uma cultura fúlgida e de uma desempenada coragem de atitudes. Frota Pessoa vos apresentou ao meio intelectual carioca. Foi ele quem vos deu ocasião de fazer a mais gloriosa das vossas amizades literárias: a de Medeiros e Albuquerque.
Certo, Medeiros já vos conhecia desde o aparecimento dos Minaretes. Arguto no julgar, capaz de penetrar os mistérios das coisas intelectuais, o nosso querido confrade pudera sentir todo o encanto de vossas jovens narrativas. Saudando esse livro de estréia, ele dissera que vinha por aí um escritor. E explicava que esse verbo vir se prendia ao fato de ser o autor do livro ainda uma criança...
Oh! A emoção de saudade com que evocais o lar de Medeiros e Albuquerque! Aquele tempo, o escritor residia na Rua Haddock Lobo, esquina de Sampaio Ferraz. Era uma vasta casa, povoada de livros e de objetos caprichosos, pois aquele espírito incomparavelmente cheio de curiosidade tinha a paixão das coisas novas.
Aos domingos, íeis para a Rua Haddock Lobo, e ali, na mesa da família, existia um lugar permanente para o hóspede querido.
Essa fase de estreito convívio com o autor das Canções da Decadência ficou impressa em vosso espírito com o maravilhoso esplendor de uma idade de ouro. E bem que nos dizeis, em vosso discurso, que fostes criança no Maranhão, rapaz no Recife e que vos fizestes homem em casa de Medeiros e Albuquerque.
Generosamente entusiasta para com os talentos nascentes, o vosso mestre e amigo muito vos ajudou, na difícil ascensão jornalística no Rio de Janeiro. A ele devestes a primeira sensação da glória no grande meio: a publicação de trabalhos literários na Gazeta de Notícias.
Era aquela uma das mais brilhantes fases da Gazeta. Repercutiam, ainda, lá dentro, os ecos das vozes ilustres de um Eça de Queirós, de um Machado de Assis, de um Olavo Bilac. Uma bulhenta, esplêndida mocidade, dentro da qual se destacava um Paulo Barreto, um Oscar Lopes, um Tomaz Lopes, um Figueiredo Pimentel, um Joaquim Viana, um Gil, enchia a sala da redação de ditos de espírito e gargalhadas irreverentes.
Foi ali que publicastes o primeiro conto escrito no Rio – “Cara a cara”. Era um assunto bem brasileiro, perfumado de aromas silvestres, saturado do acre sabor das gameleiras e dos mandacarus. E foi, no meio dos vossos conhecidos, um deslumbramento. Semanas depois, publicáveis na mesma folha o conto “O sapo no céu”, e, passados dias, tínheis a alegria de vê-lo transcrito nas colunas de La Nación, de Buenos Aires. Era a glória irrefutável!
Esses dois contos foram seguidos de vários outros, e o êxito que todos alcançavam ia reafirmando o vosso prestígio, na Gazeta.
Foi assim que, depois de um breve espaço de tempo, em que estivestes feito redator de A União, jornal católico, que tinha como diretor Felício dos Santos e como secretário Oliveira e Silva, fostes chamado para um cargo efetivo na Gazeta de Notícias. Agora, sim: éreis redator e tínheis a responsabilidade de uma das secções da folha: o “Fafazinho”. Destinava-se às crianças aquela coluna, e foi ali, decerto, que amadureceu essa feição de vosso talento, que tão formosos livros havia de dar ao nosso País.
Pouco depois, Medeiros e Albuquerque regressava de uma viagem que fizera à Europa, e, como sempre, trazia uma idéia nova e interessante. Desta vez, era a criação das conferências semanais. Os conferencistas chamavam-se Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Coelho Neto, Alcindo Guanabara, João do Rio, Alberto de Oliveira, Viriato Correia.
Coube-vos, primeiramente, fazer um estudo sobre “Os poetas do Sertão”, assunto que é tão de vossa preferência. Posteriormente fizestes outra palestra, com o título de “Casar é bom”. Sempre amigo do paradoxo, Medeiros e Albuquerque, na semana seguinte, foi à tribuna, para fazer uma palestra em resposta à vossa: “Mas não casar é melhor...”
Os dois anos de 1906 e 1907 foram de instabilidade e aventura em vossa vida. Ora redator do Correio da Manhã, ou da Folha do Dia, no Rio; ora, em Santos, colaborador de A Tribuna.
Foi em 1909 que começastes a publicar as “Cartas de Tibúrcio da Anunciação”, na Careta.
Nesse mesmo ano, incluído numa chapa governista, amanhecestes, certo dia, feito deputado estadual no vosso Estado. Para lá seguistes; mas, em vez de ficar na capital, como faziam os vossos colegas de representação popular, partistes para o sertão, indo visitar a família, de quem andáveis saudoso. Foi também nessa ocasião que pelo casamento vos unistes à admirável criatura, que tem sido o encanto dos vossos dias, a infalível conselheira das vossas horas difíceis.
Iam as coisas caminhando bem, quando brigastes com Luís Domingues, vosso governador. Tivestes, então, que deixar São Luís. A Amazônia, no pleno fastígio da borracha, vos atraía. Partistes para lá. Acolhido pelo Sr. Jorge Morais, que ao tempo era superintendente de Manaus, tivestes um lugar de destaque na municipalidade que ele dirigia.
Mas não é impunemente que um rapaz de tendências literárias, sedento de fama e glória, respira o ar das grandes cidades. A saudade do Rio ficara indelével em vosso espírito. E eis que pouco depois abandonastes o emprego, a expectativa talvez de excelentes promoções – e vos lançastes, de novo sem vintém, à conquista definitiva do renome.
Foi nessa época que se deu o dissídio de Irineu Marinho, proprietário de A Noite, com um grupo de redatores e repórteres que ali trabalhavam. Tendo rompido com o chefe, os dissidentes foram fundar A Rua. A eles vos associastes.
De 1921 a 1924 fostes, com Oduvaldo Viana, diretor da Companhia Brasileira de Comédia, que atuou no Trianon e viajou pelo Brasil. Foi aquela uma época excepcional para o nosso teatro. Durante três anos, tivemos no Rio um palco que só levou peças nacionais. Um dos trabalhos que então realizastes, e que não é demais fique aqui registrado, prende-se a O Demônio Familiar, de José de Alencar. De acordo com Mário de Alencar, tomastes a tarefa de modificar aquela peça que, pela exaustiva extensão dos diálogos e pelo artifício das situações, está muito envelhecida. Modernizado, O Demônio Familiar foi levado com êxito.
