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O pecado da intolerância

 

A resposta raivosa da bancada evangélica no Congresso Nacional à Parada Gay é mais um capítulo da ofensiva fundamentalista que se abate sobre o nosso país.

Vivemos tempos difíceis. Como se já não bastassem os escândalos de corrupção e os desastres causados pela incompetência e o aparelhamento do Estado, multiplicam-se as tentativas de dar soluções simplistas e oportunistas a complexos problemas humanos. 

Casamento gay, interrupção voluntária da gravidez, direito à morte com dignidade são situações existenciais em que o exercício da liberdade com responsabilidade deve primar sobre os interditos religiosos. 

As sociedades abertas dão aos seus cidadãos o direito de tomar decisões sobre questões que afetam sua liberdade, identidade e destino. Foi assim que, para surpresa de muitos, a população da catoliquíssima Irlanda acaba de votar por larga maioria a favor do casamento gay. Foi também assim que os parlamentos das protestantíssimas Holanda e Suíça adotaram legislações que asseguram o direito à morte com dignidade. Anos atrás seria impensável imaginar que a maioria da população dos Estados Unidos, país profundamente religioso, aceitasse o casamento gay como acontece hoje. 

Os costumes mudam e, com eles, as leis. O que era destino preestabelecido vira escolha. O que não impede que muitos, por convicção e graças à livre escolha, pautem suas vidas por princípios religiosos e outros por princípios laicos. A ética não é monopólio dos religiosos. 

Ao contrário do que imaginam os preconceituosos defensores da conformação de todos a uma regra geral e inflexível, o exercício da liberdade em questões da esfera íntima não é intempestivo nem irresponsável. Implica valores, noções de certo e errado. É sempre uma decisão sofrida, lentamente amadurecida, que cada um toma plenamente consciente das consequências que terá que assumir. Esta elaboração, por penosa que seja, por cada um de seu código ético é o contrário mesmo da leviandade. São decisões quase sempre tomadas em consulta com as pessoas mais próximas, de nossa maior confiança, com quem tecemos os laços afetivos mais sólidos. 

O eminente filósofo protestante Paul Ricoeur definiu como “círculos de confiança” estes contextos de deliberação íntima dos quais emerge uma “consciência individual ampliada”. Já não se age porque tem que ser assim mas porque, em diálogo com aqueles em quem confiamos ou que já passaram por situações similares, decide-se que assim seja. 

Já vão longe os tempos em que uma verdade revelada ou o peso da tradição nos diziam como bem viver e morrer. A ética, nas sociedades abertas, não é uma herança nem uma imposição, é uma construção. É no indivíduo que se situa a decisão sobre os seus valores. Já que escolher valores e viver no seu compasso ainda é o que dá sentido às nossas vidas. 

Os que defendem a manutenção das proibições argumentam que têm o direito de expressar sua opinião. O problema é que não se trata simplesmente de um entrechoque de opiniões. Os que reivindicam o exercício da liberdade não impõem suas opções a ninguém. Já os que advogam a manutenção das proibições criam todo tipo de obstáculos ao exercício da liberdade do outro. Expõem as mulheres que abortam na clandestinidade a riscos incomensuráveis à sua vida e sua saúde física e psíquica. Negam o direito dos doentes terminais em situação de intolerável sofrimento de morrer com dignidade. Negam aos gays o precioso direito ao amor e à família. 

Entre os defensores das liberdades e os pregadores do pecado onipresente a relação não é de simetria e sim de profunda desigualdade. Proibindo e criminalizando comportamentos e valores que fogem do seu figurino estreito, o fundamentalismo impõe a todos a sua visão do certo e do errado. O fundamentalismo é a negação da liberdade e do exercício da responsabilidade.

O divisor de águas não é, portanto, entre quem tem fé e quem não tem. É entre intolerantes e libertários. É entre a imposição e a escolha, o único e o múltiplo, o fechamento e a abertura, o arco-íris da diversidade e o obscurantismo monocromo.

Entrincheirados no Congresso Nacional, que autoridade têm esses falsos moralistas para se arrogarem em árbitros do comportamento de todos os cidadãos?

Apesar de todos os percalços, a sociedade brasileira vem avançando rumo a mais liberdade e responsabilidade. Se o Congresso uma vez mais nos decepcionar, só colherá o aumento da já imensa rejeição que sofre por parte da opinião pública. Será condenado à irrelevância por mais um pecado: o pecado da intolerância.

O Globo, 20/06/2015