Perplexidade epistemológica e sedução do irracionalismo
A reconstrução da Europa, após o fim da II Guerra Mundial, assinalou um período de gigantesco avanço científico e tecnológico. Cientistas ancorados em recursos fabulosos impulsionaram os conhecimentos atinentes ao micro e ao macrocosmo, de sorte a gerar uma circularidade de estímulos à criatividade jamais presenteada à humanidade em todos os séculos passados. O homem passou a orgulhar-se de sua inventiva. Assim, emergiu com vigor uma era revolucionária na área das comunicações, tornando obsoleto tudo aquilo que vigia até a primeira metade do século vinte. Pode-se mesmo afiançar que os conceitos de espaço e de tempo se viram profundamente alterados, uma vez que as comunicações na quadra da informática aproximaram os povos e viabilizaram a maior concentração de tecnologias a ainda mais agilizar o diálogo entre seres humanos de diversos continentes. Uma pletora de informações cientificas permitiu que nos beneficiássemos de métodos e técnicas em tal ritmo que, ao longo de um ano, a medicina, por exemplo, lograsse avanços inimagináveis, de que são exemplos radiosos as microcirurgias no cérebro e as videolaparoscopias. A produção de bens e serviços e a produtividade seguiam no mesmo diapasão e a riqueza se alastrava em todas as atividades humanas. Foi o fastígio a atestar a descomunal inventiva da inteligência e da arte de ultrapassar obstáculos e vencer desafios.
Tudo parecia caminhar na direção de um progresso insopitável e irretocável, quando o horizonte começou a apontar uma zona de densa perplexidade. Perplexidade ante o descompasso entre as benesses do progresso material e o esvaziamento interior do homem, agora sem rumo no seu viver e conviver. Sem referenciais, ficamos todos à deriva ante a ausência de valores e o abandono de tradições sedimentadas nos longos percursos vividos. É a era da desconstrução sem limites, convite à liquefação axiológica em geral e o correspondente afastamento da normatividade para o fluir da vida em sociedade.
Surgiu uma guerra sem quartel entre os indivíduos e entre muitas nações, sequiosos todos de mais espaço para a satisfação de seus interesses, sem considerar o outro, que se tornou quase inimigo. Era o império da bellum omnium contra omnes, de que falou Thomas Hobbes.
Perplexidade no domínio epistemológico, pois as ciências se atomizaram e aprofundaram suas novas bases, por maneira a gerar miríades de novas ciências, a configurar galáxias sem comunicação metodológica.
Onde se situa a razão num quadro tão caótico? É preciso sublinhar que a robusta presença da razão parece marcar o homem de sorte a discerni-lo dos demais seres da multifária realidade do mundo em que vivemos. A identificação do ser humano como animal rationale se confunde com o que mais parece defini-lo a delinear a distância que o separa dos demais seres que pululam à nossa volta no universo natural, o que confere ao homem um status privilegiado na órbita contingente.
Houve um longo, sinuoso e particularmente difícil percurso evolutivo nas culturas e nas civilizações até que chegássemos ao estágio atual. A ciência propende a nos apontar o caminho da evolução que Darwin consagrou e uma leitura imatura de textos havidos como revelados sinalizou para um criacionismo que desmerece o simbolismo da narrativa original do Ocidente. Com isto nascem verdadeiros canyons artificiais a segregar, sem possibilidade de harmonia, os domínios da razão e da fé religiosa, esta uma significativa expressão da humana espiritualidade. É imperioso resguardar os limites e as finalidades de ambas. À ciência cabe avançar com engenho e arte na difícil e nobilitante tarefa de aprofundar o conhecimento da ordem natural. E igualmente, de um modo geral, parece se aperceber de que não lhe incumbe ultrapassar tal barreira. Assim, não lhe cabe a missão de decifrar mistérios ou penetrar no denso estuário de enigmas entendidos como praeter ou sobrenaturais, a supor que lhes admitamos a existência. O mútuo respeito se impõe a fim de que não nos emaranhemos nos fios viscosos, propensos a privilegiar as ideologias do que a nortear objetivamente o pensamento.
Tais considerações preliminares cuidam de respeitar a liberdade de pensar e de agir, de criar e de progredir a que todos somos chamados em nosso percurso, penoso e complexo. Cabe-nos perquirir com as armas de que dispomos os desafios por vezes ásperos com os quais nos defrontamos na construção de nosso mais-ser e na configuração das instituições de que carecemos em nosso caminhar.
Acode-nos recordar que a lei sociológica dos três estados, formulada por Augusto Comte e perfilhada, no Brasil, desde os primórdios da república vincou a nossa história por maneira a que, conquanto hoje inexpressiva a presença do comtismo, nem por isso deixou de quase perpetuar entre nós certo ranço daquele corrente filosófico-religiosa. Isto, menos por sua robustez especulativa, do que pelas qualidades morais de seus corifeus entre nós, fenômeno que não se verificou na França. Destarte, o positivismo, num certo sentido, ainda está presente na mentalidade de intelectuais pouco afeitos a textos filosóficos de maior densidade. Cuidam muitos inconscientemente, que o estágio positivo ainda é convidativo. E o progresso das ciências tende, ainda teimosamente, a acentuar a sua primazia com formato ideológico.
Pretende-se vincular razão e filosofia como se houvera uma quase mútua e inescapável dependência. A filosofia exposta em prosa foi acolhida por Platão. Descrer da razão exigia o seu uso, como se verifica em Hume e, de forma genial, em Kant. É bem de ver que, por vezes, há radicalização em tal postura especulativa. Heidegger por vezes se situa à escuta do poeta e Jean Wahl atira a barra mais longe e mesmo aguarda o momento em que a poesia propiciará a renovação da metafísica, cuja ressurreição Peter Wust pretende estar assegurada. Como se verifica, a razão tem a primazia, mas não obsta a que a espiritualidade vestida com distintas roupagens se insinue nas dobras do raciocínio.
O empenho em erigir a razão como clé de voûte da filosofia encontra, aqui e ali, resistências oriundas de formas irracionais de filosofar. Sabemos que pensadores assistemáticos nem sempre encontram sólida guarida na história da filosofia. Basta citar Pascal, Kierkegaard, Nietzsche e Unamuno, por exemplo, que classicamente modelam formas novas de pensar a filosofia.
Registre-se o fato de que, no século passado, a angústia e a morte, antes negligenciadas, ganharam fôlego e delinearam o perfil de filosofias da angústia e mesmo do absurdo. Hoje, já não nos surpreende que se propague uma crise filosófica expressa num pensiero debole, na esteira de Gianni Vattimo. Atestava-se a impossibilidade do racionalismo científico ser capaz de dar conta do universo mais profundo da subjetividade e do ser in genere.
Passou-se a cultivar outras categorias, aparentemente dissociadas da razão. A sensibilidade, a afetividade ganharam foros de cidadania, como se vê, por exemplo, em Dietrich von Hildebrand, que em nenhum momento se aparta de seu racionalismo exigente. Isto porque nem sempre lemos adequadamente os filósofos. Exemplo pertinente ocorre com o famoso cogito cartesiano – cogito, ergo, sum – e cuidamos que o racionalismo ai está como em terra nativa e nada se detecta além dele. Basta irmos mais adiante e nos defrontaremos com o mesmo Descartes, em suas Meditationes metaphysicae, em que nos esclarece: “cogitare, id est, velle, sentire, imaginari”. O filósofo francês abriu as portas a uma visão onicompreensiva das faculdades da alma, as chamadas puissances du moi, ao ampliar a visão antropológica que só mais tarde irá desenvolver-se de maneira original, por exemplo, em Max Scheler. Cabe repisar-lhe a ideia que acudiu também a Heidegger: nunca como em nosso século se amealharam tantos e tão variados conhecimentos sobre o homem e, no entanto, jamais com igual perplexidade nos perguntamos quem é o homem. O conhecimento propiciado, adiante, servirá a um fim. É a técnica que resulta da ciência, mesmo pura.
A filosofia qual nubente apaixonada se rende á razão, mas não a cinge a limites rígidos, deixa-a livre para caminhar e não é vocacionada apenas para uma travação lógica de teses que fluem de um principio diretor, mas concerne à atitude mental de quem filosofa. É a indagação, a pergunta, que aflora ante a densidade do mistério do ser e do existir que impele a busca jamais concluída de um pensar que alumia aqui e ali o peregrinar incerto do homem.
A passagem do mythos ao logos é conhecida e atesta o quanto batalhou o homem em busca de um porto soi disant seguro em que ancorou para a sua arremetida em perseguição do mais-ser que jamais se acomoda, antes perfilha a tese de que é sempre possível amoldar seus atos, suas instituições ao modelo racional. Deve-se levar em conta que o advento da filosofia não se deu como uma superação definitiva do mito. Assim o entendeu Schelling ao sustentar que o fundamento mítico é comum à consciência filosófica e religiosa. Nietzsche por seu turno abriu uma clareira nesta questão ao reler os pré-socráticos e ao reconhecer no mito seu lugar natural.
A realidade opõe obstáculos aos reclamos da geometria do espírito e vai alinhando seus óbices de forma sutil ou mesmo ostensiva. A ideia de mundo pervade os espaços do filosofar e levou Rémy Brague a nos falar de uma sabedoria do mundo. A cosmologia ocupa lugar de singular relevo, desde a Antiguidade. Isto porque a ideia de mundo autoriza consideremos a necessidade do espírito para lhe captar o sentido de sua presença. A interação entre o homem e o mundo já se percebe quando dizemos veio ao mundo, deixamos o mundo. Há que compreender a imbricação dos dois planos. Cosmologia, consoante Rémy Brague, “implica a palavra logos, não um simples discurso, mas a maneira de dar uma explicação do mundo como mundo”.
A realidade se vê ofuscada em seu verdadeiro perfil pela diversidade de aspectos que lhe compõem o rico mosaico e a razão persegue o intento que lhe é conatural de adentrar-se em seus escaninhos por maneira a dotar o homem do conhecimento e até do domínio do mundo natural. Longe de a razão abarcar a iluminada riqueza de quanto lhe é apresentado como desafio ao seu conhecer. Hoje, mais do que ontem, os números parecem conferir a quem os utiliza a capacidade de delimitar os limites do conhecimento possível, ou pelo menos, intentam assim iludir-nos. Mas o real se esvai nas frestas das estatísticas petulantes. Daí por que cumpre respeitar a complexidade do real. A razão paga pesado tributo ao ampliar suas fronteiras com a desintegração do estuário de suas especificidades.
O acelerado desenvolvimento do conhecimento humano ao longo do século XX e a sinalização de que se acentua a tendência a evolver ainda mais rapidamente neste século gera questionamentos mais complexos a atingir o cerne do próprio ser humano e suas ditas faculdades: o que se aplica à sociedade e às suas instituições. No estuário da sociedade, suas instituições e os movimentos espontâneos brotam mais e mais e tornam quase obsoletos os mecanismos clássicos de gestão da coisa pública e seus reflexos na frágil e diversificada estrutura havida como comunitária.
A razão exerce a soberania na vida humana. Pelo menos, como tal ela é apresentada ao longo da história das civilizações e das culturas. Não lhe atribuem uma singularidade capaz de nos levar ao olvido de outras dimensões da existência. É certo, contudo o reconhecimento frequente de seu primado.
A questão se nos afigura relevante, pois dela pende o compromisso com a atuação de homens e instituições. O rationale penetra em todas as esferas e majoritariamente pretende ditar as cartas mesmo quando o lusco-fusco, as neblinas da alma ou da realidade moldam o horizonte de nossas intelecções.
É imperioso discernir a razão teórica da prática, a inteligência ut sic da razão. No primeiro caso, cedemos aos rogos da especulação pura, hoje menos vigente do que outrora, ou preferimos infletirmo-nos na ação da qual, segundo Goethe, tudo parece principiar. Inteligência fala de uma perspectiva mais abrangente do que a configurada pela razão. Esta se ajusta mais à exatidão, aquela concerne à amplitude da visão. Até porque engloba em seu bojo a intuição, ou a intelecção como forma de profunda penetração no ser ainda que, por vezes não seja conscientizada por quem a criou. Os filósofos se projetam na história da filosofia mais frequentemente pelos sistemas que geraram. Cabe recordar que muita vez a eles coube o eclodir de intuições geniais cujo influxo suplantou de muito a eventual presença de seus sistemas. A ninguém ocorreria repisar em sua inteireza os sistemas de Descartes, de Leibniz ou de Kant. Contudo, a presença de novas aberturas de ideias ou de métodos lhes vinculou a influência bem acima e mesmo distante da estruturação de teses subordinadas a um princípio que naquele então os legitimava.
Ocorre na epistemologia fenômeno semelhante ao que assinalou o big bang: a atomização do universo parece haver servido de modelo ao advento dos saberes. Da caudal frondosa do conhecimento emergiram milhares de pequenos igarapés científicos que obstruem a corrente relacional entre os campos em que se subdividiram as especialidades cognoscitivas ofertadas como desafio ao ser humano.
Para Abbagnano a filosofia é problematicidade e totalidade. A primeira certamente configura o universo especulativo e normativo do pensar filosófico. As perguntas propostas sugerem o estímulo a nos defrontarmos com um espaço bem mais amplo e fecundo. Inteligência traduz o esforço por abarcar sem medidas tudo o que somos e o que nos cerca, a decifração de mistérios, ao menos como tentativa, a perquirição mesmo geométrica dos seres que nos desafiam a sua compreensão. Não se trata de pretender alçarmo-nos a um plano apto a exibir nossa vitória ante a complexidade que nos circunda e mesmo nos aprisiona. Ler dentro, ou para outros, escolher dentro é o destino da inteligência, sequiosa de penetrar nos lugares aparentemente proibidos pela contingência humana.
Já a totalidade somente poderá idoneamente ser visualizada como totalidade buscada e não alcançada. É apenas uma sinalização para um patamar almejado.
A razão aparenta primar sobre as demais manifestações da rica e diversificada natureza humana. E, no entanto, basta inventariar os fatos à nossa volta e caracterizar o estado permanente de injustiça na vida de homens, instituições e nações para facilmente compreendermos o quão distante estamos de um reino em que a razão plane sobre os homens e lhes assegure um reino de justiça duradouro.