Referirei, porém, como sendo o mais assinalado dos serviços que então prestastes ao teatro brasileiro, a revelação que nos destes da sensibilidade delicada e profunda, da graciosidade, do encanto, que formam a personalidade de Dulcina. Fostes, um dia, arrancar aos livros do colégio, para entregar-lhe pequenos papéis, uma obscura menina; ela, porém, havia de crescer, transformando-se, pelo milagre do talento, até se tornar, em A Marquesa de Santos, a mais alta das intérpretes que ainda tivestes para qualquer dos vossos trabalhos.
Em 1927, numa chapa em que também figurava o nome de Humberto de Campos, vos vistes, outra vez, metido na política. Improvisaram-vos deputado federal.
Não direi que tenha sido eficaz, nem repetida, a vossa atividade na tribuna parlamentar. Um discurso sobre Deodoro da Fonseca, outro sobre a Aliança Liberal, creio que constituíram toda a vossa situação na Câmara.
Durante o ano de 1930, inteiramente entregue à política partidária, como estáveis, combatestes a revolução que marchava do Rio Grande do Sul. Fizestes, então, espontaneamente, uma vivaz campanha pelo rádio.
O resultado foi que, em outubro, quando a revolução triunfou, o vosso nome era um dos mais visados pelos inimigos da situação deposta. A 24 de novembro, fostes preso na Cruz Vermelha, por uma multidão que o mínimo que pedia era o vosso sangue. Uma ambulância providencial vos levou para a Casa de Correção. Estáveis na completa desgraça; não tínheis um níquel em casa, e, entretanto, no Rio e no Maranhão, três pessoas, entre as quais se contava uma pobre velhinha, que amáveis enternecidamente, dependiam de vossos auxílios...
Foi então que um amigo fiel (e eu peço licença para declinar-lhe o nome, tanto essa bela ação o eleva e honra), o Sr. Hugo Napoleão, vos tirou da cadeia, e vos levou para a sua residência. Escondido num sótão, ficastes ali, sob reserva absoluta. Nem mesmo os criados da casa sabiam que naquele sótão estava morando alguém. As próprias pessoas da família se encarregavam de vos levar o alimento diário, tendo antes a preocupação de desviar a atenção dos empregados.
Saístes desse período bem capacitado de que as grandezas políticas são por excelência grandezas precárias. E desde então a vossa atividade tem sido puramente intelectual: a do professor, a do homem que escreve livros, a do homem que produz peças para teatro. Com espanto verificamos que nesses oito anos, transcorridos desde que perdestes o mandato, já publicastes dezenove livros.
Vinte e nove de outubro... Aí estais, hoje, no vosso fardão luzido, recebendo os aplausos da Academia e do Brasil inteiro... Pensar que, há oito anos, nesta mesma noite, sofríeis, sozinho, esquecido de todos, sem o consolo de um sorriso amigo, na encruzilhada mais áspera e mais sem horizonte de vossa vida...
Contudo... com que bom humor, com que paciência aceitáveis essas contrariedades, resultado de uma temerária aventura nas regiões do prestígio político!
Os que vos viram, naqueles momentos atormentados, sabem que foi com a alma de um estóico que recebestes as provações mais difíceis.
Como poderei louvar essa virtude de resignação que tendes, esse bom humor, quase estou a dizer essa alegria, com que sabeis encarar as coisas que aos outros homens levariam contrariedades e irritações? Como poderei louvar esses raros dons, que formam o substrato do vosso caráter?
Agora mesmo, na oração que acabais de ler, sorristes, com humorismo, do uniforme solene em que, segundo dizeis, a vossa pessoa fica tão mal.
Um dos assuntos preferidos das pilhérias que fazeis convosco é a vossa pequena estatura. Não irei procurar consolar-vos dessa infelicidade, com a evocação dos homens ilustres que, embora tendo sido insignificantes pelo corpo, chegaram, pela alma ou pelo coração, a dominar o mundo. Nem mesmo precisarei lembrar o caso de Rui Barbosa, um dos deuses lares desta Casa, que, como bem sabeis, era talvez ainda menor do que vós.
Convosco as coisas que têm acontecido por causa da vossa pequena altura são muito engraçadas. Quando vos aprontáveis para a pomposa festa de hoje, ocorreu um fato pitoresco: antes de vos entregar esse orgulhoso espadim, que daqui estou a ver brilhar marcialmente, o alfaiate teve que lhe amputar cerca de três palmos. Também no Recife, quando éreis estudante, tivestes, um dia, uma surpresa divertida: vossos colegas haviam arrancado do prego o cabide em que penduráveis as roupas e o tinham removido para uma altura de dois palmos acima do assoalho.
Muitos sofreriam, talvez, acreditando-se humilhados com brincadeiras desse gênero. Vós vos divertis com elas, dando, assim, eloqüente prova de que sabeis juntar a um pequeno corpo um grande espírito.
Livros de contos
Vossa primeira afirmação literária, Sr. Viriato Correia, foi como autor de contos.
Trazeis uma província no coração, e é dos ambientes, dos personagens, dos sofrimentos e das alegrias dessa província que nos falais em tantas novelas. Contos do Sertão intitulastes o volume que vos deu a consideração entre os letrados e a popularidade entre as turbas. Esse título quase poderia estender-se a toda a vossa obra de contista. Sois, efetivamente, o pintor enternecido, e tantas vezes amargurado, do interior áspero e triste do Maranhão.
O sertão é um manancial inesgotável, de assuntos e discursos, no Brasil. Os sociólogos o estudam, os romancistas o descrevem. Mas o pobrezinho lá está, seco, esturricado, doloroso, sem saúde, sem instrução e sem justiça, a oferecer largos painéis para os dramas mais típicos do nosso bruxulear de civilização, dramas que ontem rematavam no epílogo épico de Canudos e hoje dão o ominoso episódio do degolamento de Lampião e Maria Bonita. Ainda bem que nos contentamos com pouca coisa, e aceitamos, como solução cabal dos nossos problemas sociais, as sonoras fórmulas dos oradores e dos beletristas!
Vosso sertão não será o dos sociólogos, unicamente preocupados com a exposição dos óbices que entravam a marcha do progresso, naquela parte do Brasil. Vosso sertão é o sertão canoro dos cantadores líricos, das morenas amorosas, das cidadezinhas festeiras. É, sem dúvida, um sertão muito agradável. E, diante dos vossos quadros, muita vez paramos, como Lemaître diante das descrições regionais de André Theuriet, para murmurar: “Que pena que eu não estivesse lá, quando isso aconteceu!” Vosso sertão é uma terra ao mesmo tempo agreste e sedutora, hostil e triste, esplêndida e poética. Creio que essa espécie de paraíso melancólico está situada exatamente entre o sertão de Coelho Neto, tão cheio de solitários desesperos, e o sertão de Afonso Arinos, tão cheio do ácido perfume dos frutos silvestres.
