Um dos mistérios da arte está na capacidade que artistas têm para captar o que ainda vai acontecer, como se fossem antenas a que os sinais chegam muito antes. Um exemplo sempre citado está na obra de Franz Kafka, que parecia antever os horrores do nazismo e do Holocausto, nos enredos em que seus personagens vivem o pesadelo de serem acusados e perseguidos por autoridades inacessíveis, vistos como culpados sem que se saiba por que, reduzidos ao papel de vítimas indefesas que podem ser esmagadas a qualquer momento, como insetos.
O clima atual que a Europa vive, com pavor de ser invadida por estrangeiros, migrantes e refugiados, faz lembrar outras obras-primas da literatura do século XX. Uma delas, “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati (transformada em filme com um fantástico elenco que incluía Vittorio Gassman e Max von Sydow), captou a atmosfera europeia de final da década de 30, em uma parábola sobre soldados de uma guarnição que deixam de viver sua vida plena para passar os dias em alerta contra eventual invasão de hordas inimigas. Outro romance sobre o mesmo tema, transformado em ópera por Philip Glass, é do sul-africano J. M. Coetzee, Nobel de literatura de 2003. Trata-se de “À espera dos bárbaros”, livro em que o medo dos outros é tão intenso que vai além da simples cautela frente à imaginada possibilidade de invasão, e sinistramente mergulha na selvageria humana diante de quem é diferente, convertido então em ameaça. Um alerta sobre essa extrema-direita que cresce em países como França, Áustria, Holanda, apostando na desagregação.
O medo é mau conselheiro. Embora seja fundamental para a autopreservação, altera de tal modo a percepção da realidade, os sentimentos e o raciocínio que pode levar ao desastre, na medida em que, progressivamente, a sensação de insegurança vira angústia, se faz acompanhar da impressão de impotência, e pode evoluir para o pânico ou o terror. Rompe com qualquer racionalidade, transformando-se no que Guimarães Rosa descreveu tão bem, ao dizer que medo é uma espécie de pressa que chega ao mesmo tempo de tudo quanto é lado.
O crescimento da xenofobia e dos ultranacionalismos na Europa se insere nesse quadro. Acossadas de forma muito concreta pelo terrorismo (e o terror é a forma mais poderosa do medo), as pessoas confundem tudo. Enxergam ameaças por toda parte, principalmente de quem vem de fora, seja com medo de perder o emprego ou de que traiçoeiros atentados tragam a morte para dentro de casa.
Esse ambiente de insegurança e corrosão da solidariedade é ideal para a instauração da mentira. Líderes populistas sabem acentuar percepções equivocadas para se aproveitar dele, cevando ressentimentos, demonizando os outros ou se apresentando como defensores únicos da tranquilidade e do bem-estar. É conhecido o recurso de ditadores para unir a população em seu apoio: acenar com um inimigo externo ou ameaça de invasão estrangeira. Vimos isso aqui ao lado na Guerra das Malvinas. E a História da Europa no século XX está cheia de exemplos desse tipo, reforçando diferentes totalitarismos, de Hitler e Mussolini a Salazar e Franco.
Entre nós, há também os medrosos hesitantes, em cima do muro, sabendo o que é certo, mas temerosos do patrulhamento na própria trincheira. Arriscam-se a deixar de seguir a consciência para sair bem na foto. E há os desesperados com a Lava-Jato, a tramar um pacote legislativo que cerceie a ação da Justiça e a enquadre como abuso de autoridade, tentando salvar a própria pele.
A combinação de toda essa gama que vai de um leve receio ao mais deslavado pavor pode ter consequências desastrosas — como o Brexit acaba de comprovar. Com medo da arrogância e poder dos britânicos, a União Europeia se recusou a fazer concessões. Com medo de negociar em Bruxelas e não ser compreendido em casa, receando o fogo amigo de seu partido se fosse flexível, Cameron bateu pé, fez birra e convocou o referendo irresponsável e desnecessário. Com medo de ser tachado de conservador, o líder trabalhista Corbyn fez só uma campanha morna contra o Brexit. Com medo de mudanças em relação a memórias nostálgicas, os mais velhos decidiram complicar a vida das gerações futuras. Com medo de dar força a esses políticos que aí estão, muitos jovens não compareceram para votar. Com medo de perder benefícios, sindicatos escolheram jogar a culpa nos estrangeiros (sobretudo da Europa do leste e do Mediterrâneo) e votar pelo isolamento. Com medo da concorrência, empresas locais entraram na onda. E foram insufladas por uma campanha que não explicou nada direito — quando não mentiu descaradamente, prometendo o que não podia entregar e apavorando os eleitores.
Péssimo conselheiro, o medo. Não apenas acaba de isolar a Grã-Bretanha, mas dividiu uma nação que sempre soube manter seu espírito de pé, com um povo avesso a extremismos, fortemente unido nos momentos difíceis. Mais uma vez confirmando Guimarães Rosa: o medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.