Ocorre que a humanidade se viu a braços com duas hecatombes mundiais as que se seguiriam guerras regionais de alta virulência fazendo letra morta das conquistas presumidas com a Declaração dos Direitos Humanos em 1948. O panorama, infelizmente, é desolador: mesmo depois da majestática Declaração, o que é vemos é um quadro a obstruir o caminho da esperança: “um bilhão e trezentos milhões de pessoas vivem na pobreza”; “perto de 800 milhões de seres humanos não se alimentam suficientemente”.
“As 3 pessoas mais ricas do mundo possuem uma fortuna superior à soma dos produtos internos brutos dos 48 países mais pobres, equivalente a um quarto da totalidade dos Estados do mundo”.
“Segundo as Nações Unidas, para dar a toda a população do globo o acesso às necessidades de base (alimento, água potável, educação, saúde) seria suficiente reservar, sobre as 225 maiores fortunas do mundo, menos de 4% da riqueza acumulada”.
Tal clima gerou uma nova ignorância, resultante precisamente do abandono da racionalidade e da sensibilidade. A qualidade dos homens, de suas obras nos domínios da arte, da religião, da filosofia parece haver cedido ao império da quantidade, a decantada crux philosophorum. Daí à emergência de uma pretensa racionalidade econômica conduziu-nos a viver sob o guante da nova ciência prioritária numa verdadeira ditadura deste campo do saber, cuja importância não estamos a desmerecer, senão que a lhe apontar uma indevida primazia ante a relevância do humanismo e dos valores que encarna.
Vivemos o paradoxo de a uma incremento de conhecimentos que circulam velozmente corresponde o nascimento de uma era, não somente de incertezas, como realçou Gallbraith, mas de uma nova ignorância, ignorância que consistir basilarmente na ausência de coerência do pensar, uma vez que a especialização excessiva vem inviabilizando a formação humana do homem. Antes, abre espaço para uma setorização indesejável, porque desmedida de uma elasticidade gnosiológica. O tecido do conhecimento se esgarçou e tornou impossível qualquer visão compreensiva da realidade. Recorde-se a assertiva judiciosa de Thomas De Koninck: “o que é novo é a autodestruição universalizada da cultura”, que tem por corolário a violência. Pois a alternativa logos/violência é inelutável.
O acelerado desenvolvimento do conhecimento humano ao longo do século XX e a sinalização de que se acentua a tendência a evolver ainda mais rapidamente neste século geram questionamentos mais complexos a atingir o cerne do próprio ser humano e suas faculdades.
A compreensão de sentido pressupõe uma delimitação espacial dos conteúdos cognoscitivos. Daí a classificação das ciências foi uma passo. As chamadas ciências humanas sofreram de forma maiúscula severos juízos de valor quanto a seu estatuto científico. Sociologia, Antropologia, Economia, Psicologia, História e demais ciências humanas se viram enfraquecidas ante a suposta exatidão das ciências havidas como naturais. É importante sublinhar que essas abandonaram o determinismo que lhes tolhia o caminhar. Parece haver chegado o momento de as ciências humanas trilharem a mesma senda. Há, porém, pessimismo por parte de muitos. Até o ser humano vem sendo relegado a certo ostracismo, como se verifica na palavra de Claude Lévy-Strauss: “a finalidade das ciências humanas não é revelar o homem, mas dissolvê-lo”.
Edgar Morin acentua o seu antideterminismo, e inaugura o pensamento complexo. Seu intento: religar os saberes, ou melhor, estruturar uma nova visão do real, fragmentado pela atomização do conhecimento e a especialização do saber. Isto nos conduziu a uma miopia invencível que não nos permite ver o todo que só pode ser visto quando, ao mesmo tempo, as partes comparecem ao debate.
A complexidade instaurada e reconhecida abre as portas a uma compreensão antes vedada ao intelecto graças à pletora de atrações exercidas pelos múltiplos escaninhos do saber.
Frisamos que, após a passagem do mythos ao logos, a Filosofia imperou soberana e dela promanaram as ciências, qual galhos de uma frondosa árvore, para volvermos à imagem cartesiana. A experimentação crescente de múltiplas ciências e os recursos humanos e financeiros postos à disposição das ciências geraram uma massa diuturnamente ampliada de conhecimentos que, por seu turno, propiciou a desintegração dos saberes em partículas a gerar um imenso arquipélago de conhecimentos. As especialidades se multiplicaram e em consequência mais e mais inviabilizaram qualquer tentativa de manter o direcionamento totalizante da filosofia que presidira à unidade, ao menos ideal, dos conhecimentos.
Heidegger nos adverte para a radicalidade presente no irracionalismo e no racionalismo: “o mais inquietante é ainda o processo segundo o qual o racionalismo e o irracionalismo se travam identicamente numa convertibilidade recíproca, de que não somente eles não encontram saída, mas nem querem encontrá-la.”.
É curial concluir-se que o homem, ao se especializar, perdeu a possibilidade de produzir uma Weltanschauung ou, ao menos, afastou para bem longe a perquirição de uma totalidade em sua visão de mundo.
Talvez caiba a certa ideologização da ciência responsabilidade não pequena pelo esgarçamento do tecido científico. Isto porque se fixou em demasia o conceito de ciência em sintonia com a experimentação ou, pelo menos, a suposta exatidão dos resultados auferidos pelas ciências havidas como exatas. Na verdade, melhor fora reconhecer que as tais ciências são antes aproximativas, pois a verdade científica de hoje é logo superada por novos avanços que atônitos contemplamos e, esperançosos, aplaudimos.
A ideologização da ciência, que permeou os séculos XIX e parte do século XX, foi cedendo espaço à emergência de uma física aberta com o advento da física quântica e do princípio de indeterminação de Heisenberg. Os cientistas passaram a encarar com olhos curiosos o universo do mistério e a respeitá-lo. Já Kepler, ainda no século XVII, citado por Marcelo Geiser, havia aconselhado “homem, amplia tua razão, para que possas compreender”.
É um passo a mais na simples explicação dos fenômenos: alcançar o patamar de sua compreensão. É que Kepler perquiria e sondava o universo em obediência a uma visão matemática, havida como perfeita. A ciência aproximaria os homens de Deus. Geiser assente que há uma tradição encontrada em nossos dias em ciência que “mistura razão e espiritualidade”. Albert Einstein finaliza, referindo-se a essa tradição: “a mais profunda emoção que podemos experimentar é inspirada pelo senso do mistério”. “Essa é a emoção fundamental que inspira a verdadeira arte e a verdadeira ciência”.
O distanciamento entre os saberes gera uma terra de ninguém nos interstícios, em que as interfaces não chegam a assegurar a limpidez dos objetos formais ou até materiais entre os novos nichos de saberes emergentes. A perseguição a uma interdisicplinariedade incipiente e desconexa mal encobre as brechas estruturais dos saberes longínquos uns dos outros à espera de supostas sínteses futuras. Sendo certo que a síntese imposta é, segundo Eduardo Portella, um ato discriminatório e mesmo autoritário.
Esforços vem sendo malbaratados em viver epistemologicamente a interdisciplinaridade. Houve mesmo uma famosa publicação, Cahiers de Synthèse, que buscou o almejado objetivo. Reuniam-se os especialistas e, à semelhança do que ocorre em mesas-redondas com marcante frequência, é que as análises dos diversos setores do conhecimento se sucediam sem encontrar os meandros conducentes a uma visão mais ampla do encontro entre os saberes. Melhor fora que os Cahiers recebessem a adequada alcunha de Aahiers d`Analyse. E assim prosseguem as tentativas e, já agora, mais ambiciosas: busca-se atingir o patamar da transdisciplinaridade. Projeto audacioso, longe de haver sido atingido. Cuido mesmo que vivemos os primeiros vagidos de uma fase mais avançada em que pensadores versados em universalidade possam volver aos passos dos grandes humanistas e, assim, nos brindarem com visões onicompreensivas do real. Um sonho? Muito provavelmente.
A grande verdade é a de que ao big bang dos saberes se seguiram desdobramentos epistemológicos que chegaram a criar vazios de conhecimento, autênticos buracos negros a dificultar o caminhar científico e especulativo do homem.
Em consequência, registra-se uma quase impossibilidade de vislumbrar a realidade, assim encoberta pelas miríades de compartimentos científicos que disputam o seu lugar ao sol. Daí talvez o refúgio nas informações, ou mesmo nos informes, o apelo desesperado ao fluir do cotidiano, na perda de perspectiva que deu origem a uma nova ignorância. Esta se patenteia pela insuficiência crítico-reflexiva, sem cuja vigência caminhamos às apalpadelas em que tudo parece enevoar as trilhas gnosiológicas que nos cercam.
Se as ciências, quando mais necessitam dialogar, preferem se isolar, ou, pelo menos, não se aproximar umas das outras, ao primado da ordem sucede o da desordem. É bem de ver que a tal estado é possível sempre que houver à espreita a organização. É que as partículas que compõem um todo complexo contêm os elementos formadores do todo. Pascal já o percebera, ao asseverar: “o conhecimento do todo precisa do conhecimento das partes, que precisam do conhecimento do todo”. Isto é complexidade que se impõe como um genuíno fio de Ariadne.
Aqui e ali se notam esforços isolados em perseguição a uma autêntica interdisciplinaridade. Tentativas já fracassaram, mas alguns pensadores que cultivaram a epistemologia com afinco como Georges Gusdorf, Edgar Morin, Wolfgang Strobl timbraram em resistir à avalanche de uma unificação impossível para cuidar da importância de bem modelar uma convergência epistemológica. Gusdorf andou bem avisado quando, com realismo, traçou as bases de tal encontro epistemológico. E mesmo acenou com a necessidade, adiante, da edificação de uma epistemologia da convergência, em que a diversidade de enfoques dos ninhos dos saberes não constituiria óbice definitivo a uma entente cordiale metodológica apta a sinalizar para um novo caminho para o complexo campo do conhecimento humano. Utopia á parte, o esforço foi meritório e constituiu pelo menos um alerta para as sortidas de especialidades que se querem impor ao homem.
A perplexidade epistemológica vigente favoreceu o fortalecimento das artes, das letras e da espiritualidade. E há quem pressinta no ar uma insinuante sedução da irracionalidade. Hoje, se multiplicam museus, eventos culturais da mais diversificada natureza, pondo em realce designadamente as artes. E nela o classicismo foi perdendo espaço para a ousadia de novos contornos artísticos de complexa praticagem. A modernidade e a pós-modernidade afiaram seus instrumentos de criação e nos oferecem emoções estéticas desenhadas em pranchetas irracionalistas. O tecido cultural ganhou em dinamismo ao se apresentar longe de exigências racionais. O homem perece haver compreendido que o rationale não impediu o advento de novas barbáries no plano político, militar, cultural.
Assim como nas artes, nas religiões igualmente pendeu por gravidade o surgimento de milhões de pequenos grupos a nos aportar bens e serviços que têm mais a ver com o cotidiano simplista da manifestação espiritual do que com a sua robustez.
O anelo por mais arte e o adentrar-se na zona cinzenta do mistério florescem hodiernamente certo descrédito da razão raciocinante. A anemia racional convive com o seu paroxismo, sinalizado pela presença do imperialismo que se vale da globalização como escudo de seu caráter impositivo. A vigência da globalização pressupõe a manutenção das identidades nacionais, da circulação dos valores em vigor nas nações, de que a cultura é expressão maior.
O declínio da razão configurado na diversificação de interesses humanos mais individualizados acentuou o irracionalismo, hoje francamente sedutor. Não há verdades, não há valores duradouros. Tudo é descartável, inclusive o homem. A vertiginosa velocidade das mudanças atesta irrefragavelmente o império do provisório, do mutável e a razão não opera na ausência de referenciais.
O homem acolhe facilmente a mudança como se fora, por si só, garantia de progresso. É apenas um olhar empobrecido de uma realidade complexa, a exigir, mais e mais, um retorno à razão, ou melhor, um retorno à inteligência de braços com categorias da sensibilidade a moldar uma nova era, menos ambiciosa nos resultados e mais rica na pacífica convivência entre homens, instituições e a natureza. Se talvez se imponha uma espécie de ONU para a prevalência do pensamento e das manifestações superiores do espírito, não é menos verdade que cabe aos seres humanos, hic et nunc, a par das verdades alcançadas, a aceitação do mistério que nos envolve e de que colhemos parte expressiva de nossa riqueza pessoal e solidária.
Ao lado da razão, cumpre desvendar o complexo território da espiritualidade. Aqui se entreabre o espaço para atingirmos até o plano místico, bem longe do discurso racional e suas verdades apodíticas. É o elevado patamar da mística que nos atrai e nos fascina. Visto como um “cognitio Dei experimentalis”, a mística nos revela um bom senso superior, como sentencia Henri Bergson, que respira o clima de certa unificação de soluções, ao volver as costas e uma problematização paranóica que acode a muitos espíritos. Expressa o modo humano de revelar uma realidade que nos suplanta e que nos alimenta. É uma experiência transcendental que sinaliza para o que ultrapassa o dia-a-dia de todos nós e, assim, alumia nossos caminhos e nos permite desfrutar da alegria interior sem a qual a vida se estiola.
O escapismo ao racional não se prende necessariamente ao primado do espírito. Este, em sua dimensão, conglomera riqueza sem par. Dai porque cumpre ter presente a palavra de Karl Jaspers: “o irracional é um termo puramente negativo: a matéria com relação à forma geral, o arbitrário por comparação ao ato conforme as leis, o fortuito face ao necessário. O irracional, enquanto negatividade, é conforme os casos um resíduo obscuro, seja um resíduo a rejeitar. O pensamento se esforça por reduzir este resíduo ao mínimo... O irracional não é algo em si, mas enquanto pura negatividade, o limite... do geral”.
Heidegger avança bem mais ao sustentar que “pensar contra a lógica não significa quebrar lanças em favor do ilógico, mas apenas: volver em sua reflexão ao logos e à sua essência nos primórdios do pensamento”.
Há que discernir o irracionalismo da irracionalidade. O primeiro ambiciona direcionar a inteligência a privilegiar tudo o que contraria os códigos lógicos. Já a segunda diz respeito à ampliação do espaço intelectual e afetivo – nos limites scheleriano de simpatia – a fim de melhor captar a diversidade de aspectos da realidade.