Quanta coisa pintais nos vossos quadros brasileiros! São, aqui, as mulheres – as mulatinhas, as caboclas, as encantadoras moçoilas rústicas. É, por exemplo, Jovita, a linda tabaroa. Ela chega à casa festiva do Antônio Pinto, e logo é um maravilhamento. E quando começa a dançar põe feitiços demoníacos na alma dos homens...
A Jovita bamboleava os contornos túmidos em tremeliques cadenciados, resvalando pelo solo em espirais macias. Agora corria de banda, serena, mansa, vaporosa, num meio passo, num meio vôo, como se escorregasse levemente, numa esteira de penas, e veludos. Era um deslizar suavíssimo de cisne à flor d’água, e girava tão doce que não se ouvia, nem de leve, o vago rumor dos pés pequenos, frolando na areia...
É, depois, a Chica, a pobre apaixonada do Manduca cantador: “Quando a Chica se fez moça, era a rapariga mais bonita daquele pedaço de terra sertaneja. Morena, vistosa, com um quê de faceirice, doida pelos bailes e doida por tudo o que era alegria, toda a gente viu que, em pouco, ela estaria perdida...” Eis aí a maldição da beleza, o castigo de Helena, que o Sr. Afrânio Peixoto tão finamente fixou, também, no mais comovedor dos seus romances.
E assim são tantas e tantas outras sertanejas dos vossos contos, a Gigi, a Binoca (“assimzinha, deste tamanho – uma miséria de gente, como se fosse feita para um brinquedo...”); e mais a Janoca e a Rufina, a Mariquinhas e a Chiquita, e toda uma multidão delas...
Essas flores do sertão são todas sedutoras. Mas o que elas são, sobretudo, é cheirosas. Porque esse traço – o do perfume – é aquele que sentis antes de qualquer outro, quando tomais da pena para realizar uma descrição de mulher.
Eu limitaria muito o vosso ambiente, se deixasse a vossa obra de contista irmão de Maupassant adstrita apenas ao sertão. Ao contrário, tendes farto número de narrativas que se desenrolam nas cidades grandes, e alguns dos contos desses ambientes civilizados constituem páginas que se enumeram entre as melhores que ainda produzistes. Está nesse grupo o conto de Dona Alice, história pungente, que já vos deu substância para uma peça guinholesca de teatro. Está nesse grupo o conto de Dona Carmen, aquela singular mulher que traía o marido sadio e passou a ser-lhe fiel quando ele adoeceu. E de meios cultos – sejam cariocas, paulistas, ou de qualquer outra das principais cidades brasileiras – são ainda muitas outras de vossas narrativas.
O que em vossos livros predomina, porém, formando o traço peculiar do vosso feitio de escritor, é mesmo o sertão. É a paisagem, indizivelmente agreste, que desvendais na Terra Maldita ou na Besta. É a gente triste e poética, cheia de abusões e de canções, dos interiores maranhenses, que tão bem conheceis.
Essa gente toda, os meios em que ela se move, os bichos que ao lado dela vegetam, tudo isso é, em vosso subconsciente, governado por inflexíveis leis misteriosas. Talvez os psicólogos pudessem explicar esse fato invocando velhas e contraditórias heranças étnicas – mas a verdade é que subsiste em vosso espírito, Sr. Viriato Correia, uma religiosidade dramática, e singularmente supersticiosa. Já não aludirei às vossas convicções espíritas, que vos levaram a escrever uma conferência de raro valor documentário. Quero aludir, tão-somente, a um dos contos em que essa vaga e como que espavorida religiosidade do vosso espírito transparece nitidamente. É a narrativa intitulada “A ficha n.o 2.033”. Ali achamos a história de um rapaz que foi, por acaso, ao consultório de Madame de Thèbes, em Paris. A ocultista disse-lhe que um dia ele havia de ser assassino. Sendo a mais doce e pacífica das criaturas humanas, o rapaz não deu crédito à sinistra palavra que lhe desvendava o futuro. Regressou ao Brasil, e foi residir em Belém. Tempos depois, um pai ciumento, tendo-o confundido com o sedutor da filha, mandou ignominiosamente esbordoá-lo. Impunha-se-lhe tomar um desforço. E, certa tarde, munido de um revólver, foi ele esperar na rua o mandante da agressão. Matou-o. Só depois se lembrou do aviso de Madame de Thèbes.
Eis aí como estamos face a face com o Destino. Mas com o Destino em toda a intensidade da concepção esquiliana – força sagrada, que move as almas, os seres e os universos, e diante da qual não há reflexão, prudência ou propósito humano que prevaleça.
A idéia, talvez inconsciente, desse Poder está em todos os vossos contos. É ele que, soberano, desdenhoso e inevitável, preside a todas as ações da vida e dos romances. É ele quem impele o Guaribão a sangrar, diante dos olhos de Maria, o intruso Domingos, que vinha seduzir o coração inquieto da mulher. É ele quem conduz Diniz de Pádua a destruir, sistematicamente, a existência dos filhos de D. Angélica. É ele quem arrasta o Dr. Nazaré a assassinar, em circunstâncias tão enigmáticas, o pobre Silva Gentil. É ele quem move o Coronel Bezerra e o filho a se entrematarem, na rede, numa luta noturna, pelo corpo desejado da Binoca. É ele quem faz a infeliz D. Camila matar o amante, impondo-lhe, como lhe impôs, o insofismável dever de matar.
Esse Poder sacrossanto transparece em muitas outras situações que imaginais – e reveste, às vezes, uma forma de vingança ou de castigo transcendente. Que página de escritor lograria dar-nos tão completa idéia desse formidável Poder quanto o faz a novela de Sinhá Dona, composta ainda no tempo de vossas estréias em Pernambuco – a história da torva proprietária de terras e escravos, que, depois de ter vivido martirizando os negros, acabou caduca, perdida no meio dos matos, morrendo sozinha numa podridão obscena, aos olhos dos próprios cativos que durante tantos anos havia conservado no tronco e sob o relho?
E que outra página lograria mais reafirmar esse Poder, do que aquela descrição épica do João Quilombo, o negro revoltado, que sofreu a injúria, a dor, toda a crueldade dos castigos mais injustos, e se vingou incendiando, num esplendor teatral de apoteose, tudo o que pertencia aos brancos detestados?
Essas duas páginas a que acabo de referir-me se destacam entre quantas tendes produzido. E terão que ser incluídas nas antologias sobre a escravidão, que de ora por diante forem organizadas em nosso País.
