A sociedade brasileira sairá mais sólida desse purgatório em que desconstrói os seus mitos e enfrenta o cara a cara consigo mesma
Desalento e desesperança estão no ar. Ambos são tóxicos e maus conselheiros. Conduzem à paralisia ou ao cinismo do salve-se quem puder.
Sem minimizar o peso que a corrupção da política e os desastres da economia têm no cotidiano de cada um é bom lembrar que por maiores que sejam os desgostos que provocam o Brasil não se esgota na Praça do Três Poderes. A vida é feita de luzes e sombras e se só enxergarmos as sombras estaremos pecando por omissão. Há uma leitura possível dos fatos que é produtora de sentido e renovadora de esperança.
Saint Exupéry conhecia o poder constituinte da esperança. “Quem quiser construir um barco, não comece por juntar as madeiras, cortar as tábuas e distribuir o trabalho, e sim por despertar nos homens o desejo do mar aberto e infinito”.
É esse desejo de um novo horizonte, a dimensão da esperança, que já não conseguimos experimentar. Colados à temporalidade vertiginosa da notícia, a vista vai ficando míope. Sabemos tudo e imediatamente sobre a cotação das bolsas e os escândalos do dia. Telas divididas em quatro informam sobre quatro continentes, mil amigos na internet filmam o que acontece em cada esquina. A enxurrada de informações transborda da capacidade de processamento e nos deixa órfãos de sentido.
Essa subversão contínua do imediato por outro imediato, essa aceleração patológica não dá chance ao pensamento de amadurecer. Vão ficando à margem questões essenciais. Em que tipo de sociedade queremos viver? É possível escapar à violência de todos contra todos? Que novos atores estão influindo no destino do país? Questões que pedem maturação quando os velhos arcabouços ideológicos estão caindo de podres.
O cenário político é degradante, com dois ex-presidentes da República e os presidentes da Câmara e do Senado sob investigação da Justiça. Em compensação temos um Poder Judiciário que funciona. A coragem de juízes e procuradores que conduzem a operação Lava-Jato redime o país das bandalheiras que a operação vai revelando. O país que eles desvelaram não teria existido se o Judiciário tivesse sempre atuado como está atuando agora. Daqui para frente será bem mais difícil debochar da lei e transformar o Congresso em esconderijo.
Os brasileiros em sua esmagadora maioria ganham suas vidas com trabalho honesto e mal visualizam as cifras delirantes envolvidas na roubalheira de que ouvem falar. A indignação dessa população cresce a cada dia, alheia às querelas intramuros de partidos decadentes. É dela e, sobretudo, da juventude, que não se reconhece no Brasil que estertora, corrupto e carcomido, que virá a invenção de contextos originais de participação e a renovação de lideranças para governar o pais.
A execração pública de políticos que sempre foram de moralidade duvidosa, até aqui blindados em suas imunidades, o desmascaramento dos falsos heróis populares que, enfim, começa a romper a blindagem até mesmo dos que se julgavam invulneráveis, é uma purga necessária. Razão de otimismo.
Se dos porões do obscurantismo ressurgem atitudes e ideias que imaginávamos superadas e que se traduzem em tentativas de, via Congresso Nacional, balizar a sociedade brasileira com dogmas religiosos, esse açodamento tem a natureza aterrorizada de um exorcismo. O pavor de ver triunfar a ética libertária na maneira de viver e fazer escolhas morais.
Esse reacionarismo — e aqui essa palavra tão ultrapassada se justifica — é o reconhecimento por falsos moralistas de que a sociedade mudou. Improvisam-se, então, às pressas, projetos de lei estapafúrdios para tentar deter o curso do mundo contemporâneo. O destino desses projetos de lei que, na contramão da experiência vivida pela maioria da população, visam a cortejar o eleitorado mais conservador é virar letra morta. Mais uma razão de otimismo.
Se tanta violência eclode entre nós, sobretudo na internet onde as facadas virtuais são impunes, é porque este continente selvagem tem muito do mundo inconsciente. Sem lei, sem tabu, sem superego, o comportamento dessa população incorpórea assusta. Não somos as doces criaturas que pensávamos ser. A evidência de nossa violência envergonha e está sendo reconhecida e condenada. Instrumentos de vigilância e de regulação já tentam civilizar o continente selvagem.
A sociedade brasileira sairá mais sólida desse purgatório em que desconstrói os seus mitos e enfrenta o cara a cara consigo mesma.
Não há razão para desalento. O Brasil está vivendo um dos momentos mais fascinantes de sua história. O fim da impostura, a hora da nudez crua da verdade.