Abraçar com ardor as formas distintas de que se reveste a irracionalidade, sem atentar para o espaço racional a ser preservado é expor-se à fragilidade de diretrizes para o viver e o conviver e é ameaçar a consistência existencial sem a qual a vida se estiola, fenece e murcha. O irracional e o racional convivem numa circularidade criativa, garantia de que a complexidade humana se alimenta da tensão dialética entre ambas, condição de possibilidade da riqueza cultural da humanidade.
Há uma inteligibilidade universal sublinhada por Leibniz que alcança níveis superiores aos da racionalidade matemática. Impende resguardar a amplitude da inteligência a envolver a razão e a intuição, por maneira a firmar a dimensão espiritual que lhe serve de coroamento. O espírito caminha em direção à sua incontida busca da verdade, sem oprimir o homem. Antes, iluminando o percurso e o projetando a um patamar do qual se vislumbra o sentido profundo do ser. Não há porque desconsiderar a razão em nome da espiritualidade, nem esta se sentirá diminuída ante a presença fulgurante da razão. Ambas se dão as mãos, respeitando embora os limites respectivos. A irracionalidade não é o termo do processo de crescimento do homem, mas sim a consciência de que existem instâncias não abrangidas pela racionalidade e, destarte, prefiguram momentos de enriquecimento humano por vias distintas da lógica e da matemática. A mathesis universalis preconizada por Descartes não mais encontra guarida em nossos dias ante o progresso estupendo das ciências em geral e das ciências humanas em particular, hoje em perseguição do ajuste entre os planos do saber ainda parcialmente segregados.
A grandeza humana provém da primazia do espírito, de sua vigência em nossos atos e na consciência de que há uma centelha superior que nos propicia o privilégio que reconhecemos em certos instantes em que queremos o destino que nos cabe como se nós mesmos o houvéssemos escolhido, em que transformamos a nossa vocação em destino.
Vivemos um período tisnado pela redução do espaço subjetivo. A objetividade é a prioridade. O sujeito se vê cercado pela linguagem fria de um realismo predatório do mundo interior, da intimidade de si para consigo e daí para o amplexo radioso do encontro com o outro. A intersujetividade é condição de possibilidade para o autoconhecimento e para o reconhecimento da outra subjetividade que participa decisivamente da construção do nosso eu.
Atrás deste painel negativo se situam as críticas acerbas contra o romantismo, quando o correto seria o esquecimento de um romantismo de segunda mão que infla a baixa literatura de autoajuda.
A recuperação da subjetividade fala bem alto da imersão no universo da irracionalidade, da firme crença de que em nós habita algo que prospectivamente nos suplanta e ao mesmo tempo sinaliza para o Soi pur, para a Presença Total que nos envolve e que dá sentido aos nossos passos.
Mais fácil se torna captar o segredo recôndito de cada ser humano e sua posição no cosmo. Não há que alijar a irracionalidade, mas sim conceder-lhe foros de cidadania no complexo e diversificado mundo que habitamos, com inteligência e coração, ambos a serviço da causa maior de nosso aprimoramento e do enriquecimento de quantos nos circundam.
Conclusão
A crítica à razão implica na necessidade de lhe explicar o sentido. Critica-se o discurso racional extremado, a oração impositiva e desrespeitosa do outro. Denuncia-se a deusa razão que se arroga poderes divinatórios. Neste sentido, e só neste, é que desenhamos o perfil autêntico da irracionalidade, como suprimento das deficiências da razão instrumental. Assim, a primazia da razão remanesce e firma o seu império. É quando cabe entronizar a irracionalidade no horizonte humano como via de acesso a tudo o que suplanta os limites da razão confortavelmente instalada, com foros de plena cidadania. O que nada tem a ver com uma perigosa tentação de ceder espaço ao irracionalismo como sistema especulativo.
Razão e espiritualidade, razão e irracionalidade se dão as mãos nesta faina de construção de cada ser humano, consolidação da intimidade da pessoa, prenúncio de sua auto-transcendência.
Conferência proferida no Ciclo “Razão e Espiritualidade” da Academia Brasileira de Letras em 29 de agosto de 2006.
"O Posto do Homem no Cosmos" Uma recensão
Ao longo de muitas décadas, Hélio Jaguaribe tem sido entre nós uma presença intelectual da melhor qualidade. Vêmo-lo à frente de projetos culturais de envergadura, suas preleções transcenderam o espaço geográfico nacional e ganharam dimensão internacional, de que promanaram prêmios e títulos a enriquecer a sua biografia e a nossa cultura.
Desde cedo, ainda aluno na PUC de nossa cidade, Hélio encantava os seus colegas e, juntamente, com Candido Mendes, já dava a medida do que a sua geração iria representar para a afirmação teórica e prática de um pugilo de jovens que entendeu chegada a hora de pensar o país e o mundo infindo que lhes aguçava a curiosidade intelectual.
O pensador carioca apresenta uma sólida e diversificada formação cultural e uma amplitude de visão, a par de uma lhaneza no trato, própria dos espíritos de escol. Agora, após madura reflexão, Jaguaribe retorna a uma obra de Max Scheler – O posto do homem no cosmos” – para reencetar o caminho percorrido pelo filósofo alemão, visando a lhe atualizar o enredo ante o extraordinário progresso de que somos beneficiários diretos e, em alguns aspectos, vítimas indefesas.
Pensador e promotor de cultura, Hélio Jaguaribe consegue aliar a seriedade de seu pensar à clareza das ideias, fiel a um de seus mestres, Ortega y Gasset. E, hoje, nos apresenta um painel do estágio atual do conhecimento científico visando a uma nova antropologia filosófica, a entremostrar um esboço de uma possível Weltanschuung. É um desafio de monta enfrentado com fervor pelo pensador carioca, que sabe conjugar análises oriundas de modernos métodos científicos com avaliações epistemológicas e mesmo ontológicas de difícil praticagem.
A obra percorre as fases do conhecimento científico, a trilha filosófica, cuida de balizar ainda os passos do homem à luz das ciências sociais e humanas. É uma mini-enciclopédia dos saberes à nossa disposição, certamente a merecer o registro adequado da intelligentzia. E constitui uma original fenomenologia da era vigente.
A tarefa com que nos brindou de apreciar o opus magnum se reveste de óbice apreciável, pela abrangência extrema que apresenta e, dada à escassez de tempo de que dispus. Nada que não pudesse ser superado pela honra e o prazer de integrar esta mesa-redonda e de aqui tecer algumas breves considerações.
Delimitei meus comentários a aspectos mais ajustados ao meu itinerário, para não pervadir esferas científico-tecnológicas estranhas ao mundo em que cuidei de circular prioritariamente.
Cabe-me elogiar a coragem do autor do novo “O posto do homem no cosmo”, título da obra com que Max Scheler abriu as comportas de uma rica visão antropológica. O pequeno grande livro foi a ante-sala de obra de maior fôlego que a vida, ceifada prematuramente, não lhe permitiu elaborar. É sabido que o filósofo alemão conciliava hábitos boêmios com a caudal especulativa que fluía de seu pensar altamente criativo. Assim, infelizmente, se perderam muitos escritos seus, pois tinha o costume de redigir escritos, muita vez, em bares, acolitado ou não por alunos sequiosos de lhe acompanhar o caminhar. O filósofo atravessava as noites escrevendo e, pela manhã, já fatigado, se dirigia à universidade para proferir suas lições imortais e, lamentavelmente, deixava os papeis plenos de talento nas mesas vazias e, destarte, se perderam provavelmente joias da literatura filosófica.
Foi este o filósofo a merecer as preferências de Helio Jaguaribe em seu afã de lhe reescrever a obra que abriria uma nova estrada do pensar filosófico.
O estudo se desenvolve à luz das conquistas das múltiplas ciências algumas das quais havidas como exatas e avança em direção aos desafios pertinentes à indagação filosófica. No fundo, as assertivas de cunho especulativo pendem de raciocínios vinculados medularmente ao estágio dos saberes científicos de diversa natureza. É sabido que a filosofia, ora se avizinha da ciência, ora propende para as artes. Daí decorre a pretensão a um rigorismo ou a imprecisão e abertura do espírito e mesmo a certo convite ao irracionalismo, ou melhor, a um assistematismo frequente em algumas correntes de pensamento. Assim se verifica em casos como o de Kierkegaard, Nietzsche, Pascal. A razão neles está presente, mas não domina o seu pensar filosófico. E nem por isso cabe alijá-los da filosofia.
Para proceder a alguns comentários à opulenta obra de Hélio Jaguaribe, cumpre-nos recordar, brevemente, o livro-inspirador de seu mais recente e relevante labor especulativo.
Desde logo, Max Scheler vê o homem fora da órbita natural a se perguntar sobre o lugar que lhe compete ocupar. O filósofo alemão de pronto sustenta que “o mundo, antes de nos ser dado como objeto de conhecimento, nos é certamente dado em primeiro lugar como resistência à nossa ação prática”. As forças de se sustentar no mundo “deviam preceder historicamente todos os conhecimentos ou ensaios de conhecimento de natureza metafísica, orientada principalmente pela verdade”. Por aí já se observa o passo scheleriano de reconhecimento de um espaço nobre do pensar ao qual cabe o epíteto de metafísica. E Scheler rejeita uma oposição dinâmica e uma hostilidade comum entre vida e espírito e prepara o caminho para uma trilha especulativa menos angélica do que a seguida pela tradição metafísica. Busca encontrar fundamento na evolução da ciência para a projeção, no humano, de suas virtualidades recônditas. É uma abertura para um patamar mais elevado de visão do ser humano.
A obra de Helio Jaguaribe é um corte longitudinal nos avanços significativos da ciência atual e um relato da evolução da filosofia em suas manifestações mais expressivas ao longo dos séculos. É obra de fôlego a merecer encômios de quantos se abalançam à tarefa de perquirir e sondar os desafios lançados à mente do homem hodierno.
Jaguaribe nos apresenta um gigantesco mosaico que abrange as cosmologias, desde a antiguidade, a evolução mais recente dos avanços científicos, uma lúcida fenomenologia da crise da pós-modernidade. Tudo lastreado em pesquisa acurada que inclui uma verdadeira mini-história da filosofia. É trabalho de alto coturno a ser meditado.
O eixo do trabalho se refere ao homem como “animal transcendente”, que “dispõe de um extraordinário poder de inovação. Por outro lado, submetido à necessidade, para dar sentido à sua efêmera existência e à sua inserção em um cosmos destituído de qualquer sentido – embora portador da dimensão anti-entrópica de transimanência – o homem é conduzido, por um egoísmo transcendente, a superar o mero atendimento de suas demandas psicofísicas, por atos dotados de superior significação social, cultural ou ética”.
Pinçamos alguns aspectos no imenso cipoal de teses e hipóteses propostas. O fulcro do livro é a ideia de que o estágio atual da ciência autoriza a ilação de que o homem é um produto de um eventual passo evolutivo oriundo da natureza. O autor não deixa de apontar peculiaridades humanas, mas insiste em que elas não obstam a que o homem seja destituído de finalidade.
Do fisiológico para o psicológico, tudo promanou da evolução espontânea.
Hélio Jaguaribe empreende sua caminhada a partir de uma concepção que sustenta: “na medida em que o pensamento filosófico nas presentes condições do conhecimento biopsicológico conduz ao reconhecimento de que o homem não dispõe de uma substância espiritual, que seria a alma, mas se identifica, integralmente, com seu corpo, a resposta das religiões fica totalmente invalidada”. Suas teses revolvem, de modo particular, os tecidos da epistemologia, da antropologia filosófica e da teologia natural.
Cumpre preliminarmente sublinhar que há atividades humanas que não encontram explicação nos moldes de um mero processo natural de cunho evolutivo. O homem propende a ansiar por fins que de muito suplantam os limites biopsíquicos em que se entende emparedá-lo. Os planos estético, ético e religioso não se adstringem ao domínio simplesmente conectado e dependente do potencial de uma consciência emergente da evolução larvar proposta por conclusões científicas.
Há um risco em acolher profecias como a de Ernest Renan no século XIX: “mais alguns anos e teremos descoberto o segredo do universo”;
Em sentido oposto, o físico Alfred Kastler assevera que “a ciência não recusa nada de Deus”; É forte a tentação de incidir no ateísmo, mas Claude Lévy-Strauss, em boa hora afirmou: “um ateísmo que se justifica sobre bases científicas não é sustentável, porque ele implicaria que a ciência é capaz de responder a todas as questões. Evidentemente ela não o é e não o será jamais”.
Edgar Morin: “não se pode explicar tudo, salvo uma dimensão essencial em todas as coisas. Tenho o sentido profundo do mistério”.
São Gregório de Nazianzo: “Tu não es um único ser, tu não es seu conjunto; tu es todos os nomes e como te nomear eu, Tu o único que não se pode nomear?”.
Astrônomo Charles Fehrenbach: “è rigorosamente certo, atualmente, que o universo está em expansão. Logo houve um começo”.
Pierre Paul Grasset: “em que se tornou o homem? A consciência refletida do universo”.
Heidegger: “não há inimigo maior para o pensamento do que a razão”.
Na verdade, a ciência tem consciência de suas limitações, de que não lhe cabe o avanço pretendido em direção ao mais-ser do homem, ao estágio superior da pessoa como algo perfectissimum in tota natura. Já no Fedon, Platão nos aponta as aspirações superiores do ser humano como sinal inequívoco da presença de um princípio superior ao domínio vegetativo e animal. Ao longo dos séculos, seria ocioso recordar, enfileram-se pensadores de grade envergadura a nos acenar com a preeminência, no homem, de um principio acima dos reinos inferiores.
De mais a mais, não se pode negar a cadeia de causalidade na órbita dos seres, e ainda os chamados graus de ser. E o axioma ex nihil nihil fit permanece válido, na medida em que se compreenda o alcance da universal inteligibilidade de que cuidou com proficiência Leibniz.