Pintor da sociedade sertaneja, fixador das figuras sertanejas, não vos seria possível esquecer os sofrimentos do sertão. Algumas de vossas narrativas fixam os dramas profundos das enfermidades que ali proliferam. Ao par das secas e das inundações, os sertões brasileiros vivem dizimados pelas doenças, de que ainda não tivemos tempo de tratar. Essas enfermidades transparecem em muitos dos vossos contos. Em certos quadros, é a devastação que a hidrofobia opera nos cães, nos homens, nos bois. Em outros quadros, é o horror da morféia: é o Venâncio, tão desgraçado em seu amor que só inspira desprezo; é a Sinhazinha Lelé, tão boa, tão linda e tão infeliz, que apanhou o mal só porque teve a caridade de enterrar um leproso, que perto da casa dela apodrecia insepulto. Em outros quadros, enfim, são as alucinações provocadas pelo impaludismo.
E simultaneamente com esses sofrimentos, aquela pobre gente é perseguida, também, pelos males resultantes de nossas imperfeições sociais. É, em certo momento, o erro da justiça, que leva Pedro a passar vinte anos nas grades de uma cadeia, responsável pela morte de um turco... que não morreu. É depois o preconceito da honra familiar, que impele o Zé Boi a ir esperar, numa tocaia, no cano de uma carabina, o homem que roubara a flor virginal da sua filha.
Males sobre males, sofrimentos sobre sofrimentos, enfermidades sobre enfermidades – eis, Sr. Viriato Correia, em vossa concepção, que talvez não seja errônea, o que é o sertão do Brasil, o que é, ali, a misérrima vida dos homens.
Mas esse mundo, cheio de dor e desengano, é, por outro lado, um mundo cheio de poesia. Ah! meu caro confrade, as noites que nos descreveis, em vossas narrativas do sertão, cheiram como se fossem preparadas para belos romances de amor. Tudo, nelas, é música, é lirismo, é indizível doçura.
E as mulheres sedutoras que nos mostrais? Não é para esse encantamento que vivem? Não é pelo deslumbrado amor dos seus poetas que elas palpitam? Vejo a Morena, das Novelas Doidas, abandonando o bem-estar e a fortuna do Chico Baiano, para ficar com o Galdino, pobre cantador lírico, que não podia enfeitar de jóias o colo da bem-amada, e que nele podia apenas prender formosas trovas de amor... Vejo a Chica Berredo, amando como se fosse um deus o vagabundo Manduca, só porque ele possuía uma viola inspirada e ardente... Vejo a Vanju, tão dominada pelos encantos do Pajussara, o cantador que ao entrar nos salões festivos a primeira pergunta que fazia era esta: “Quem tem aí uma viola para eu cantar saudades das minhas caboclas?”
Sim, meu brilhante confrade: muitos dos vossos personagens vivem dentro da poesia, e vivem para a poesia. É no coração e nos lábios deles que ides pondo as canções e as quadras que a intimação do velho Manuel Correia vos tem impedido de publicar com o vosso próprio nome. Não fosse aquele rígido pacto, outrora feito, e creio que teríamos em vós um poeta de feitio popular, uma doce musa cancioneira, capaz de fulgir ao lado da musa de Adelmar Tavares. Escutemos, para comprovar o que digo, certo diálogo em quadras, que encontro em uma das Novelas Doidas. Vão dois cantadores discutindo, para ver qual deles fará melhor louvação, e dizem coisas assim:
– Os teus oios são de fogo,
Queimam mais do que tição.
Parece um velho roçado
O meu pobre coração.
– O meu pobre coração
É todo ramo e fulo,
Tudo rebenta cheirando
Onde Janoca passou.
– Quando a Janoca passou
No gapó do igarapé,
Até nas foia ficou
O seu cheiro de muié.
– O seu cheiro de muié
Ninguém pode descrevê:
Entra no peito da gente,
Entra sem a gente vê.
– Entra sem a gente vê,
Lá de dentro não sai mais.
Por mais veio que se fique
Inda esse cheiro se traz.
– Uma vez em seu terreiro,
Pondo a camisa a secar,
Sucedeu um caso virge,
Um caso de admirar.
– De dez léguas em redor
Veiu gente de besteira
Correndo em riba do cheiro.
Da camisa da roceira...
Com o mesmo tom de lirismo campezino, encontro, nos Contos do Sertão, outra série de trovas, alguma das quais já estará incorporada ao nosso folclore. São, ainda, dois cantadores que discutem. Escutai o que dizem:
– Eu se tivesse dinheiro,
Muito dinheiro de prata,
Eu fabricava um espelho
Dos olhos dessa mulata.
– Ó cabra, não sejas besta,
Nem sabes apreciar:
Espelho queria eu ser
Para ela se mirar.
– Você disse que eu sou besta,
Que eu não sei apreciar.
Mas eu q’ria ser areia,
Para a mulata pisar.
Essa doce musa trovadoresca, que possuis, achamo-la em muitos de vossos trabalhos. Certas peças de vosso teatro, como a Juriti ou a Maria, estão semeadas de trovas. E há muitos álbuns que também as encerram...
Andei, talvez um pouco indiscretamente, vendo alguns desses álbuns, e pude encontrar belas demonstrações de vossas tendências poéticas.
Se teu nome pronuncio,
Sinto no meu coração
Toda a frescura de um rio,
Todo o calor de um vulcão –
dizeis, em uma dessas coleções de autógrafos.
A minha alma (pobre louca!)
Inflamada de desejos,
Quer queimar a tua boca
Com labaredas de beijos –
dizeis em outra.
Posso citar, ainda, três quadradas, que encontrei em outros álbuns.
Eu vivo a todo momento
Só de ti a me lembrar:
Tu vens ao meu pensamento
Como os rios vão ao mar...
Tudo o que é teu me fascina:
Teu sorriso, teu langor,
Tua graça de menina,
Tua epiderme de flor...
Tens ternura, tens veneno,
És serpente, flama e vaga,
Oh! doce licor moreno,
Que me entontece e me afaga...
Aí estão, Sr. Viriato Correia, provas bem eloqüentes de que sois, de fato, um poeta. Vossa bela prosa, vazada em tão elegante simplicidade, e às vezes cheia de sugestivas imagens, é, não raro, poesia pura. E poesia são, também, essas formosas trovas, que acabo de citar.
Se tivésseis tomado parte naquele famoso desafio do dia da Conceição, na casa do Mané Sacrista, estou que nem o Chico Baiano nem o Galdino levariam a Morena. Outro cantador, mais ágil e mais amoroso, teria arrancado o troféu entre todos disputado: o suave sorriso, o coração da bela rapariga.
