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Vicente de Carvalho

           A FLOR E A FONTE

“Deixa-me, fonte!” Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria

Cantava, levando a flor.

 

“Deixa-me, deixa-me, fonte!”

Dizia a flor a chorar:

“Eu fui nascida no monte...

Não me leves para o mar.”

 

E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria,

Corria levando a flor.

 

“Ai, balanços do meu galho,

Balanços do berço meu;

Ai, claras gotas de orvalho

Caídas do azul do céu!...”

 

Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror.

E a fonte, sonora e fria,

Rolava, levando a flor.

 

“Adeus, sombra das ramadas,

Cantigas do rouxinol;

Ai, festa das madrugadas,

Doçuras do pôr do sol;

 

Carícias das brisas leves

Que abrem rasgões de luar...

Fonte, fonte, não me leves,

Não me leves para o mar!”

                    *

As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida

Como a da fonte e da flor...

 

 

                  OLHOS VERDES

Olhos encantados, olhos cor do mar

Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas cousas, quantas maravilhas

Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo:

Cortes pitorescos de afastadas ilhas

Abanando no ar seus coqueirais em flor,

Solidões tranquilas feitas para o beijo,

Ninhos verdejantes feitos para o amor...

 

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noute, vai subindo a lua...

O horizonte, como para recebê-las,

De uma fímbria de ouro todo se debrua;

Afla a brisa, cheia de ternura ousada,

Esfrolando as ondas, provocando nelas

Bruscos arrepios de mulher beijada...

Olhos tentadores da mulher amada!

 

Uma vela branca, toda alvor, se afasta

Balançando na onda, palpitando ao vento;

Ei-la que mergulha pela noute vasta,

Pela vasta noute feita de luar;

Ei-la que mergulha pelo firmamento

Desdobrado ao longe nos confins do mar...

Olhos cismadores que fazeis cismar!

 

Branca vela errante, branca vela errante,

Como a noite é clara! como o céu é lindo!

Leva-me contigo pelo mar... Adiante!

Leva-me contigo até mais longe, a essa

Fímbria do horizonte onde te vais sumindo

E onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados, cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,

         Olhos cor do mar!

 

                  (Poemas e canções, 1908)

 

 

               VELHO TEMA

                          I

Só a leve esperança, em toda a vida,

Disfarça a pena de viver, mais nada;

Nem é mais a existência, resumida,

Que uma grande esperança malograda.

 

O eterno sonho da alma desterrada,

Sonho que a traz ansiosa e embevecida,

É uma hora feliz, sempre adiada

E que não chega nunca em toda a vida.

 

Essa felicidade que supomos,

Árvore milagrosa que sonhamos

Toda arreada de dourados pomos,

 

Existe, sim: mas nós não a alcançamos

Porque está sempre apenas onde a pomos

E nunca a pomos onde nós estamos.

                         II

Eu cantarei de amor tão fortemente

Com tal celeuma e com tamanhos brados

Que afinal teus ouvidos, dominados,

Hão de à força escutar quanto eu sustente.

 

Quero que meu amor se te apresente

- Não andrajoso e mendigando agrados,

Mas tal como é: risonho e sem cuidados,

Muito de altivo, um tanto de insolente.

 

Nem ele mais a desejar se atreve

Do que merece: eu te amo, o meu desejo

Apenas cobra um bem que se me deve.

 

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;

E vou de olhos enxutos e alma leve

À galharda conquista do te beijo.

                                III

Belas, airosas, pálidas, altivas,

Como tu mesma, outras mulheres vejo:

São rainhas, e segue-as num cortejo

Extensa multidão de almas cativas.

 

Tem a alvura do mármore; lascivas

Formas; os lábios feitos para o beijo;

E indiferente e desdenhoso as vejo

Belas, airosas, pálidas, altivas...

 

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,

Mesmo às que são mais puras e mais belas,

Um detalhe sutil, um quase nada:

 

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,

E entre os encantos de que brilham, falta

O vago encanto da mulher amada

                                  IV

Eu não espero o bem que mais desejo:

Sou condenado, e disso convencido;

Vossas palavras, com que sou punido,

São penas verdades de sobejo.

 

O que dizeis é mal muito sabido,

Pois nem se esconde nem procura ensejo,

E anda à vista naquilo que mais vejo:

Em vosso olhar, severo ou distraído.