O excesso de zelo em prol da razão raciocinante assinala uma tendência capaz de coartar uma visão onicompreensiva do real. Impende abrir espaço para a inteligência em sua acepção mais ampla, a que se adicionarão as demais potencias do eu, designadamente a sensibilidade em todos os seus graus. Cabe aqui recordar o citado Max Scheler quando nos fala da intencionalidade emocional. Ignorá-lo fora cingir e muito o espaço criativo das artes, das letras, das filosofias e das religiões, uma constante na vida de homens e das culturas e civilizações que edificou. A razão que se quer impor em todos os escaninhos do real, visando a lhe captar a essência, acaba por asfixiá-lo e malbaratar esforços genuínos de perquirição de uma busca de sentido.
Pinço um exemplo para significar a complexidade em lidar com problemas fronteiriços entre esferas do conhecimento separados por objetos e métodos, além de planos segregados por abissal distância. Discute-se hoje com grau apreciável de entusiasmo o criacionismo e o evolucionismo. E cuida-se que a prudência deveria compelir-nos a resguardar a assertiva e em torno dela mantermos o sentido de que se reveste num patamar de eternidade. que proceder a uma opção radical. Contudo, quando lemos que Deus creavit omnia simul, não devemos inclinar-nos como a um dogma. A criação simultânea é como tal afiançada por força da impossibilidade de verbalizá-la de outra maneira. Isto porque a criação, sub specie aeternitatis nos força a desdenhar do tempo e tentarmos assimilar as finas ondas oriundas de um nível em si inacessível. Assim, podemos falar de uma verdade criacionista, sem em nada desmerecer o evolucionismo, que pervade a órbita contingente e que a ciência hodierna lastreia. Aqui, sim, estamos a viver e respirar a temporalidade. Mas qual a relação entre as duas dimensões, a eternidade e a temporalidade e como funcionam? Não há resposta, uma vez que as potências do eu não nos aquinhoaram com dotes cognoscitivos infindos, aptos a desnudar caminhos com os quais não podemos ostentar familiaridades.
O texto de Hélio percorre com pertinácia as fases evolutivas do conhecimento para concluir pela caminhada dos seres em sua escala crescente por maneira a possibilitar o advento do homem como simples decorrência de um processo natural de evolução. Isto ainda que as etapas longínquas não contemplassem em si tal possibilismo.
A tese se nos afigura defensável, desde que repisemos a teoria das rationes seminales de Santo Agostinho, já sustentada pelos estoicos (logoi spermatikoi) Segundo o genial bispo de Hipona, no ato criador Deus plantou tais sementes ou germes de vida, delimitando cada categoria em seu nível próprio. Seria um projeto informatizado e performático de largo espectro que já conteria todos os elementos da espécie própria de cada ser. Para a ascensão de um grau para outro já teríamos de recorrer aos evolucionistas. O que diferencia Agostinho de Darwin. Mas, no fundo, a questão primacial se manteria indene a objeções de fundo.
Neste ponto, Hélio se refere ao determinismo para ponderar que “o rígido determinismo universal, observado por Newton e desdobrado pela física posteriormente, revelou-se somente válido para os fenômenos de caráter macro, sendo substituído, para fenômenos subatômicos, por uma causalidade probabilística, de caráter estocástico”.
É bem de ver que o relato do Gênese não guarda sentido literal e sim alegórico.
Devemos aqui recordar a afirmação pertinente de que “se existe alguma coisa hoje é necessário de que desde sempre tenha existido algo, porque se, num dado instante, não existisse nada, o nada ficaria nada para sempre”. Assim Bossuet de forma didática nos fala da impossibilidade de um mundo emergido espontaneamente ou até mesmo eterno. Isto porque nenhum ser pode ser causa sui. Há que recorrer a um Ser que tenha em si mesmo a razão de seu existir, que seja um Ipsum Esse subsistens, na expressão clássica, um ser absoluto, vale dizer, sem depender de qualquer ser para existir (solutus ab aliqua re).
Cingirmo-nos às categorias espaçotemporais, que cientificamente não mais são vistas em seu caráter absoluto, fora raciocinar mais além dos limites da própria razão e perder a riqueza dos enigmas e dos mistérios que nos espreitam e dos quais pende expressiva parcela da riqueza com que se aninham os nichos mais criativos oriundos do espírito humano. De resto, a inteligência não é apenas razão more geometrico. Conglomera as intuições, as intelecções, que penetram fundo no porvir do cognoscível e nos abrem espaços do pensar que desvelam o ser. Nada mais fácil do que se negar a metafísica, mas para fazê-lo, desde Kant se repisa, impõe-se fazer metafísica. E Montaigne já nos advertia, et nous voilà au rouet...
É certo que Deus suplanta as franjas do conhecimento acadêmico, sistematizado, mas há que discernir a teologia negativa da positiva. A teologia ut sic intenta perquirir o mistério de Deus. Afiança-lhe a existência, mas nada pode dizer de sua natureza, pois seria alcandorar-se ao pináculo do Ser com a força de uma razão tíbia e limitada. Não há como pretender dar o grande salto, lastreando-se unicamente na racionalidade. Ela afaga timidamente os limites do Absoluto, mas n´Ele não consegue penetrar. De tal modo em relação a Deus há que fugir das categorias, que Jean-Luc Marion nos propõe um Deus sem ser (Dieu sans l´être).
O argumento ontológico tem íntima correlação com o cogito, porque este descobre a minha própria existência no ato pelo qual eu dou a mim mesmo a existência. Portanto, é o ser do eu enquanto reside no ato mesmo do meu pensamento, e não uma ideia de eu a fundamentar um idealismo subjetivo, o que traduz claramente o sentido do cogito cartesiano. No que tange, porém, ao argumento ontológico, diz Lavelle que sua “vis probandi” reside no fato de que “a infinidade e a perfeição da ideia não tem sentido senão como uma perfeição e uma infinidade em ato”. “É que a ideia de infinito era já o cogito infinito em ato, de que é necessário por não apenas a possibilidade, mas a existência para sustentar em mim a passagem, no ato do pensamento, da possibilidade à existência”.
As considerações anteriores, vinculando o argumento ontológico ao cogito, acabam por concluir que o argumento ontológico é o verdadeiro cogito divino. Lavelle claramente o afirma: “o argumento ontológico é o cogito, se se pode dizer, na esfera de Deus”. Em outras palavras, se é lícita a passagem do pensamento à existência do eu, com muito mais razão o será quando se tratar de Deus. Estamos em face de uma argumento a fortiori. Eis o sentido da fórmula cartesiana: eu penso, logo Deus existe.
Este argumento será melhor compreendido se nos reportarmos ao tema lavelliano da adequação do ser e da ideia de ser. Inquestionavelmente, há uma desproporção entre a ideia e a coisa. As ideias gerais, por assim dizer, apresentam um excesso de potência que lhes permite transbordar de seu objeto. No entanto, encontramos uma ideia – a ideia de ser – que tem um valor absoluto e é a única ideia necessariamente adequada ao seu objeto.
“Não há nada no ser que a ideia de ser não contenha, nem nada na ideia do ser que o ser não englobe”, assevera Lavelle. Por esta razão, o argumento ontológico atesta uma aguda consciência da identidade do ser e de sua ideia. É através do argumento ontológico, pois, que se compreende melhor a identidade da ideia como a potência infinita da afirmação.
– “O caráter próprio da ideia de Deus é aquele de não ser em algum grau uma ideia-objeto, mas apenas uma ideia-fonte, de modo que, longe de ser subordinada... ao eu que a pensa, exige que o eu se subordine a essa, pois dela traz a atividade mesma sem a qual não poderia nem pensar, nem agir” (De l´Acte, pág. 231-239, ed. 1947, Aubier).
Descartes: “de cela seul que j´existe, et que l´idée d´un être souverainement parfait (c´est-à-dire Dieu) est en moi, l´existence de Dieu est três evidemment demontrée”.
AS CINCO VIAS DE SÃO TOMÁS DE AQUINO
São clássicas e assim se alinham:
1. movimento – omne quod movetur ab alio movetur
2. concatenação das causas
3. contingência
4. graus de perfeição das criaturas
5. ordem universal
Rejeitada a via acima, resta recorrer ao Deus absconditus de Lutero – é a emergência de um robusto fideísmo. Deus nos vem pela graça arbitrariamente ofertada aos homens.
“A Filosofia tende a conceber a Deus como o Absoluto e a despojá-lo de todos aqueles atributos que têm uma aparência de ser transposições imediatas de atitudes tipicamente humanas à esfera do eterno e do imutável”.
Neste ponto há que realçar a nova encíclica, a primeira, de Bento XVI “Deus caritas est. E recordar Jean Guitton: “o amor é uma forma de vida que une conhecer e querer”.
Volvendo ao tema de uma eventual transimanência, cabe repensar a ideia de ser e o Ser, compreendido como Presença Total. É quando surgem os conceitos de analogia e univocidade. A referência ao Ser nos leva a discernir a univocidade e a analogia. A primeira como a compreensão da unidade e universalidade do Ser, indissociável de seu caráter absoluto. O mundo da contingência pressupõe semelhanças e não uma unidade solidamente ancorada no Absoluto. Daí se poder falar em uma univocidade não-imanente do Ser total, na esteira de Nicolas Balthasar, renomado mestre de Louvain. Assim, sustentar a transimanência constitui uma contradição inextricável pois nos levaria fatalmente a um impasse epistemológico e ontológico, por estarmos lidando com dois planos que não se mesclam.
É bom repisar que a filosofia é, antes de tudo, uma filosofia do ser. Pensar arbitrariamente numa anterioridade do sujeito ou do objeto é desconhecer a posição do ser como traço de união e ponto de convergência dos conceitos que fragmentariamente multiplicam sua unidade inicial. A primazia é, aliás, do SER, não há assim uma passagem dos seres ao ser, como se o ser pudesse nascer. O Ser resulta de uma experiência pura. O Ser não tem fonte, nem fim. O Ser é contemporâneo de todas as formas de que se pode revestir.
Além da unidade e da universalidade há que sublinhar a univocidade do ser. É a univocidade na escala do ser que funda a analogia na escala da consciência ou da coisa.
Helio nos fala de uma transimanência. Se bem entendi ouso preferir a expressão univocidade não imanente do ser total. Explico-me: o Ser está na origem dos seres que dele recebem a sua criação e preservação. Ele é idêntico a si mesmo, mas esparge seus raios de luz sobre toda a criação.
Ai entra a analogia dos seres para com o ser e a participação de que cuidou com proficiência Platão. Julgo que assim se preservam os dois planos em coexistência e em suas dimensões diversas do que chamamos tempo, que não tem sentido aplicado ao Ser. A própria noção de transimanência é um contradictio in terminis, visto que a imanência nos fala da permanência num estado e o trans nos fala de sua superação. No caso, a transimanência se daria no mundo, no universo que se justificaria a si mesmo, sem recurso a qualquer fonte de sua explicação inteligível.
É claro que há sempre espaço para o agnosticismo, traduzido como um vazio capaz de explicar a origem dos seres, a carência de uma inteligibilidade manifesta na ordem cósmica. Mas a certeza da ausência de um Ser, agora substituído por um universo autoexplicável, se nos afigura um passo assaz audacioso que o pensamento tem dificuldade de acolher como fora dos parâmetros da humana razão, tão apregoada como a fonte da compreensão e do sentido de que os seres se revestem.
Em obediência ao respeito devido à razão e à inteligência em seu sentido amplo e adicionando-se o papel da sensibilidade superior estaremos abrindo picadas para a onicompreensão dos seres e de seus papéis no complexo universo que buscamos entender e, se possível, nele penetrar.
Há que falar – a se admitir a riqueza do universo simbólico em suas manifestações – de experiência que suplantam categoricamente os esquemas em que transitamos cotidianamente. Refiro-me ao mundo místico de que a modernidade parecia inteiramente afastado, quando na verdade podemos apontar exemplos edificantes como os de Simone Weil, Edith Stein, Maximiliano Kolbe, Peter Wust e muitos outros que se adentraram na vivência espiritual e alargaram os limites de uma mais profunda compreensão dos seres no âmbito da subjetividade e mesmo na esfera objetiva. Sobre o assunto vale recordar a portentosa obra de Henri Bérgson “Les deux sources de la morale et de la religion”, editada após vinte e cinco anos de reflexões. A leitura e meditação dos grandes místicos cristãos (com ênfase na mística espanhola) conduziu maviosamente o filósofo francês a deixar em testamento sua adesão ao catolicismo.
Outro domínio de experiências humanas é a logoterapia elaborada por Viktor Frankl e retratada em sua vida em três campos de concentração. Lá o psicanalista austríaco pode cinzelar o perfil da autotranscendência do homem.
Pesquisa realizada por Christian Chabanis sobre a existência ou inexistência de Deus buscou ouvir pessoas de diversas procedências e profissões. Uma observação chamou a atenção do escritor que se ocupou do estudo: aqueles que não admitiram a existência de Deus respondiam “não, Ele não existe, mas...” e ai se sucediam explicações que no caso inverso não foram detectadas
Nos dois últimos séculos houve mudança no pensamento a respeito de Deus. Com Schlegel nasceu o desejo revolucionário de realizar o plano de Deus”- efeito cumulativo da cultura iluminista e da romântica. É o abandono da especulação filosófica pura – o an sit? se viu substituído pelo quid sit. O obstáculo se impõe: a impossibilidade de se atingir a essência divina. Busca-se um Deus mais perto dos homens. Depois, é a volta da especulação abandonada anteriormente e mais tarde o imanentismo moderno.
Mas a tradição não é simplesmente repetida, mas modernizada: a categoria do pensar e o fundamento ontológico deste superam a autoridade do formulador.
O gênio de Wittgenstein abriu a vereda de uma filosofia como análise linguística que se constitui como doutrina, como atividade que revela a correspondência ou não entre os fatos e as imagens proposicionais. Fora daí tudo é reduzido a pseudoproposições, sem significado empírico. Toda a filosofia tradicional se dissolve ante tal postura e, assim, tudo o que respeita a existência de Deus...Daí a única atitude a respeito de Deus é o SILÊNCIO!!! Em outro momento Wittgenstein assente que a realidade é uma ilha cercada de mistério por todos os lados, e é o mistério que o atrai.
Acrescente-se o niilismo de Nietzsche, a desconstrução em curso com Jacques Derrida à frente, as diversas formas de neomarxismo e teremos de repensar o pensamento? Sim e não. Pois o dinamismo da cultura se assegura precisamente com a superação parcial de teses, uma vez que libri ex libris. Ainda que nos pareça totalmente díspar uma corrente de outras a busca em profundidade nos evidencia as interligações invisíveis que permeiam escolas, sistemas filosóficos. E é neste ponto que nos cumpre sempre viver o presente com olhos no passado e esperança no futuro.