Não devo esquecer aqui, meu ilustre companheiro, a vossa obra de contos infantis. É essa, hoje, uma das atividades primordiais do vosso espírito, sendo que andam por uma dezena os livros que tendes escrito, dedicando-os aos pequeninos. Lendas de folclore ou historietas poéticas, como, por exemplo, as que publicastes em Era uma Vez..., livro feito em colaboração com João do Rio; narrativas em que entram bichos cheios de entendimento e subtileza, como as que contastes em A Macacada, em Os Meus Bichinhos, em Arca de Noé, em O País da Bicharada; quadros comovidos, encerrando fatos e figuras do nosso passado, como aqueles que desenhastes na História do Brasil para Crianças e em Meu Torrão.
Tudo isso veio a ter a sua definitiva expressão em Cazuza, a mais humana e comovida, por certo, de quantas obras ainda publicastes, obra que é uma suave autobiografia, encerrando a pureza, a poesia idílica da vossa primeira infância, e nos apresentando as figuras tutelares que formam, desde aquele tempo, a vossa mitologia íntima: vossa mãe, tão meiga e tão resignada no sacrifício; vosso pai, que em vossa vida não foi mais do que um rápido clarão de ternura; vossos avós, vossos amigos, vossos colegas dos primeiros paradisíacos dias.
O nosso grande João Ribeiro, que muito amou o Coração de Edmundo de Amicis, e que tão belamente o traduziu para o português, disse, certa vez, que aquele livro tinha sido “escrito com o vime de um berço”.
Não sei com que instrumento tereis escrito esse encantador Cazuza; mas sei que ninguém, que tenha coração de homem, poderá lê-lo, deixando de sentir nos olhos o calor das lágrimas da emoção e da ternura.
Estudos de História
Um dos vossos livros assinala bem a marcha do autor de obras de ficção para o autor de obras de História. Refiro-me à Balaiada, único romance histórico que até hoje publicastes. Encerra-se ali a crônica de um torvo movimento de banditismo, que subverteu o ambiente maranhense, na época da Regência.
Esse romance poderia valer como uma tentativa de explicação da gênese do cangaço no interior do Brasil.
São sinistros, são de toda a forma abomináveis, os assassinos e os ladrões que evocais, esses Coques, esses Milones, esses Mulunguetas. Mas sois vós mesmo quem no-los mostrais, muita vez, famintos e sedentos de justiça, sem que uma proteção providencial surja, para dar-lhes as reparações que eles inutilmente pleiteiam.
Há, decerto, muita torpeza na alma desses celerados. Contudo, só possuindo uma forma qualquer de heroísmo – mesmo que fosse uma forma negativa ou espúria – poderiam inspirar-vos o tema de um romance.
Porque dois são os elementos que exigis nos fatos históricos. O primeiro é o heroísmo; o segundo é o pitoresco.
Vosso conceito da História é um conceito carlyliano.
A História Universal – dizia o autor de Os Heróis –, a história do que o homem tem realizado no mundo, é, no fundo, apenas a história dos grandes homens que têm trabalhado na terra. Eles foram os condutores dos povos, esses grandes homens: os formadores, os modelos, e, num sentido amplo, os criadores de tudo o que a massa dos homens, tomada em conjunto, conseguiu realizar ou chegou a alcançar. Todas as coisas que nós vemos de pé no mundo são propriamente o resultado material exterior, a realização prática e a encarnação dos pensamentos que residiram nos grandes homens enviados ao mundo. A alma da história inteira do mundo seria a história deles.
A esse elemento do heroísmo, a História, tal como a concebeis, deve juntar o elemento da anedota.
Vossa história é, assim, um tecido de narrativas heróicas e narrativas cômicas, ou, pelo menos, graciosas.
E ainda bem que assim é! Nada pode revelar melhor um temperamento do que uma anedota. Um Suetônio vive, ainda hoje, vive muito mais do que um Tito Lívio ou um Tácito, porque foi na indiscreta revelação das coisas miúdas que fez residir o segredo dos seus retratos históricos. Isso mesmo vós dizeis, quando observais que entre os grandes males da história do Brasil está “a ausência quase absoluta de memórias e recordações individuais, que sempre foram e continuam a ser, mesmo quando apaixonadas, a mais luminosa das fontes históricas”. “Faltam-nos”, acrescentais, “as crônicas de portas adentro, os depoimentos pessoais, as indiscrições, os mexericos, etc., etc., enfim, essa fascinadora história dos bastidores, que vale muito mais do que os calhamaços oficiais, guardados nos arquivos.”
Vossa galeria de figuras ilustres abrange vários séculos, nessa série de livros que se intitulam Alcovas da História, Mata Galego, O País do Pau de Tinta, Baú Velho, Histórias da Nossa História, Brasil dos Meus Avós, Gaveta de Sapateiro.
Certas de vossas páginas, nesse gênero, constituem justos tributos a individualidades que caíram no esquecimento. Darei como exemplo o estudo que fizestes sobre Davi Moreira Caldas, o “Propagandista desconhecido”. Fostes buscá-lo ao enevoado país de Oblivion, e ei-lo que hoje vive aos nossos olhos. Esse homem teve uma particularidade muito estranha: sendo jornalista, anunciou, em 1783, que a República no Brasil havia de ser proclamada em 1889. Tão certo estava disto que mudou o título do seu jornal de O Amigo do Povo, como era, para Oitenta e Nove, como ficou sendo. Fez mais: determinou que o seu jornal, no primeiro ano de vida, fosse publicado dezessete vezes, no segundo, dezesseis, no terceiro, quinze e assim por diante, de sorte que em 1889 só saísse à luz uma única vez: no dia em que houvesse de comemorar a proclamação da República. E isso aconteceu. O profeta morrera dez anos antes; mas seu filho, o poeta Fócion Caldas, cumpriu à risca a determinação paterna.
Realmente, em cada um dos vossos estudos históricos é sempre o heroísmo ou o pitoresco que encontramos.
Os homens de alma de ferro, que, pelo milagre da energia e da vontade, imprimiram novos rumos aos acontecimentos na Terra, esses merecem a vossa veneração. É para eles – para um Fernão de Magalhães, por exemplo, lutando, sozinho, contra os homens e contra o próprio destino – que vão os vossos entusiasmos. Igualmente vos atraem todos os que viveram conduzidos por uma ardente flama de amor humano. É para eles – para um Tiradentes, oferecendo a vida ao sonho da liberdade do Brasil – que vão as vossas admirações. E vos atraem mais que todas as almas sublimes, tocadas de um raio de elevação celestial. É para elas – para um Nóbrega, para um Anchieta, investindo as tabas indígenas sob a frágil proteção da cruz – que vai todo o vosso maravilhado amor.
Mas, ao lado dos feitos de gigantescas proporções, como vos seduzem as indiscrições saborosas e grotescas, os simples episódios divertidos, que mostrem a fragilidade de qualquer soberbo figurão da História!
