Uma das belezas das línguas está em palavras que só esse idioma tem e revelam formas próprias de apreensão da realidade. É o caso da tão citada saudade em português. Isso também ocorre com insight em inglês — algo muito além das traduções sugeridas pelos dicionários, como perspicácia, discernimento ou introvisão. Tem a ver com a ideia de revelação súbita e iluminadora de algo oculto, uma espécie de relâmpago na consciência. Uma palavra que nos falta na língua de Camões.
Em recente conferência na ABL, o cientista político Sergio Abranches comentou que a sociedade brasileira anda tolerando o intolerável. Para alguns dos presentes, foi um insight, a nos lembrar que lutamos por mais tolerância à diversidade, mas estamos deixando de nos preocupar com nosso excesso de tolerância em outras casos. Talvez estejamos tolerando demais a desigualdade. E nos anestesiando para a aceitação da impunidade.
No entanto, temos todo dia uma quantidade incrível de lembretes de como esses males nos assolam. A proliferação recente da violência vai muito além dos atos de terrorismo que explodem a qualquer momento em qualquer lugar. O ataque à boate gay em Orlando, com dezenas de vítimas fatais, se soma a massacres de fiéis de seitas rivais no Oriente Médio, à guerra de facções entre a bandidagem nacional, aos estupros coletivos que se multiplicam país afora, ao assassinato da deputada britânica que defendia a permanência do Reino Unido na União Europeia, à agressão de uma menina na escola de Curitiba por ter sido fotografada com a mãe portando símbolos do candomblé. Para não falar nas torcidas que se agridem e se matam em eventos esportivos, nas balas perdidas multiplicadas, nas chacinas em todo canto, nos assaltos que eliminam vidas para obter umas pedras de crack, ou nos quase 20 bandidos fortemente armados que invadiram o maior hospital de emergência do Rio, fizeram o que bem entenderam, feriram, mataram, resgataram um criminoso famoso por matar gente a machadadas. E ainda se gabaram de seu feito, no centro da cidade, perto de batalhões da PM, do outro lado da praça onde fica a sede da Secretaria de Segurança e onde, poucos dias antes, foram filmados outros bandidos de fuzis circulando à vontade. Com a certeza da impunidade.
Em palavras vindas de outro hospital, o oncologista Carlos Gil alertou há poucos dias: “Condição financeira não pode ser critério de sobrevida”. Falava nas desigualdades no atendimento observadas em sua área. Tem razão, ao denunciar que estamos tolerando o intolerável, criando quase um sistema de castas na saúde.
Estamos ficando indiferentes ao fato de que, no Brasil, as taxas de morte violenta, sobretudo de jovens negros ou mestiços, atingem números incompatíveis com a civilização. Estamos anestesiados para os índices recordistas de policiais mortos no cumprimento de suas funções. E, por mais que o prefeito do Rio use adjetivos como inaceitável ou inadmissível, estamos aceitando e admitindo que as obras públicas sejam tão mal feitas que tragam perigo à população que as pagou. Até mesmo causando mortes como na recente queda da ciclovia. Ou como a ruptura da barragem de Mariana. Sem exigir que a fiscalização de obras passe a ser feita por seguradoras, e não por vistorias amigas, aptas a fazer vista grossa.
Estamos tolerando barbaridades que corroem por dentro o que deveria ser a própria tessitura da sociedade, que nos liga uns aos outros como filhos de uma mesma nação. É claro que a situação é complexa, e as causas são muitas e entrelaçadas. Mas não é possível continuarmos fechando os olhos para nossa tolerância à impunidade.
Às vezes, por meio de uma omissão que se confunde com cumplicidade e em nome de vagas teorias, insiste-se em formas de celebração demagógica que passam por cima das péssimas condições de educação, moradia e saneamento em que vive grande parte da população, sem esgoto nem coleta de lixo. Ignora-se a relação entre sujeira e doenças, ou falta de oportunidades e criminalidade juvenil. Rejeita-se encarar os vínculos entre as políticas econômicas adotadas e a deterioração das cidades, o custo Brasil, os efeitos destrutivos do populismo e da incompetência administrativa, a incapacidade empresarial de aumentar a produtividade e gerar empregos em número suficiente e com remuneração adequada.
Por que aceitamos as terríveis condições de nosso sistema prisional? Por que ônibus fretados sofrem acidentes horríveis, e isso continua sem controle? Por que não funciona a lei que obriga que pacientes de câncer tenham seu tratamento iniciado dentro de, no máximo, dois meses depois do diagnóstico? Por que aceitamos que religiosos se achem acima da lei, seja no volume de decibéis de seus cultos, seja nas isenções fiscais? Por que não conseguimos combater o armamento pesado nas mãos dos bandidos? Por que vemos deputados querendo afrouxar ainda mais a lei, e continuamos reelegendo essa gente?
Estamos tolerando o intolerável. Muito além da simples tolice.