CONCLUSÃO
A obra de Helio Jaguaribe, hoje lançada para meditação, é altamente meritória. Percorre com pertinácia o superior escopo de amealhar os conhecimentos que formam o arcabouço da ciência contemporânea e os projeta no domínio filosófico, por maneira a buscar uma sintonia entre os dois planos. Neste balé de amplo espectro, Hélio passeia pelo micro e pelo macrocosmos, elaborando a sua sinfonia de puro talento. Desfilam ante nossos olhos curiosos Heisenberg, Einstein, Bohr, Max Planck, as conquistas do Hubble e um elenco dos grandes filósofos, dentre os quais creio poder destacar Kant. Persegue com denodado esforço harmonizar as ciências e a filosofia, fazendo desta um consectário natural daquelas. Seu intento denota superior discernimento das duas esferas e deve ser analisado com toda a atenção. Somente uma mente lúcida e penetrante poderia meter a ombros tal empreitada. Enfrentar o desafio de inequívoca magnitude reforça o convite franqueado aos intelectuais de todos os matizes para que tentem experimentar tais caminhos a fim de que possam contribuir para o aprimoramento da cultura e a própria realização pessoal. Só por esta razão mereceria elogios o pensador carioca que se alteia entre os mais brilhantes do país, com franco e merecido reconhecimento, aqui e bem além de nossas fronteiras.
Discurso de recepção de Nélida Piñon na Academia Brasileira de Filosofia
Ao receber o convite de Nélida Piñon para recepcioná-la nesta Academia de Filosofia, dois sentimentos me dominaram o espírito, o da honra em saudar uma grande dama da literatura contemporânea, e o da satisfação em penetrar na densa floresta de seus escritos, quando me defrontei com o prazer de os ler ou de reler.
Nélida Piñon é nome estelar no firmamento literário brasileiro, com significativa presença internacional. A repercussão de suas obras é consectário natural de seu estilo marcado por originalidade inquestionável, e servida pela majestade das metáforas criativas que constituem como que um leit motiv de seu consistente labor literário. A riqueza de seu modo de ser, que se reflete em seus escritos, promana de um hibridismo étnico e cultural que lhe povoa o espaço interior, prenhe de busca de um lugar inédito no universo da escrita. Uma simples conversa com Nélida sinaliza, ora para uma expressão feliz, ora para uma comparação fecunda, ora para uma ideia nova. Não há monotonia em seus textos de ficção ou em seus pronunciamentos ao ensejo de solenidades - e que se contam às dúzias – ou em conversas leves a lhe vincar o percurso luminoso em palcos que se oferecem de par em par a quem mantém domínio de elevado corte vocabular.
Nélida é escritora de duas pátrias – a Galiza e o Brasil, afinal fundidas numa só. A Galiza povoada de lendas explica a fecundidade do repositório de estórias e de episódios que parece fundirem fatos e partículas de memória fecunda. A narrativa de Nélida diz muito da origem céltica de sua família.
Ela própria nos expõe seu nervo cultural: ”sou brasileira recente”. Em seus devaneios, a escritora chega a imaginar o próprio desembarque na Praça Mauá, no início, quando aqui aportaram os seus avós, com o ímpeto conatural aos imigrantes. Nélida sente que a memória lhe falta para desenhar o perfil da terra, estrangeira para seus avós, e que assim não fixou o seu almoxarifado de lembranças da terra da promissão então inaugurada por seus ascendentes. Não houve, nem há hoje qualquer resquício de um processo de legitimação da nacionalidade: Nélida é nossa e, por isso, dela não abrimos mão. Ela integra o novo rico filão cultural, dos mais expressivos em nossa galeria de imortais da cultura, do eterno agora que ela vive e sorve com a sofreguidão inerente aos espíritos inundados de criatividade e de comunicação. Sua riqueza interior lhe permite acolher e ser acolhida na espontaneidade de um ser para conviver, cinzelar encontros e reencontros. A muitas vezes acadêmica que hoje recebemos nesta novel Academia Brasileira de Filosofia por sua exuberante obra risca o mundo sideral porque nela se percebe a variedade de influxos e de construções oriundas de certo surrealismo. Também se podem detectar aproximações à fenomenologia existencial, uma vez que Nélida jamais se aparta da vivência concreta de cunho intersubjetivo.
Ao adentrar esta Casa de filósofos, Nélida lhe acrescenta novo sopro de vida e mesmo de glória. Assim foi quando de seu ingresso na Academia Brasileira de Letras e ao ensejo de sua exemplar presidência da instituição mítica de nossa cultura. Vamos rebobinar o filme desta morada cultural em que luziram e mesmo até pontificaram alguns dentre os mais talentosos homens de letras do País.
Corria o ano da graça de 1976. Ao tempo, a Academia Brasileira de Letras ainda não se beneficiava da presença de escritoras. O grande poeta Carlos Drummond de Andrade, num assomo de rara inspiração, estugou o passo da história, e vislumbrou o ano do centenário da Casa de Machado de Assis. Imaginou que o timão ainda estivesse confiado ao ínclito presidente Austregésilo de Athayde. Então, com a luz exclusiva dos poetas, sentenciou: “no ano de centenário da ABL, o presidente Athayde deveria durante dez minutos confiar a presidência a uma escritora”.
À época, o poeta explicitava um sentimento cavalheiresco, sem que lhe fosse possível nem de longe imaginar a esplendorosa realidade do centenário. O imaginário correu célere ao encontro da senda do real.
Hoje, a Academia Brasileira de Letras se ajusta à modernidade e desmente a tese de que a tradição é refratária ao progresso. Fiel às profundas raízes da nossa cultura, a centenária instituição inovou e preludiou os passos da sociedade brasileira, ao eleger, em 1997, para a sua presidência, a brilhante acadêmica que então acolhemos. Crescentemente, a nossa sociedade vai abrindo espaços à atuação da mulher, que emerge, no findar do século XX, com o ímpeto criativo e sensível a humanizar a vida do país.
Nélida Piñon é mulher exuberantemente portadora das virtudes que ornam a alma feminina, na generosidade dos atos de entrega à sua vocação e na sensibilidade do perene reconhecimento e acolhida das diferenças. Sua acuidade atesta a presença do sonho que se faz realidade e da realidade que se transmuda em sonho, nesta tensão dialética entre ser e aparecer que constitui o imperativo dinâmico do ser a caminho de seu dever/ser.
Professora, jornalista, escritora, Nélida Piñon inaugurou a disciplina Criação Literária em nossas plagas e ampliou sua atuação magisterial em diversas universidades dos Estados Unidos e do México, na cátedra de Literatura Brasileira.
É grande, quase incomensurável, o número de prêmios literários com que foi aquinhoada e não menor o elenco de suas publicações, que se espraiam pelo mundo, por mais de 20 países, em traduções de uma dezena de línguas, consolidando o prestígio literário do Brasil no plano internacional.
No centenário da Academia Brasileira de Letras, quiseram os deuses que uma rainha das letras lhe dirigisse os destinos. E os deuses não são apenas eternos. São também infalíveis.
Escritores de nomeada, periódicos literários, jornais de circulação seletiva vem ornamentando suas colunas com palavras encomiásticas à grande dama de nossas letras. Assim, o New York of Books aponta Nélida como “a maior escritora brasileira”.
“A imaginação de Nélida a coloca na categoria de gênio” é a opinião do periódico Publishers Weekly.
Um dos magnos nomes da literatura latino-americana, Carlos Fuentes, enriquece os comentários à nossa confreira, ao assentir: “a magia de Nélida Piñon consiste em aliar imaginação e compaixão, para dar a seus personagens e seus leitores uma pele com temperatura igual à deles”.
O saudoso Celso Furtado com precisão obtemperou: “pelas mãos firmes de Nélida, atrevemo-nos a enfrentar o desconforto da paixão de inventar, conscientes do preço a pagar pela inexcedível liberdade de criar”.
Reconhecidamente severo em suas avaliações culturais, o jornal parisiense Le Monde assinala que “Nélida Piñon aparece, sem contestação, como um dos maiores temperamentos da cultura brasileira, não hesitando jamais em se engajar em todas as formas de luta para consolidar sua originalidade”.
Na New York Times Books Review, colhe-se o comentário judicioso: “Nélida Piñon fez de sua república não apenas aqueles de uma família, mas de todo o Brasil e talvez de toda a América Latina”.
Razão assiste a Giovanni Pontiero ao ponderar que “críticos familiarizados com a moderna literatura brasileira podem asseverar que a Nélida Piñon falta a linguagem do último Guimarães Rosa ou a coerência temática e a consistência de Clarice a quem ela se assemelha em seus escritos. Mas o talento criativo de Nélida Piñon está fora de questão e os fios condutores da imaginação pelos quais ela surfa carregam uma refrescante nota de ironia e de otimismo subentendido.”
O crítico Luiz Costa Lima discute a questão da repressão ao domínio da ficção exercido pela razão como detentora da verdade e impregnada pelo discurso teológico ou filosófico. Em suas palavras, “isto levou a uma posição subalterna da poesia, que ele chamou de discurso do fingimento. Assim, a razão moderna exerce um veto à ficção”.
Talvez este quadro sirva para configurar o universo literário de Nélida. Havendo haurido uma severa educação religiosa em escolas e institutos confessionais, Nelida policiou sua obra de tal impacto primacial, rompendo aparentemente com a tradição que lhe inspirou os primeiros passos; a seguir navegou nas águas borrascosas em que o entrechoque da fé original e os reclamos da imperfeição inerente à condição humana a exercerem os seus direitos de cidadania passaram a exigir o seu lugar ao sol. E, afinal, pontificou em numerosas criações literárias, sempre regadas por um estilo próprio, absolutamente original. É bem de ver que a direção artística de Nélida não pode ser apreendida sem recurso à imaginação. A realidade parece interpor-se, mas a autora obtempera que “a realidade na qual acreditamos é a convencional... Eu sou contra a convenção, ela pode por em dúvida tudo. Com a imaginação não se aceita o dogma, ela destrói a convenção. O poder tem pavor à imaginação... Cada vez que o poder agrilhoa o homem, a imaginação o liberta”. Este traço marcante de Nélida aponta-lhe a trilha da transgressão como inerente ao seu modo de ser, sem os adereços demagógicos que acompanham muita manifestação libertária. Cuidamos que a geografia literária de Nélida não abriga fronteiras à conduta humana, nem aceita os controles severos da imigração e da alfândega. É o reino da liberdade tout court.
Temas complexos encontram em sua pena ágil palavras que ferem o núcleo da ideia, da concretude existencial ou da ilusão. Assim, Nélida se refere à sua relação imediata com o Ser supremo: “com Deus eu me entendo; com os homens é mais difícil”.
Ante a perplexidade do homem hodierno e os reclamos da pós-modernidade, Nélida faz sua opção. Não repousa tranquilamente no mar plácido das verdades feitas, nem se submete sem resistências à ditadura da razão pura. Razão que ela respeita e da qual também se alimenta. Mas a ela não se adstringe. Escolheu vereda mais sensível e nada geométrica da afetividade. Por isso afirma sem rebuços: “a fé é um alvoroço do coração”.
Nélida passeia por temas como palavra, livro, eternidade, mito e método costurando esses universos por vezes díspares com um mesmo alinhavo pessoal que tanto encanta como instiga.
A palavra é o instrumento de que se vale para rabiscar os painéis humanos, porque para ela, “nenhuma palavra sai ilesa. Nasce ela contaminada pela índole do seu criador. O escritor, porém, longe de superficializar a língua, fornece-lhe ao som da guitarra de cinco cordas paredes com que reforçar a vitalidade do pensamento e da imaginação”.
O livro se abre para a escritora como um cofre prenhe de mistérios. Há na estante obras que tentam fisga-la. Mas elas remanescem frias e distantes, levando Nélida a assentir: ”só tenho mortos na minha estante. Alguns ainda respiram, embora saibamos... que já se aproxima para eles o prazo da rendição total. Tenho ainda alguns mortos recentes que nos abandonaram sem dizer para onde foram, esquecidos de deixar o endereço. Toco, emocionada, nesses mortos com lombada, capa dura e letras impressas.”
Com a eternidade nas fibras de seu ser, corpo, mente, espírito, a escritora se volve para a velhice e tece o seu comentário em sua perplexidade ante o tempo fugidio: “a velhice é a alma do tempo. Para quem tem tempo e para quem tem alma”.
Se para muitos o mito nos aparta da realidade, Nélida soube perscrutar-lhe a sentido, ao afiançar: “a narrativa mítica tem o mérito de devolver-nos ao epicentro do sagrado”.
Cuido que Nélida recolheria a palavra de Guimarães Rosa: “... meu método implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original”.
Cabe vasculhar o rico filão das obras nelidianas. Nélida nelas trabalha com ardor e devoção, por isso as escreve e reescreve muitas vezes. Basta deixa-la falar: “meu texto é basicamente provisório, uma vez que, ao remetê-lo a nova versão, ganha ele dimensões mais profundas. Cada versão é uma máscara abatida em direção ao rosto verdadeiro”.
A obra inaugural do roteiro ficcional de Nélida foi Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, que já revela patente densidade existencial. Nélida ainda em tenra idade se abalança à tarefa de cinzelar os perfis de Mariella e do arcanjo Gabriel em que avulta a problemática do pecado e da carne e transparecem laivos literários próximos do estilo de Clarice Lispector, uma de suas admirações cintilantes. É o existencialismo leigo de Nélida que abre alas para a imaginação, seu esporte preferido.
O embate extremado entre o bem e o mal ingressa na obra de Nélida em Madeira feita cruz, que põe a nu duas personagens em sua discrepância estrutural ante a trágica linha divisória entre os dois planos radicais da condição humana, nas figuras de Pedro e Ana. Pedro poreja a leveza da espiritualidade e Ana se enrosca em sua malignidade, consubstanciada numa a/imoralidade que nela floresce espontaneamente.
O Fundador narra a saga de um herói, o americano Joe, que, inspirado no poeta colombiano Camilo Torres, parte para a luta revolucionária que fixou como o seu destino inelutável.