Com efeito, às vezes é-nos bastante uma situação pitoresca, ou um dito de espírito, para termos revelada a alma de um homem e até toda a psicologia de um povo.
Vede, por exemplo, Maciel Monteiro, o poeta elegante, o donairoso casquilho, patrono de uma das nossas cadeiras. Deixou longa tradição de galanteria, de volubilidade no amor, de donjuanismo. Que traço, porém, poderia traduzir melhor aquela alma do que o episódio que narrais, e no qual vemos o poeta recusar a vitaliciedade de uma cadeira do Senado do Império, para não revelar que já havia passado dos quarenta anos? Felizes somos nós, meu malicioso colega, nós, que não precisamos de certidão de idade para entrar nas eleições da Academia, e que aqui podemos chegar ainda em plena juventude, como aconteceu a Paulo Barreto, que antes de fazer trinta anos já usufruía as delícias humildes da imortalidade!
Que episódio mais revelador das crueldades de uma época de que aquele que nos contais, quando apresentais o Santo Anchieta, dialogando com a velha índia? – Vivia o Apóstolo do Brasil cheio da alegria franciscana de ter convertido a pobre irmã selvagem, quando, certo dia, verificou que ela mostrava tristeza muito particular. Aproximou-se Anchieta.
– Dói-lhe alguma cousa, minha avó? Diga!
– Nada.
– Não está com fome?
– Não. Não posso comer.
– Ah! Então está doente!
– Não estou.
– Que é que sente?
– Um fastio... Há três dias que não como...
Anchieta condoeu-se, e insistiu para que a velha comesse alguma cousa. Aquilo facilmente passaria... Deus não queria que as suas criaturas passassem fome... Que ela aceitasse um pouquinho de açúcar, um pouquinho de pão... A tudo a velha respondia com a cabeça, negativamente.
O padre afligia-se cada vez mais.
– Diga, diga o que lhe apetece, que eu irei buscar.
Afinal a índia fixou nele os olhos tristes, e respondeu:
– Só uma cousa, meu neto, era capaz de me abrir o apetite...
– E que cousa era essa?
– Era um bracinho de criança, muito tenra, para eu chupar os ossinhos... Mas que hei de fazer? Já estou velha... Não tenho mais ninguém que me freche um menino...
É com um vivo sentimento do pitoresco que esboçais tantos lances da vida de Pedro I, o varão que em nossa História mais vos tem preocupado. É com esse mesmo sentimento que modelais a figura de Chica da Silva, a do Caramuru, a de Fernandes Vieira, a de Joaquim Silvério, a de Calabar. É com ele, enfim, que, resumindo o livro de D. Ildefonso Bermejo, nos dais um painel delicioso do que era a vida no Paraguai, sob a tirania divertida, mas sangrenta, de D. Carlos Antônio Lopes.
Teatro
Como autor de teatro, Sr. Viriato Correia, sois um minucioso observador de costumes. É com a pintura dos ambientes brasileiros, e a dos indivíduos que se movem nesses ambientes, que teceis os enredos de inúmeras peças.
A paixão pelo teatro foi uma das primeiras manifestações de vosso talento literário. Aos 18 anos, em São Luís, representáveis, no Teatro Fênix, entre amadores que, como vós, dispunham de imensa boa-fé e imensa ingenuidade. Já então acalentáveis o sonho de escrever peças, muitas peças. Chegastes a compor uma comédia em um ato, cujo assunto se desenvolvia no sertão. Pena é que se tenha perdido esse trabalho.
A preocupação das figuras e dos hábitos do interior do Brasil ficou, desde aquele tempo, em vossa imaginação. Quando, em 1915, tomastes, pela primeira vez, contacto com o público carioca, foi através de uma peça daquele ambiente. Era A Sertaneja, opereta que, musicada por Chiquinha Gonzaga, alcançou no Rio para mais de cem representações. A segunda peça com que vos apresentastes ao público carioca foi, também, de costumes sertanejos – foi a tantas vezes vitoriosa Juriti. Ao mesmo ciclo pertencem muitas outras comédias que aqui viestes representando: a Mangerona, a Morena, o Sol do Sertão, a Maria.
Mas, se o interior do Brasil assim vos atraía, também vos interessavam, como campos propícios à observação maliciosa, as cidades complexas, onde a vida reveste novas formas de confusão e tumulto. É a vida das grandes cidades – que tanto pode ser a do Rio, quanto a de São Paulo, a de Porto Alegre quanto a de São Salvador – que vos tem sugerido comédias e farsas de impagável espírito, ou dramas de pungentes situações. É a esses dois grupos que se prendem essas numerosas peças, que têm deliciado a platéia brasileira: a Sapequinha, Nossa Gente, Zuzu, Uma Noite de Baile, Pequetita, Bombonzinho, Sansão, Bicho-Papão, O Homem da Cabeça de Ouro, A Marquesa de Santos, Carneiro de Batalhão.
Algumas dessas peças assinalaram momentos muito difíceis de vossa vida. Bombonzinho, a mais espirituosa das comédias que ainda escrevestes, foi feita em condições muito especiais. Tínheis saído da prisão, onde havíeis resgatado o crime de idéias políticas que talvez nunca tenhais tido e, desempregado, sem amigos, estáveis numa situação precária. Foi então que Procópio vos pediu uma peça. E Bombonzinho vos veio ao espírito. Num mês, trouxe-vos oito contos, o que serviu para resolver a crise que atravessáveis. Era bem o presente que Deus vos deu, como costumais chamar a essa comédia.
Um dos assuntos que mais freqüentemente apresentais em vosso teatro, um daqueles que mais vos servem à observação, é a instituição do matrimônio, tal como a temos em nosso País. A concluir do que mostrais em vossas comédias, o casamento no Brasil não é mais do que um perigoso estimulante às traições domésticas. Justiça vos seja feita: essas traições são, sempre, realizadas pelos homens. As mulheres que encontramos em vossas peças são, invariavelmente, modelares tipos de mães de família, transigindo, quando muito, num vago, inofensivo flerte.