 

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:

Ao meu amor desamparado e triste

Toda a esperança de alcançar-vos nego.

 

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;

Conto-lhe o mal que vejo, e ele que é cego

Põe-se a sonhar o bem que não existe.

                                   V

“Alma serena e casta, que eu persigo

Com o meu sonho de amor e de pecado,

Abençoado seja, abençoado

O rigor que te salva e é meu castigo.

 

Assim desvies sempre do meu lado

Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;

E assim possa morrer, morrer comigo,

Este amor criminoso e condenado.

 

Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito

Uma ventura obtida com teu dano,

Bem meu que de teus males fosse feito.”

 

Assim penso, assim quero, assim me engano...

Como se não sentisse que em meu peito

Pulsa o covarde coração humano.

 

               (Poemas e canções, 1908)

 

 

 

             PEQUENINO MORTO

Tange o sino, tange, numa voz de choro,

Numa voz de choro... tão desconsolado...

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino, levam-te dormindo... Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro...

         Pequenino, acorda!

 

Como o sono apaga o teu olhar inerte

Sob a luz da tarde tão macia e grata!

Pequenino, é pena que não possas ver-te...

Como vais bonito, de vestido novo

Todo azul celeste com debruns de prata!

Pequenino, acorda! E gostarás de ver-te

         De vestido novo.

 

Como aquela imagem de Jesus, tão lindo,

Que até vai levado em cima dos andores

Sobre a fronte loura um resplendor fulgindo,

- Com a grinalda feita de botões de rosas

Trazes na cabeça um resplendor de flores...

Pequenino, acorda! E te acharás tão lindo

         Florescido em rosas!

 

Tange o sino, tange, numa voz de choro,

Numa voz de choro... tão desconsolado...

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino levam-te dormindo... Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro...

         Pequenino, acorda!

 

Que caminho triste, e que viagem! Alas

De ciprestes negros a gemer no vento;

Tanta boca aberta de famintas valas

A pedir que as fartem, a esperar que as encham...

Pequenino, acorda! Recupera o alento,

Foge da cobiça, dessas fundas valas

         A pedir que as encham.

 

Vai chegando a hora, vai chegando a hora

Em que a mãe ao seio chama o filho... A espaços,

Badalando, o sino diz adeus, e chora

Na melancolia do cair da noite;

Por aqui, só cruzes com seus magros braços

Que jamais se fecham, hirtos sempre... É a hora

         Do cair da noite...

 

Pela Ave Maria, como procuravas

Tua mãe!... Num eco de sua voz piedosa,

Que suaves coisas que tu murmuravas,

De mãozinhas postas, a rezar com ela...

Pequenino, em casa, tua mãe saudosa

Reza a sós... É a hora quando a procuravas...

         Vai rezar com ela!

 

E depois... teu quarto era tão lindo! Havia

Na janela jarras onde abriam rosas;

E no meio a cama, toda alvor, macia,

De lençóis de linho no colchão de penas.

Que acordar alegre nas manhãs cheirosas!

Que dormir suave, pela noite fria,

         No colchão de penas...

 

Tange o sino, tange, numa voz de choro,

Numa voz de choro... tão desconsolado...

No caixão dourado, como em berço de ouro,

Pequenino levam-te dormindo... Acorda!

Olha que te levam para o mesmo lado

De onde o sino tange numa voz de choro...

         Pequenino, acorda!

 

Por que estacam todos dessa cova à beira?

Que é que diz o padre numa língua estranha?

Por que assim te entregam a essa mão grosseira

Que te agarra e leva para a cova funda?

Por que assim cada homem um punhado apanha

De caliça, e espalha-a, debruçado à beira

         Dessa cova funda?

 

Vais ficar sozinho no caixão fechado...

Não será bastante para que te guarde?

Para que essa terra que jazia ao lado

Pouco a pouco rola, vai desmoronando?

Pequenino, acorda! – Pequenino!... É tarde...

Sobre ti cai todo esse montão que ao lado

Vai desmoronando...

 

Eis fechada a cova. Lá ficaste... A enorme

Noite sem aurora todo amortalhou-te.

Nem caminho deixam para quem lá dorme,

Para quem lá fica e que não volta nunca...

Tão sozinho sempre por tamanha noite!...

Pequenino, dorme! Pequenino dorme...

         Nem acordes nunca! 

 

            (Poemas e canções, 1908)