No dizer de Nélio Pólvora, A Casa da Paixão é a fisiologia da paixão. O amor sensual atinge o seu paroxismo, o que leva Nelly Novaes a falar de um romance quase apocalíptico. Nélida deixa fluir a atmosfera dos mundos em plena ebulição.
Tebas do meu coração é uma sátira original e envolvente em que, como sempre, o tempo não demarca a narrativa, menos ainda a escraviza. Nélida se vale de sua liberdade criativa e projeta um desenho dos habitantes da cidade que talvez seja Brasília. A própria autora nos desvenda o mistério da urbe: “Santíssimo (é o nome da cidade) é como eu vejo o pensamento brasileiro, fracionado, fragmentado, diluído, cheio de contradições, ambíguo, um verdadeiro esfarelamento do mundo verbal. E à medida que se chega ao fim, sente-se a desintegração de tudo”.
Nélida se mescla à narrativa em A força do destino. O leitor se pergunta: qual o lugar do narrador? Acaso ele terá deixado livre parte de seu território ao autorizar uma presença de personagem que cria uma situação ficcional altamente original e plena de sugestões a encobrir o possibilismo de um retorno à normalidade das relações tecidas na narrativa?
O pão de cada dia é registro aparentemente episódico e fenomenológico de um cotidiano fugaz. A verdade é bem outra. Não cuida de aforismos, que é movido mais frequentemente por uma aragem ética ou moral. Nélida parece retomar fragmentos como cintilações de sua inventiva aguçada, momentos privilegiados do existir e do viver a nos realçar, muitas vezes, a magnitude das ilusões. Não ilusões perdidas, mas encontradas nas esquinas do existir das almas profundas.
Eduardo Portella nos chama a atenção para O Presumível Coração da América como “obra do escritor-cidadão, agente e ator da cena pública”. Nela, Nélida em discursos de rara beleza, secreta a sua veia política, como corolário de suas convicções libertárias que a tornaram uma das mais fortes personalidades de nossa cultura, com sulcos profundos na edificação de uma sociedade plural, justa e ética.
A República dos Sonhos explora a gênese brasileira e se adentra na aventura de vincar raízes na terra acolhedora. Pinta com mestria a ousadia dos migrantes – seus ancestrais – e o fluir da vida atual da terra que soube recebê-los. Trata-se de uma metáfora do Brasil desenhado com mãos talentosas.
Nélida entende chegado o momento de romper a carapaça do Oriente Médio e nos brinda com Vozes do Deserto. Ancorada na região instigante e desafiadora, berço do monoteísmo, a autora revive as lendas que pervadem os espaços arenosos para encontrar um novo conceito de fé. Emerge um deus distante, aristotélico. Mas o deserto incita à aventura e alvoroça a imaginação. Talvez tais relatos proclamem o apogeu da literatura criativa e revolucionária de Nélida.
Em suas obras, a romancista nos permite visitar sua função fabuladora, que não se enreda nas filigranas das literatices insossas. Antes, perfilha o encontro com os desvãos da existência e os acenos a caminhos traçados com a sinuosidade das estradas montanhosas que respeitam as curvas perigosas mas necessárias a quem ousa aproximar-se dos mistérios e enigmas.
Nélida nos fala de duas admirações literárias, suas e nossas, as confreiras Lygia e Rachel. “Lygia é uma sarça ardente. No uso da palavra e na rigorosa e intransigente defesa da causa humana. Tem o coração ferido como todos nós, mas nem por isso abdicou da decência e da integridade. Ao longo de solidária amizade, sempre a vejo generosa, límpida, compassiva. Enfrenta a adversidade com extremada elegância. Tem visível no rosto a rara marca da grandeza. No seu refinado texto, o enigma da vida parece desvendar-se. Os mínimos detalhes ali pulsam, há que ouvi-los sempre”.
De Rachel há que recordar o primeiro encontro. “Meus únicos recursos eram dezessete anos e o primeiro romance. À Rachel de Queiroz pareceram-lhe suficientes. Foi logo me emendando e na bandeja veio a lição implacável: se queria destino de escritora, aprendesse desde agora a expurgar do texto as impurezas, até mesmo as frases amadas, a cancelar os arrebatos primeiros, essas facilidades com que eventualmente se é premiado. Eu tremia de emoção, não lhe chegara à porta atraída apenas por sua glória, mas especialmente por sua intrepidez. Uma mulher que exaltara sua extraordinária juventude com um livro como O quinze. Ela era o segundo escritor que eu amava de perto. Tristão de Athayde fora a emoção permanente nos encontros matinais e diários, ele a caminho da missa, eu buscando o colégio, de saías curtas, os olhos arregalados. Rachel, porém, trouxe-me a realidade, ainda que com chá, biscoitos e dizendo “minha flor”. Sua ameaça de que talento converte-se em inimigo se não for bem cuidado, pois defendia ela ouro de lavra fina, tornou-se uma sentença. Difícil, mas generosa. Não quis me agradar, visando quem levasse adiante a memória do seu nome. Dedicou-se por algumas horas a salvar-me e dar sentido ao futuro. “Para que eu regressasse a casa mais forte, onde pude chorar sem ela jamais ter suspeitado”.
Numerosos e relevantes prêmios lhe foram conferidos, no País e no exterior. Em muitos casos, Nélida inaugurou a galeria de escritores de língua portuguesa a receber a láurea. Assim, podemos considerá-la uma embaixadora da cultura luso-brasileira e à qual tanto fica a dever o Brasil. Sua presença é reconhecida pelo mundo afora, dada sua contribuição migrante para o nosso torrão natal.
A crítica acolheu a obra de Nélida distinguindo-a com títulos de elevado peso cultural. No País, pelo conjunto da obra, granjeou Nélida os prêmios Golfinho e Nestlé, O prêmio Mário de Andrade traduziu o reconhecimento de sua obra A Casa da Paixão; O famoso prêmio Jabuti, de Letras, se deveu a Vozes do Deserto, o melhor romance de 2005; prêmio Walmap pelo romance O Fundador, para não mencionar senão os mais importantes.
No plano internacional, o elenco é suculento e expressivo. Para nos cingirmos aos últimos anos, há que referir o prêmio Juan Rulfo pelo conjunto da obra, conferido, em Guadalajara, sendo que a laudatio coube a Carlos Fuentes; após um interregno, cinco novos prêmios concedidos: o ibero-americano de Narrativa Jorge Isaacs, de Cali, igualmente pelo conjunto da obra. Nélida foi o primeiro autor de língua portuguesa e a primeira mulher a receber o galardão; sobreveio o prêmio Rosalía de Castro, também pelo conjunto da obra em língua portuguesa, concedido pelo Pen Clube da Galiza; já o prêmio internacional Menéndez Pelayo foi entregue pessoalmente pela ministra espanhola de educação, havendo proferido a laudatio Mário Vargas Llosa; a universidade de Oklahoma agraciou Nélida com o Prêmio Puterbaugh. Antes foram escolhidos Octávio Paz, Carlos Fuentes e Mário Vargas Llosa, o que diz do valor da láurea conquistada por nossa patrícia. Há apenas um ano, Nélida atingiu o ápice da glória com a concessão do prêmio Príncipe de Astúrias, em Letras.
Universidades de vários países cuidaram de reconhecer o desempenho literário de Nélida. Daí sua galeria de títulos de doctor honoris causa. Nos últimos dez anos, as universidades Atlantic na Flórida, Poitiers, na França, Santiago de Compostela, na Espanha, Rutgers, dos Estados Unidos e de Montréal, no Canadá, expressaram o seu reconhecimento pela portentosa obra nelidiana.
Após as transformações ocorridas nos anos 60 e 70, emergiram novas formulações do feminismo. A par de seus desdobramentos nos diversos domínios do saber e do agir, em literatura se nota uma clara distinção entre as versões francesa e anglo-americana do complexo problema. No primeiro caso, detecta-se a presença da psicanálise, especialmente lacaniana. No segundo, na visão de Lucia Zolin, visa-se “denunciar a arbitrariedade e a manipulação das representações da imagem feminina na tradição literária”.
As metáforas permeiam a obra de Nélida. Dão-lhe vigor e riqueza. A autora reconhece, porém, que o homem sobreleva a metáfora, o que lhe permite ancorar seu ser num patamar superior. E é aí que se situa a necessidade inquestionável de firmar a igual dignidade do homem e da mulher. Vale dizer, a igualdade jurídica, social, econômica, cultural de ambos os sexos dimana da igualdade ontológica sempre presente na obra ficcional de Nélida, bem assim em seus escritos assertivos.
Nélida tem plena consciência de que a emergência do feminino operou profunda transformação na fisionomia humana a partir do século XX. E o desfile de mulheres à testa de governos, de parlamentos, de tribunais, de universidades, nas ciências e nas letras, em empresas, em múltiplas profissões liberais, no amplo mercado de trabalho atesta a complexidade do novo feminismo e suas promessas para os dias vindouros. Nesta matéria, Nélida é contemporânea do futuro.
Ao se proclamar brasileira recente Nélida realça sua legitimidade, mas nem por isto denega o apport galego em sua vida partilhada. A opção da alma e da língua em favor do português, segundo Nélida, a inaugurou na humanidade. A verdade é que foi a intensidade de seu viver brasileiro que lhe demarcou a prioridade inarredável. O que prevalece é o império da palavra e esta é a mesma que baliza nosso idioma na pena de Camões, de Machado de Assis, de Eça de Queiroz, de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector.
O habitat de Nélida é a palavra pertinazmente buscada, por vezes sofrida, escrita com sangue, se assim o exigir a arte que a devora. Há uma atração irresistível pela condição humana vivenciada em sua esfuziante angústia, angústia que prefigura um otimismo escondido a falar de sua fé no ser humano. O texto nelidiano emerge com força indômita de uma criatividade desafiadora a se considerar o procedimento comedido dos cânones literários.
A personalidade de Nélida exala alegria. A grande escritora ama a vida, sorve-a com ardor e irradia o privilégio de existir que ela poreja nesse viver com que tão bem a retrata. Não há como obliterar a sedução, sua marca registrada. Pelo olhar, a palavra, o gesto fraterno, o toque convidativo à reciprocidade de consciências, Nélida traça um roteiro existencial pavimentado pela afetividade.
Nada mais refratário à escritora do que a submissão em quaisquer de suas manifestações. Ela se afirma altaneira mesmo quando percorre os desvãos da conduta humana, pois nela os juízos de valor não seguem a rotina do romanticamente correto. Antes, desafia as fronteiras da mediania, porque Nélida nasceu para respirar o ar das planuras em que se alteiam os montes brilhantes da inventiva literária. Seu horizonte não são as categorias do espaço e do tempo, porque se alojam num mundo em que o real e o mítico se dão as mãos para que ambos pousem na consistência existencial de suas personagens.
Padre Ávila: O Apóstolo da esperança
A cultura brasileira perdeu um de seus mais talentosos intelectuais, com o passamento do Padre Fernando Bastos de Ávila, S.J., eminente cientista social em que a especulação profunda se viu enriquecida por uma estuante atividade. A ele se credita a implantação da Escola de Sociologia Política, do IBRADES e da revista Síntese, para citar apenas algumas iniciativas a que se poderiam juntar numerosas outras em seu valioso percurso existencial.
Em 1952, conheci o professor José de Bastos de Ávila, mestre em Antropologia Física, que se inspirou em Roquete Pinto e era o pai do Pe. Ávila. Colegas da Universidade Santa Úrsula, impressionei-me com a pureza do olhar desse velho professor, o que me tornou fácil compreender a riqueza humana de seu filho, o sábio jesuíta cujo desaparecimento tanto pranteamos.
De família petropolitana, o Pe. Ávila nasceu no Rio de Janeiro em 1918 e, aos 11 anos, ingressou na Companhia de Jesus, em Friburgo, na Escola Apostólica. Na cidade serrana permaneceu até os 27 anos, cumprindo todas as fases da longa e segura formação jesuítica: o noviciado, os estudos clássicos greco-latinos, retórica, temas de ciência, além de filosofia escolástica.
Exímio latinista e mestre de grego, o jovem religioso penetrou fundamente nos estudos clássicos que balizaram o estilo rico e cuidado de seus escritos.
Sua formação europeia principiou em 1945, quando o ilustre sociólogo parte para a Europa em companhia de dois outros jesuítas, o Pe. Henrique Claudio de Lima Vaz e o Pe. João Bosco Penido Burnier. Chegam ao Velho Continente destroçado pela terrível II Guerra Mundial. Campeava a pobreza a ponto de, no Colégio Pio-Brasileiro, as refeições serem servidas com o que sobrara do almoxarifado da Força Expedicionária Brasileira.
Em Roma, frequenta a Universidade Gregoriana, onde estuda Filosofia e Teologia em nível de mestrado, doutorando-se em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Com o Pe. Vaz, aprofunda estudos de alemão em Pulach, outro centro de formação dos jesuítas.
Em “A alma de um padre”, obra de largo fôlego pela sinceridade no relato de seu itinerário, o Pe. Ávila desnuda sua alma e nos oferece um retrato corajoso e fiel da ambiência encontrada nos diversos centros de estudos que frequentou, com todas as nuances do comportamento humano. É um livro a merecer reflexão, pois apresenta um a um os seus colegas de batina, com inteira precisão, sem descurar as falhas conaturais ao ser humano. Assim, os elogios hão de ser recebidos como atestados fidedignos da cultura e da retidão ética dos colegas mencionados.
No Natal de 2004, o Pe. Ávila me ofertou o seu belo livro, com a seguinte dedicatória: “Ao grande amigo e irmão em Cristo Tarcisio Padilha os segredos da alma de um padre”.
No opúsculo que enfeixa os discursos de posse e de recepção na ABL, este proferido pelo ilustre acadêmico Alberto Venancio Filho, o Pe. Ávila por igual manifesta a sua delicadeza costumeira:
“Ao professor Tarcísio Padilha, que me sequestrou em Nova Friburgo para a ABL, a homenagem imortal do Pe. Fernando Bastos de Ávila.
À sua vida de líder intelectual na PUC, com a fundação da Escola e Sociologia e Política e da revista Síntese de valiosa presença no cenário nacional, acresce-se sua participação na Comissão Afonso Arinos, destinada a subsidiar a Assembleia Constituinte que gerou a Carta Magna de 1988.