É, pois, na vida de dentro do lar que ides buscar a matéria cômica de muitas de vossas peças. – No Bombonzinho, dois maridos bilontras arranjam uma viagem para São Paulo. As esposas, confiantes, mas saudosas, os deixam partir. Mas eles vão é para uma descompassada farra, numa casa que um amigo comum, outro grande boêmio como eles, possui na Gávea. Por desgraça, há um desastre no trem mineiro. Eles ouvem narrar o acidente como tendo ocorrido no paulista. E logo regressam a casa, dando-se como feridos. Decorre daí uma série de situações falsas, e realmente muito cômicas. – No Bicho-Papão, outro marido patusco aproveita a viagem que a esposa está fazendo fora do Rio, e organiza, no próprio lar, uma estrondosa festa, com muitas mulheres e muitíssimas bebidas. A esposa regressa, inesperadamente. E toda a peça é um jogo de situações dúbias e complicadas. – No Sansão, um marido infeliz, vítima do desprezo da esposa e da sogra, dá-se, de repente, como possuidor de uma fortuna enorme, conseguindo assim reafirmar, mercê de um hábil logro que passou na família, um prestígio que já havia perdido. – No Carneiro de Batalhão, o vosso último grande êxito do palco, outro marido pirata trai a esposa com uma criatura chamada Ivone. A amante inventa que do ilícito amor lhe nasceu um filho. Certo dia, inesperadamente, aparece em casa do marido traidor uma criança dentro de um berço. Conduzida por um chofer, a pequenina levava consigo um bilhete, em que alguém, assinando-se Ivone, se queixava do abandono a que estava votada e pedia que o homem, a quem a menina era enviada, tratasse bem a filha... Logo o rapaz concluiu que a criança era seu filho, ou, melhor, o filho da criatura com a qual tivera o episódio amoroso. A coisa se atrapalha, porque figuram na peça uns cinco cavalheiros, todos casados, e, na hora da apuração das responsabilidades, quando se revela o nome de mãe do enjeitadinho, verifica-se que cada um daqueles maridos tem na vida pelo menos uma Ivone. Se fôssemos generalizar a doutrina da vossa comédia, todos os maridos, no teatro ou fora dele, teriam a sua Ivone, ou, mesmo, a sua coleção de Ivones. Eis o que a esse respeito pensa Alarico, o proficiente bilontra do Carneiro de Batalhão:
– Os maridos – diz ele, dirigindo-se ao Costinha – os maridos se dividem em duas classes: os que praticam cavalarias de dia e os que as praticam de noite. Piratas das matinées, piratas das soirées. Os que agem de dia são os hábeis. Tão hábeis que são tidos por toda gente como criaturas modelares. Ninguém imagina que eles, ao sair de casa, à luz do sol, se dirijam para os braços das mulheres. As esposas dão-lhes beijinhos ao portão, quando eles saem. Ah! vão para o trabalho, vão ganhar o pão, o sustento do lar. À tardinha, quando voltam cansados, cansados do trabalho honesto, é ainda com beijos que as esposas os recebem. “Eu tenho absoluta confiança no meu maridinho”, dizem, uma por uma, as esposas dos maridos das matinées, “tenho absoluta confiança; ele vai pela manhã para o trabalho, volta ao escurecer, e à noite não sai de casa, nem para o cinema!” Como se o amor perdesse o encanto à luz do dia!
A isso pergunta o Costinha:
– E os maridos das bilontragens noturnas?
– Ah! – responde o Alarico. – Esses são desconceituadíssimos. Por agir de noite, agem às claras, e, por agir às claras, se desmoralizam. Não valem nada em casa. O sogro amarra-lhes a cara, a sogra azucrina-lhes os ouvidos, a mulher enche-os de ironias e azedumes. Se um filho faz uma travessura e ele repreende o filho, ouve esta frase: “Se o menino vê os maus exemplos em casa!...” Aqui fora os conhecidos dizem dele coisas terríveis: “Coitada de Dona Fulana!” (Dona Fulana é a mulher dele) “Coitada de Dona Fulana! Casou com um bandido que leva semanas inteiras sem pisar em casa!”
E esse arguto conhecedor da alma dos maridos termina por dar ao amigo um conselho que, por amor à harmonia dos lares, acho prudente transmitir a todos os homens:
– Costinha, quando te casares, toma tento, alista-te na classe dos maridos das matinées!
Talvez haja, Sr. Viriato Correia, alguma dama de alma confiante e ingênua, que, tendo ido assistir à representação de vossas peças, do teatro saiu cheia de amargas cismas, a sentir-se vítima dessa irremediável volubilidade a que condenais o sexo masculino. Que essa alma delicada se console, porém, considerando a sábia reflexão da Pupuca, a experiente personagem do Bicho-Papão. Pupuca medita sobre a constância dos homens casados e expõe esta teoria sutilíssima:
– Está chovendo. Aqui caiu uma goteira. Vai-se buscar uma vasilha e coloca-se aqui. Cai outra goteira ali – corre-se a buscar outra vasilha. Mais outra goteira, mais outra, mais outra – vai-se buscar uma bacia, um jarro, uma caçarola. Mais outras goteiras – mais caçarolas, mais jarros, mais bacias. Chega-se a um momento em que não há mais vasilhas para tantas goteiras. Que se faz? Deixa-se a gente molhar, a gente deixa chover. Assim é a vida da mulher casada. O marido engana uma vez. Ela zanga-se, reclama, chora. É a primeira vasilha na primeira goteira. O marido engana a segunda vez. Ela procura ver se o atrai. Engana a terceira, a quarta, a quinta. Ela vai empregando este, aquele, aquele outro remédio. Chega o momento em que são tantas as infidelidades que não há mais remédio, não há mais vasilha. Engana, diabo! Que chova na casa toda.
Certo, é rico de comicidade o vosso teatro, nas situações que concebeis e nos tipos que criais. Mas, também, quanta vez é ele amargo e doloroso! Cheia de melancolia é a vida de Aniceto, o marido que nos mostrais em Sansão. Fora rico e prestigioso; agora, porém, empobrecido como está, é dado como doido pela família da esposa, e vive cercado do desprezo de todos. Apenas Amália, a pobre costureira, o admira e o ama – ela, que é conterrânea dele, no vago país do sofrimento e da resignação. Triste, indizivelmente triste, é a vida do Senador Tobias, o político que nos mostrais em O Homem da Cabeça de Ouro. Espírito genial, ele viveu para o trabalho de todas as horas e para o honesto amor da Pátria. Quase septuagenário, acha-se cercado pelas filhas, que não o amam, e pelos genros, que o exploram, que o vendem da maneira mais torpe.
Nessas peças todas, que numerosa multidão de tipos vivos, tipos molierescos ou balzaquianos, que parecem viver conosco, tanto lhes conhecemos a alma e o coração! É aqui aquele Fortunato, do Sansão, inimigo público dos galicismos, que, pelo seu intemerato amor à boa linguagem portuguesa, bem poderia vir sentar-se a uma das nossas cadeiras azuis. É ali aquele Basílio da Zuzu, mandrião e boa-vida, incapaz de pagar as pensões em que se hospeda, e vivendo às sopas do irmão trabalhador. É, depois, o Damasceno, o exemplar malandro de O Homem da Cabeça de Ouro, vivendo parasitariamente, fazendo suas pequenas ou grandes piratarias, mas sempre amável e simpático, e jamais querendo aparecer como um santarrão. É mais adiante, Militão, o grave Militão, o amigo das missas e das hóstias, que nos pintais em Carneiro de Batalhão. É, enfim, o Arquimedes, da peça Maria, sujeito precioso, que tinha a ciência das acumulações, e acabou sendo ao mesmo tempo professor, delegado, consertador de máquinas de costura, juiz, advogado nas próprias causas, sacristão, dentista, vigário... e se mais mundo houvera lá chegara!
