O que estará em questão na Europa é a vitalidade das duas forças que sustentam o Ocidente: o Cristianismo e os direitos humanos
A trágica semana em que o corpo de um menino sírio, como um dejeto, veio dar à praia na Turquia, em que multidões atravessaram a pé a Hungria, fugindo da guerra, e foram resgatados nos carros de austríacos e recebidos em Munique pelos alemães com água, comida, flores e abraços, essa semana em que o Êxodo recriou-se em chão europeu entrará para a história do continente como um momento maior de reafirmação dos valores da civilização ocidental.
O que estará em questão doravante é a vitalidade das duas grandes forças morais que sustentam o Ocidente, uma, religiosa, o Cristianismo, outra laica, os direitos humanos nascidos da Revolução Francesa.
Não foi um acaso se o Papa que se atribuiu o nome de Francisco, na viagem inaugural de seu Pontificado, desembarcou na Ilha de Lampedusa, no extremo sul da Itália, o porto seguro tão almejado por milhares de emigrantes vindos da África. Percebera o imenso questionamento ético que a tragédia da imigração coloca ao mundo cristão. É o mundo cristão, cujas virtudes são a fé, a esperança e a caridade, que vai recusar pão, chão e um teto aos que já não têm pátria e deixá-los morrer de sede ou afogados em mar escuro?
Francisco entendera que chegara a hora da verdade, que as levas de miseráveis negros vinham morrer nas praias brancas e que esse estado de coisas, por mais complexo e desafiador que fosse — e quão complexo todos sabemos que é — não permitia mais a indiferença como escapatória, nem os muros, arames farpados e policiais truculentos como solução. Fosse o Papa brasileiro, teria bradado como Castro Alves, no “Navio Negreiro”, “Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me vós, senhor Deus, se é loucura ou se é verdade tanto horror perante os céus”.
Enquanto o primeiro-ministro da Hungria atiçava sua polícia contra a multidão de refugiados sírios, fugitivos não da miséria e sim da guerra e da escravidão, confinando-os em campos de concentração, invocando a defesa da civilização cristã que estaria, segundo ele, sendo invadida por muçulmanos, o Papa Francisco, na missa de domingo, exortou todas as paroquias e mosteiros da Europa a que acolhessem uma família de refugiados e anunciou que começaria pela sua, abrindo as fronteiras do Vaticano. Quem fala pelo mundo cristão é ele, o único líder global de que dispomos hoje, não um político obscuro e facistóide que não enxerga um palmo além das suas fronteiras.
Francisco demonstra entender que quem está naufragando é a cristandade e, por palavras e obras, se empenha em salvá-la, trazendo seus fundamentos para a vida real. Ele sabe que a civilização não sairia incólume da rejeição aos refugiados. Sabe o quanto custou à Igreja Católica o silêncio cúmplice do Vaticano frente ao extermínio dos judeus pelo nazismo.
Angela Merkel conhece bem os muros que separam os seres humanos. Ela vem da Alemanha do Leste, viveu a cicatriz que por tantos anos desfigurou a nação alemã.
Abriu a fronteira aos refugiados sírios que nada tinham a seu favor, além de coragem e determinação, nenhum direito senão o direito de asilo, inspirado nos direitos humanos, essa joia que a humanidade lapidou e que nos arrancou da condição animal quando passamos a chamar de crueldade a destruição do mais fraco que a seleção natural acata. Quando sentimos compaixão diante do sofrimento do outro, mesmo longínquo ou estrangeiro, e isso nos move e comove.
Merkel afirmou o fato moral que obriga à solidariedade. Conhece bem o peso dos crimes hediondos que a Alemanha cometeu no passado e tratou de não repeti-los. Disse ao seu povo, “a partir de hoje a Alemanha é um outro país”. E é. Uma pesquisa de opinião registrou que 96% dos alemães, muitos dentre eles filhos de fugitivos de outros exílios impostos pela Segunda Guerra Mundial, aprovam a acolhida aos refugiados.
Os alemães não ignoram as dificuldades práticas que essa acolhida representa. A beleza do gesto de solidariedade está em primeiro afirmar a necessidade do socorro e, então, por todos os meios buscar as soluções para prestá-lo. É essa a tradição humanista.
A Europa, fulcro da civilização ocidental, hoje sofre ataques terroristas em seu próprio território. Nenhum deles é mais perigoso do que a autodestruição de seus fundamentos morais, a negação de seus mitos fundadores. “Somos uma Europa de valores”, disse Merkel. É imprescindível que outros países sigam seu exemplo.
É certo que a Europa mudará com a chegada de milhões de refugiado, mas é mais certo ainda que a civilização ocidental que merece ser preservada é essa, a de Angela e Francisco.