É reconhecida sua capacidade de coordenador de seminários, congressos, e sessões de estudos. Com firmeza, elevada competência e fina ironia entretém os participantes dos encontros intelectuais, dando aos mesmos densidade de orientação, suscitando invariavelmente questões a espicaçar suas inteligências a tertúlias muitas vezes brilhantes.
Por iniciativa do Cardeal Dom Eugenio de Araújo Sales, coube ao Pe. Ávila capitanear 41 encontros no Sumaré, em que foram reunidas equipes de representantes dos mais diversos segmentos da sociedade para versarem temas de marcante atualidade. Criou-se um espaço aberto para debates de alto nível e de grande alcance, graças, em magna parte, ao talento do presidente das reuniões.
Talentoso expositor, culto e aquinhoado com uma eloquência fulgurante, o Pe. Ávila foi um dos maiores conferencistas que conheci ao longo de mais de meio século. Além da cultura e do talento retórico, era o aureolado mestre dotado de uma fina ironia, própria dos espíritos de escol.
Lecionou numerosas disciplinas da área das ciências sociais e publicou a tese “L´immigration au Brésil (que logrou la plus haute distinction). Logo após o doutorado, o Pe. Ávila irá estagiar com dois eminentes estudiosos a respeito de problemas de movimentos migratórios, Alfred Sauvy e Jean Forastié. Uma famosa Introdução à Sociologia veio a lume, além de Doutrina Social da Igreja, Solidarismo, Antes der Marx – as raízes do humanismo cristão., Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo (editada no ano do centenário da Encíclica de Leão XIII “Rerum novarum”), Folhas do outono (Ética e valores), além de muitos outros escritos. Cabe aqui recordar que a Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo sofreu prévia censura do regime militar. O que gerou protestos e um editorial de O Globo na edição de 6 de novembro de 1967, com o título O CRIME DO PADRE ÁVILA, de autoria do meu irmão, o jornalista Moacyr Padilha, de que extraímos algumas passagens:
“Esperamos por parte do governo uma palavra de sensatez que ponha fim a essa deplorável controvérsia. O trabalho de professor jesuíta é de utilidade para o ensino e, por isso, deve ser difundido largamente”.
“Agiu com lucidez a Pontifícia Universidade Católica ao dar o seu incondicional apoio ao Padre Ávila. O Presidente Costa e Silva e o Ministro Tarso Dutra devem desfazer quanto antes a má impressão que a tentativa de censura causou em todos os meios culturais do País”.
“E ao Padre Ávila, que não cometeu qualquer crime, pois, ao contrário, prestou um serviço ao Brasil, o Governo deve agradecimento e, para cumprir com esse dever elementar, terá de, preliminarmente, apresentar-lhe suas desculpas pelo incidente”.
Na obra em que bosqueja o perfil do humanismo cristão, o Pe. Ávila assente: “a crítica do capitalismo como sistema global já se consumara, antes da publicação do Manifesto Comunista, em 1848... Antes de Marx, pensadores cristãos já conheciam o mecanismo da plus-valia e tinham descoberto, no processo espoliador do capitalismo, a causa secreta da questão social”.
O solidarismo é um contributo particular do Pe. Ávila à compreensão dos rumos abertos à sociedade hodierna. A ideia promanou de um outro jesuíta, o Pe. Heinrich Pesch, autor de um famoso tratado de economia e filosofia social. O termo foi também utilizado por Charles Bouclé, no livro Le solidarisme, em 1924. O Pe. Ávila ainda insere os nomes dos Padres Lebret e de Teillard de Chardin, em que se substitui o modelo de dialética, afirmação e negação e negação da negação pela alternância de divergência, convergência e emergência. É uma visão otimista da sociedade em seu porvir, Para o Pe. Ávila, a comunidade é a figuração visível e o agente eficaz da solidariedade.
Impende inserir algumas outras obras no elenco rico e variado do Pe. Ávila, como Solidarismo – alternativa para a globalização, A Igreja e o Estado no Brasil, Reflexão cristã sobre o meio ambiente, A alma de um padre.
O Vaticano reconheceu os méritos do insigne jesuíta, ao nomeá-lo, em 1990, para a Comissão Pontifícia de Justiça e Paz e ao reconduzi-lo em 1996.
Ao longo de muitos anos, o Pe. Ávila foi o principal assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a ele se devendo importantes textos da Igreja brasileira, numa época marcada por muitas sombras.
A Conferência Episcopal Latino-americana a ele igualmente recorreu, daí resultando uma obra em conjunto com o Pe. Bigot, S.J. sobre a difusão da Doutrina Social da Igreja na América Latina. A ele se deve a elaboração da obra ciclópica O Clero no Parlamento Brasileiro, pois foi um de seus principais animadores.
O Pe. Ávila foi o inspirador da Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas e integrou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1995.
Ao concluir, quero salientar a forte impressão que me causou o ínclito intelectual e cidadão. Conheci-o quando de seu retorno ao Brasil, em 1954, ao tomar parte em um retiro espiritual de que ele foi o pregador ao longo de três dias. A cultura, a densa exposição de temas filosóficos e teológicos, uma espiritualidade a porejar de sua alma, a par de uma eloquência rica e precisa me encantaram. Daí a uma amizade fraterna foi um pulo.
É o momento de realçar aquela virtude que talvez mais bem configure o perfil do Pe. Ávila: a sua permanente compaixão. Qual verdadeira esponja, ele absorvia os sofrimentos dos outros, e lhes ofertava a sua ajuda moral e religiosa. Acresce-se ademais salientar sua perene atenção ao feminino. A emergência do feminino constituiu a maior revolução do século XX, ao lado da tecnologia.
Muitos buscaram o apoio espiritual em encontros com o Pe. Ávila. Sua sensibilidade respondia com uma palavra forte de esperança, que dispersava as nuvens carregadas dos corações sofridos. Acima do brilho de sua inteligência sempre remanescia a sua philosophia cordis de cunho agostiniano na práxis de seu convívio com as pessoas. Este foi o sinete inconcusso de sua presença no cenário entre nós.
A Companhia de Jesus tem assinalados serviços ao Brasil, desde o seu dealbar. Permito-me referir três nomes que, na modernidade, formaram uma espécie de trindade do mais elevado nível intelectual, moral e espiritual: o sempre saudoso fundador da PUC-Rio, o sábio Pe. Leonel Franca, o filósofo de larga visão, o Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz e o Pe. Fernando Bastos de Ávila, que nos deixou um enorme vazio com o seu desaparecimento.
Aqui registro a perda irreparável, mas ao mesmo passo me aquieta a alma sabê-lo num patamar bem mais elevado em que a sua vocação e o seu destino se deram às mãos numa sintonia perene e indestrutível.
Coelho Neto
Ou o culto à palavra*
A simples menção a Coelho Neto despertava reações apaixonadas. Seu nome gerava comentários encomiásticos e, às vezes, ferinos. É certo, contudo, que Coelho Neto figurou na galeria dos grandes escritores da literatura pátria. Versou todos os gêneros literários e sua pena prolífica assombrava o mundo das letras mercê da variedade e riqueza de seu estilo. Palavras entregues ao olvido renasceram em seus escritos, a revelar o seu domínio da língua que nos irmana e à qual devemos, e muito, a unidade nacional.
Passados mais de setenta anos de seu desaparecimento, Coelho Neto não tem seu nome relembrado pelas novas gerações. Daí porque cabe inventariar a sua biografia, recordar a sua vasta contribuição à literatura brasileira, sua presença obrigatória nos fatos marcantes da história de meados do século dezenove e das primeiras três décadas do século vinte que serviram de espaço para o seu pleno desabrochar.
Seu nome sofreu o desgaste que acompanha personalidades excepcionais, o que gerou um esquecimento de suas obras, até que, no ano do centenário de seu nascimento, Otávio de Faria, com particular empenho, promoveu a sua reabilitação. Com isso, queria significar que aos leitores caberia a tarefa de proceder a uma avaliação das obras de Coelho Neto, pois os seus detratores se dispensavam do esforço honesto de lê-las. A cortina do silêncio desceu mais uma vez no horizonte de nossas letras, pelo que adequado nos pareceu o momento de proceder à sua, não diria reabilitação, mas apenas ensejo a que revivamos os passos de sua inequívoca presença literária no País, e mesmo fora dele.
Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em Caxias, no Estado do Maranhão, aos 21 de fevereiro de 1864. Sua biografia o registra como professor, político, jornalista, romancista, contista, crítico, teatrólogo, memorialista e poeta. É o fundador da cadeira número 2 desta Academia, a que tem como patrono Álvares de Azevedo. A curta trajetória deste tinha o selo comum à época de tantos escritores precocemente convocados para o encontro com a morte, como que sedenta de tê-los em seu regaço. Álvares de Azevedo insere-se entre os poetas de breve percurso, nos quais Lygia Fagundes Teles vislumbra jovens talentosos escritores que morrem cedo, como sinal de seu romantismo visceral.
Coelho Neto era filho único de Antonio da Fonseca Coelho, português, e de Ana Silvestre Coelho, índia. Aos seis anos, seus pais se transferiram para o Rio de Janeiro. Ai frequentou o famoso Colégio Pedro II, então Ginásio Nacional, onde recebeu esmerada formação clássica. Lá eram lentes figuras de escola de nossa cultura, podendo afiançar-se que o nível dos estudos se assemelhava ao ministrado em faculdades de ciências e letras. No terceiro grau, principiou seus estudos na área médica, de que logo abriu mão para, a seguir, se matricular na Faculdade Direito de São Paulo, entidade presente em biografias estelares de nossa literatura. Seu temperamento arrebatado levou-o a se transferir para outro centro de excelência, em Recife,onde cursou o primeiro ano da famosa Faculdade de Direito. Nesta ocasião, teve o privilégio de conhecer Tobias Barreto. É quando se dá seu retorno à capital paulista. Em sua segunda estada em São Paulo, abriu-se para Coelho Neto o universo da participação, pelo que o escritor maranhense se deu plenamente às ideias abolicionistas e republicanas. Resolveu interromper seus estudos na famosa faculdade de direito, volvendo à antiga capital federal, o verdadeiro celeiro de talentosos intelectuais, que viam, na Corte, o topos de suas ascensões. Logo integrou luzidio grupo de Olavo Bilac, Luis Murat, Guimarães Passos, Paula Ney.
Tornou-se êmulo de José do Patrocínio, pena e oratória fulgurantes, como expoente da luta contra a escravidão, que tanto retardou nossa afirmação civilizatória e cultural. Até hoje, pagamos o elevado preço nessa sucessão de equívocos que vem freando a nossa afirmação como país efetivamente culto e dono de seu destino. E, além disso, real propulsor de singular civilização tropical.
Coelho Neto veio a se casar com Maria Gabriela Brandão, filha do educador Alberto Olympio Brandão. A união gerou quatorze filhos, sete dos quais cedo falecidos. A família numerosa bem explica a vida laboriosa de um dos mais lidos imortais desta Academia.
Em seu currículo, vamos vê-lo secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Diretor dos Negócios do Estado, professor de História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e de Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática e, posteriormente, seu diretor. Foi deputado federal pelo Maranhão em 1909 e, em 1917, reeleito. Seu senso cívico o levou a ocupar a secretaria geral da Liga de Defesa Nacional.
É de realçar-se o fato incomum de sua aprovação como professor de Literatura Brasileira do Colégio Pedro II, sem a exigência de concurso, por parecer assinado por Silvio Romero, João Ribeiro e Capistrano de Abreu. A Congregação do Colégio levou em conta a classificação, em primeiro lugar, de Coelho Neto em concurso extremamente difícil realizado em Campinas, em que concorreu com Batista Pereira e Alberto de Faria. As provas se sucederam com temas desafiadores: elementos estáticos da literatura brasileira, análise literária da Eneida, livro VII, versos 689-703; síntese histórica das literaturas românicas, influência destas sobre a literatura portuguesa e finalmente Bucólica, Égloga, IV v.1 a 26, de Virgílio.
Impende cinzelar brevemente a cultura vigente à época de Coelho Neto para mais bem lhe compreendermos a contribuição enriquecedora à cultura brasileira.
Vencida a batalha da Abolição da escravatura e implantada a republica, os intelectuais perderam o ímpeto por causas maiores. No plano internacional, a 1ª guerra mundial se insere entre os dados complexos a desafiar as inteligências da época. Analisando a atmosfera cultural daquele então, Bosi nos fala de um decadentismo configurado “na água morna de um estilo ornamental, arremedo da belle époque europeia e claro signo de uma decadência que se ignora”. É meio hábil para a emergência de uma forma estética que mal encobre um certo vazio de conteúdo. Daí à literatura como sorriso da sociedade – na expressão de Afrânio Peixoto - foi um passo.
Coelho Neto poderia ser tragado por tal período despossuído de um sentido mais profundo. O que explica as opiniões conflitantes sobre o seu desempenho literário.
Mas afinal: quem foi Coelho Neto? Seus críticos e mesmo detratores ombreiam com quantos lhe apontaram méritos excepcionais. Parece que chegaram a não lhe reconhecer a presença literária à época em que o escritor maranhense palmilhou pertinazmente os múltiplos gêneros literários.
Talvez caiba referir aqui as mais festejadas ou desencorajadoras críticas à opulenta obra de Coelho Neto, principiando com Humberto de Campos: “O Sr. Coelho Neto não é, em verdade, apenas um escritor: é uma literatura”. Ou mencionar, inicialmente, dois juízos críticos de valores conflitantes para que nos acuda ao espírito estarmos trilhando terreno de difícil praticagem. De um extremo a outro, cuidamos que não se poderá idoneamente negar a exuberante presença de Coelho Neto em nossa cultura. Surpreende-nos a distância abissal de dois escritores sobre o romancista maranhense. Basta recorrer a Lima Barreto e a Otávio de Faria. Escreveu o primeiro: Coelho Neto é “o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”. O segundo nomeava o escritor maranhense “o maior romancista brasileiro”.
Na cultura pré-modernista destacam-se três nomes estelares: Ruy, homem público e homem de letras. Euclides, procurador do solo e do homem brasileiros. O terceiro terá sido Coelho Neto pela abrangência de sua obra que percorreu praticamente todos os gêneros literários e o tornou o maior dos prosadores brasileiros no reconhecimento de homens de grande valor, ocorrido em 1928.