De outro gênero, marcando talvez novo rumo à vossa obra de autor teatral, é essa A Marquesa de Santos, que víamos, há pouco, representada com tanto êxito no Rio. A figura de Pedro I, a figura de Domitila sempre constituíram grandes motivos de atração para o vosso espírito. Em numerosas páginas dos vossos livros de estudos históricos aparece o episódio amoroso do príncipe com a marquesa. Tão viva foi sempre essa atração que a propósito desses amores escrevestes o único trabalho em verso que pude encontrar em vossa numerosa obra.
Realmente, há quatro anos existiu no Rio o que se chamou Teatro Meu Brasil. Para esse teatro, escrevestes uma peça, revista ou não sei bem o que seria, intitulada Coisinha Boa. Um dos quadros de Coisinha Boa chamava-se “O Fico”, e era, em sonoros versos, um diálogo travado entre o imperial Romeu e a sua encantadora Julieta. – É na alcova da Domitila. D Pedro, fardado, dispõe-se a sair, pois vai partir para Portugal. Ela o prende nos braços tentadores, falando-lhe quase à maneira de Castro Alves:
Não saias, meu amor, é cedo ainda!
Inda está longe o alvor da madrugada.
A noite está tão pura, está tão linda,
Que parece de beijos constelada.
Vem aquecer na polpa do meu peito
A cabeça de príncipe amorosa.
De novo, amor, vem desmanchar meu leito,
Que meu leito por ti reascende a rosa.
D. Pedro insiste em sair. A mulher insiste em que ele não saia – e, para prendê-lo, põe-se a chorar. O príncipe perde um pouco a paciência, e exclama: “Bonito! Começou a choradeira!”
Logo, todavia, justifica-se, dizendo, em versos anacrônicos:
Meu amor é maior que a própria vida
(Assim teu peito eternamente o acoite!)
Mais alto que o obelisco da Avenida,
Do que o prédio da Noite!
E se engenho eu tivesse, minha amiga,
Para agora arranjar rimas em alves.
Eu diria: – é maior do que a barriga
Do ilustre senador Lopes Gonçalves!
A sedução de Domitila aumenta, irresistivelmente. Vai-se, nesse momento, aproximando o Chalaça. Afinal D. Pedro delibera entregar-se de todo à bela mulher e clama em alexandrinos, para ela, e, depois, para o valido:
Como é, afinal, para o bem da Nação
Felicidade geral do nosso coração,
Por ti, ó minha negra, eu tudo sacrifico.
Chalaça, vai dizer ao povo que eu... eu fico!
Assim, com maldosa irreverência, tratáveis, há quatro anos, os amores do nosso príncipe.
Não foi esse, entretanto, o espírito que vos inspirou a realização de A Marquesa de Santos.
Essa última peça, bem ao contrário, vale como uma reabilitação daquela curiosa figura, que tantas vezes tem sido estudada em nossa História, merecendo aos cronistas e aos eruditos apreciações tão diferentes. Em vossa interpretação, a Marquesa de Santos terá sido apenas uma doce alma de mulher, que andou na vida inquietamente; à procura de repouso para a sua imensa capacidade de sentimento, de ternura e de amor. Julgou achar esse repouso no coração do príncipe destemido, que, certo dia, ela própria vira, sob o sol de São Paulo, desnastrar a bandeira da independência da Pátria nascente.
Amou-o, porque ele era jovem e audacioso, e, posto que um pouco maluco, admirável de meiguice e de bondade. Foi, porém, traída e humilhada, foi espezinhada pelos que o cercavam – e até mesmo por ele. Quando finda a vossa peça, com o sacrifício daquele coração de mulher – sacrifício que é feito em favor da felicidade pessoal do rei e também em favor dos compromissos assumidos pelo embaixador da Corte do Brasil –, a alma da platéia está vibrando de simpatia e até de amor pela marquesa.
Não sei se teria sido essa a verdadeira psicologia de D. Domitila de Castro.
Mas os poetas são soberanos no seu reino. E não existe, que eu saiba, nenhum inconveniente em que tenhais criado, para uso nacional, uma nova lenda graciosa em torno da amante de Pedro I.
Reflexo do Brasil
Como acabamos de ver, Sr. Viriato Correia, tudo em vós está impregnado do Brasil.
Do Brasil está impregnado o vosso teatro, cheio dos nossos ambientes, dos nossos costumes, dos amores, dos sonhos, dos sofrimentos, das malícias do nosso povo.
Do Brasil estão impregnados os vossos livros de História, os livros em que evocais os heróis que fizeram a nossa nacionalidade, que lutaram contra o estrangeiro para defender o território da nossa Pátria, que invadiram florestas, atravessaram rios e cordilheiras, dominaram índios selvagens e feras espantosas, para criarem o milagre do nosso País.
Do Brasil está impregnada a vossa obra destinada à infância, toda ela povoada das lendas do nosso folclore, dos bichos das nossas matas, das crendices dos nossos homens simples, da ingenuidade, da ternura da nossa gente.
Do Brasil está impregnada a vossa obra de autor de contos, cheia, toda ela, de morenas cheirosas, de mestiças apaixonadas, de cantadores e de músicos, de coronéis matreiros e doutores falastrões, de sertões esturricados, cobertos de sofrimentos, de cidades que progridem num ritmo deslumbrante.
Do Brasil está impregnada, enfim, a vossa vida, dispersa, desenrolando-se em vários ambientes, ora em Pirapemas, ora em São Luís, ora no Recife, ora no Rio, ora em Manaus, ora em São Paulo – mas sempre una, sempre iluminada por um sonho: o da perfeição de uma vasta obra literária.
A Academia vos sente e vos compreende, no evolver de vossa personalidade, tão profundamente brasileira.
E foi por isso que vos chamou para o seu seio, confiante em que aqui podereis dar uma realização cada vez mais ampla às vossas altas qualidades de escritor.
Pela minha voz ela vos saúda, convidando-vos a tomar, sob a proteção das venerandas sombras de Porto-Alegre, Carlos de Laet e Ramiz Galvão, a Cadeira que, como o vosso patrono e os vossos antecessores, vindes enobrecer.