Conta Paulo Coelho Neto que, no “estrangeiro, a obra de Coelho Neto tem merecido estudos e apreciações honrosíssimos de um grande: Fialho de número de escritores e críticos literários, tais como – em Portugal Almeida, Maria Amália Vaz de Carvalho, Manuel de Sousa Pinto, Julio Dantas, João de Barros, Afonso Lopes Vieira, Raul Martins e Henrique Perdigão; - na França: Dr. P. Rovelly, Victor Orban, Phileas Lebesgue, Manoel Gahisto, George Normandy e Jean Duriau; - na Alemanha: Martin Brusot, em três estudos, publicado no Zeigeist – suplemento literário do Berliner Tageblatt, no Litterarische Echo, de Berlim, e no Aus Fremden Zungen, de Berlim, e mais Anthon Krause e Carl A. Nerlich; - na Inglaterra: J.C. Oakenfull e Rudyard Kipling; - na Itália: Giulio de Médici; - na Suécia: Karl August Hagbert; - nos Estados Unidos: Marie Robinson Wright, Isaac Goldberg e Percy Alvin Martin; - na Argentina: Martin Garcia Mérou, Benjamim de Garay, Guillermo Estrella, Manoel Galvez, p. Nuñez Arca e Luiz Onetti de Lima; - no Uruguai: Drs. Victor Perez Petit e Carlos Martinez Vigil; - no Cilhe: Julia Garcia Gamez, e em Angola: Barbosa Rodrigues.
No Brasil, a obra literária de Coelho Neto provocou inúmeras citações e comentários enaltecedores de Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Silvio Romero, Antonio Lobo, João do Rio, Medeiros e Albuquerque, João Ribeiro, Luiz Murat, Nestor Victor, Humberto de Campos, Luiz Carlos, Martins Fontes, Ramiz Galvão, Almachio Diniz, Veiga Miranda, Felix Pacheco, Miguel Couto, Augusto de Lima, Oliveira Lima, Péricles de Moraes, João Luso, Fernando de Azevedo, Fernando de Magalhães, Celso Vieira, Alcides Maya, João Neves da Fontoura.
Suas obras ganharam o mundo em onze idiomas – português, francês, inglês, alemão, italiano, espanhol, russo, sueco, sírio, esperanto e japonês. Seus trabalhos foram divulgados em todo o Brasil e na Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha, Itália, Bélgica, Suécia, Rússia, Síria, Japão e África portuguesa.”
Eis diversas opiniões sobre a grandiosa obra de Coelho Neto:
“Um dos mais consagrados representantes da nossa cultura”.
Ruy Barbosa – Excerto de uma carta a Coelho Neto – 16/1/1918.
“Coelho Neto é um grande virtuose da prosa. Não conheço na literatura brasileira outro que lhe seja superior na faculdade da expressão”.
Nestor Victor – A crítica de ontem.
“Se se excetuar Ruy Barbosa, e só falando nos mortos, ninguém foi talvez mais castiço na sua linguagem e, simultaneamente, mais brasileiro no tema das suas obras”.
Henrique Perdigão – Dicionário Universal de Literatura, Portugal.
“Coelho Neto é no Brasil o que Rudyard Kipling é na Inglaterra, o homem que joga com maior número de palavras”.
João do Rio – O momento literário.
Machado de Assis assim se refere a Coelho Neto: “Coelho Neto tem o dom da invenção, da composição, da descrição e da vida, que coroa tudo. É dos nossos primeiros romancistas, e, geralmente falando, dos nossos primeiros escritores”.
E sobre O Sertão igualmente se expressa o grande Machado: “Coelho Neto ama o sertão, como já amou o Oriente, e tem na palheta as cores próprias de cada paisagem. Possui o senso da vida exterior. Dá-nos a floresta, com os seus rumores e silêncios, com os seus bichos e rios, e pinta-nos um caboclo que, por menos que os olhos estejam acostumados a ele, reconhecerão que é um caboclo”
Josué Montello – “Considerando com justiça entre as mais altas figuras de nossas letras, tanto pelos valores formais de seus livros quanto pela extensão de sua bibliografia, Coelho Neto poderia ser apontado, dois anos após a publicação de ‘Turbilhão’, como o primeiro prosador da literatura brasileira, por morte de Machado de Assis”.
Brito Broca – “A hostilidade que Coelho Neto vem encontrando nas gerações novas, de 1922 para cá, resulta, em grande parte, do fato de elas desconhecerem a obra ou conhecerem-na de maneira bastante falha e superficial. A produção demasiado vultosa desse escritor, num ambiente como o nosso, em que se lê tão pouco, não tem permitido, geralmente, aos mais curiosos, percorrer-lhe senão um pequeno número de livros, e sendo essas obras irregulares, havendo nela do bom, do muito bom, do medíocre e do ruim, acontece, muitas vezes, o conhecimento incidir na parcela mais fraca, de onde os juízos levianos e falhos, embora quase sempre dogmáticos. Muitas opiniões sobre Coelho Neto poderiam resumir-se na já famosa boutade de Oswald de Andrade: Não li e não gostei”.
Lucia Miguel Pereira é cáustica em sua avaliação: “talvez se possa sintetizar a personalidade literária de Coelho Neto dizendo que, a despeito da sua inegável vocação intelectual, foi vítima de um terrível engano: tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e ideia, instrumento e concepção. Deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la. Fantasia, imaginação, observação, senso poético – tudo isso existia nele, e tudo isso foi posto apenas ao serviço do poder verbal, tudo isso foi reduzido a mero pretexto para frases. E, inconsciente do mal que a si próprio causava, ele se ufanava de haver disciplinado o vocabulário, quando o vocabulário o asfixiava, afogava-lhe a concepção em termos preciosos, em construções onomatopaicas. O que tinha a dizer pareceu-lhe menos importante do que a maneira pela qual o dizia”.
José Veríssimo teceu sobre Coelho Neto juízos contraditórios, ora notável, eminente, extraordinário ou fora do comum, ora afiançando que a obra de Coelho Neto é “complicação toda literária, sem nenhuma complexidade interior”.
Athayde – “... Gastão Penalva lamentava, há dois dias, em comovido artigo, o esquecimento do nome de Coelho Neto. Duzentos livros não o fazem lembrado dos próprios contemporâneos, pois que há apenas alguns anos que se afastou de nós a grande presença daquele trabalhador das letras...” e... “Contudo, não me surpreende que o esqueçam. Neto encheu muito o seu tempo. Dominou os círculos literários com a sua possante personalidade. Era natural que com o seu desaparecimento sucedesse o mesmo que a tantos outros grandes escritores; envolve-os o silêncio passageiro, à espera de novas e definitivas consagrações”.
De Medeiros e Albuquerque lemos: “Coelho Neto e Alberto de Oliveira provam diariamente a justiça que os fez aclamar príncipes dos prosadores e poetas brasileiros, com o furor que anima tantos literatinhos novos a se atirarem contra eles. Prova indireta, mas decisiva. De fato, se eles não tivessem mérito, seria desnecessário atacá-los. Bastaria que esses adversários usassem a mais simples das táticas: que produzissem melhor do que os dois”.
Aires da Mata Machado se situa num justo meio termo: “cedendo ao império da moda literária ou despercebidamente se entregando à proclividade do temperamento, Coelho Neto abusou algumas vezes do seu direito de arreliar o burguês pé de boi, com o emprego exagerado de saborosos plebeísmos, de peregrinismos expressivos, de palavras inusitadas, até de invencionices extravagantes. Tudo isso, porém, representava exceção. A regra era a palavra exata, na frase adequada à expressão, à situação, ao intuito do escritor”.
Manuel Cavalcanti Proença se inclina ante a nomeada do escritor maranhense: “ataques e defesas, e, ainda mais, feitos com o passionismo a que se referiu Brito Broca, constituem sinal de vitalidade. Mais certo para o crítico será ficar no meio do campo onde se travam os torneios. Se, morto há mais de trinta anos (1934), ainda recebe ataques, é porque sua obra continua viva; e, se, ao mesmo tempo, precisa de defesa, é que essa mesma obra não é toda de aço puro. Parece estar aí a verdade”.
Em reportagem a João do Rio, escreve Coelho Neto: “o público não sabe a capacidade do meu trabalho e a crítica ignora porque trabalho tanto. Não sabem eles que, subordinando o estilo à concepção, a pena desliza quase mecanicamente”.
Coelho Neto não dispunha dos vagares para rever os seus escritos, eles fluíam velozmente ao sabor da caudal de sua criatividade hors concours, o que robustece nossa convicção de que não lhe poderíamos exigir rigor especulativo ou mesmo e sempre densidade imaginativa.
Como membro efetivo da ABL, recepcionou Mário de Alencar, Osório Duque Estrada e Paulo Barreto. Foi presidente da Academia Brasileira e um dos imortais mais ligados à instituição, nas sessões de trabalho, como no palco maior da sociedade, com suas intensas participações em outras entidades culturais e ainda pelo seu acendrado patriotismo, que partilhou com Olavo Bilac.
Conta seu filho Paulo que “na fase inicial de sua carreira literária, Coelho Neto adotou pelo menos nove pseudônimos em artigos para jornais e revistas, contos, histórias brejeiras e até romances”. “Álbum de Caliban” e “O arara” foram publicados com o pseudônimo de Caliban. No Filhote, da “Gazeta de Notícias”, ele usou o de Caliban; no “Paiz”, na “Notícia” e na “Gazeta de Notícias” o de Anselmo Ribas; na “Vida Moderna” o de Charles Rouguet; com N, na “Gazeta de Notícias”, fez uma coluna diária. Além desses, Coelho Neto firmou muitos outros trabalhos com os pseudônimos de Ariel, Demonac, Blanco Canabarro, Victor Leal e Henri Lesongeur “.
A letra de Coelho Neto merece um registro especial, pois revela a sua perfeição como objetivo permanente e uma inclinação vigorosa para o belo. Paulo assim narra:“a letra de Coelho Neto era regular, seguida, esmerada, como se houvesse de ir dali a gravura. Tinha traços grossos e delgados, como os podem exigir os mestres mais meticulosos de caligrafia. Os tt elevavam-se à sua altura certa, cortados por um traço curto, reto, bem horizontal, sempre o mesmo; os ll subiam mais um pouco, mas sem nenhum desmando, nenhuma permissão de se inclinar ou passar da linha. Nenhuma confusão possível entre os mm, os nn, ou uu, que toda a gente mais ou menos baralha e que, na escrita de Ruy Barbosa, por exemplo, só pela formação da palavra ou pelo sentido da frase se podiam distinguir. Coelho Neto desenhava, gravava as letras. Até nisso era artista”.
Todo este senso estético numa vida atribulada e atarefada. Sim, porque o escritor, com família numerosa, não poderia adquirir uma casa para morar. Quando indagado a respeito, certa feita respondeu prontamente: “Não! Habito-a há 20 anos, como inquilino. Casa própria tenho no cemitério, a que foi doada a meu filho. Não sou tão pobre assim: tenho, pelo menos, onde cair morto”.
A história registra um duelo na ABL ocorrido entre Graça Aranha e Coelho Neto: na sessão de 19 de junho de 1924, os dois grandes escritores se desavieram. Descreve Eliezer Bezerra o episódio: Poucos dias antes da (anunciada) conferência de Graça Aranha, Coelho Neto, usando de seu sagrado direito de expressão, manifestou-se, por meio de um órgão da imprensa carioca, contra o risco que o movimento modernista oferecia, abrindo facilidades para manifestações literárias artificiais capazes de comprometer a seriedade da literatura brasileira. A predição do grande escritor tornou-se realidade, em parte.
Houve, então, a reunião de 1924, no plenário da Academia Brasileira de Letras, numa demonstração eloquente de que nosso maior cenáculo das letras nunca teve maiores preconceitos com os movimentos literários contrários ao seu reconhecido tradicionalismo.
Graça Aranha, a certa altura, depois de ofender, seriamente, às tradições da Casa de Machado de Assis, de que fora fundador, apesar de não contar, em seu currículo, em 1879, com um livro publicado sequer, gritou: “Abaixo a Grécia! Morram todos os helenos!”, invocação, esta sim, aparentemente sem nexo, porque a velha Grécia e os seus helenos gloriosos só permaneciam, havia muito, na memória dos que lhe herdamos a civilização superior. Então Coelho Neto, que era de gênio arrebatado e de idade avançada, esquecendo-se, momentaneamente, de certo, que, por trás dos excessos naturais do Modernismo nascente, havia o essencial, isto é, o desejo geral de modernização completa de nossa cultura, revidou: “mas, eu serei o último dos helenos e o fogo das paixões não vai destruir a beleza da cultura, porque a inteligência é eterna!”
Coelho Neto não se cingiu a pugnar pela Abolição e pela República. Vemo-lo porfiar pela educação moral e cívica, a educação física, o escotismo, a defesa das florestas, o serviço militar obrigatório, na esteira de Olavo Bilac, a proteção e assistência à infância, ao teatro brasileiro, o intercâmbio cultural entre o Brasil e Portugal.
É amplo e variegado o espectro de sua participação na vida nacional. Jamais se refugiou em uma torre de marfim, perfilado ao abstracionismo. Em sua época era ouvido por muitos que recebiam suas palavras como uma forte sinalização para os valores do humanismo cristão. Coelho Neto confessa: “homem de fé, o livro de minh´alma aqui o tenho: é a Bíblia. Não o encerro na biblioteca entre os de estudo, conservo-o sempre à minha cabeceira, à mão”.
É dele que tiro a água para a minha sede de verdades; é dele que tiro o pão para a minha fome de consolo; é dele que tiro a luz nas trevas das minhas dúvidas; é dele que tiro o bálsamo para as dores das minhas agonias”. Sua adesão ao espiritismo é objeto de um singelo documento em que fica patente um certo distanciamento da consistência filosófica que seria de esperar-se de quem sorveu o néctar da árvore do helenismo.
Talvez se possa concluir que o espírito de Coelho Neto o circunscreve aqui e ali a uma relativa curiosidade difusa, de preferência ao genuíno esforço de aprofundamento temático. Na Summa Theologica, Tomás de Aquino discerne os dois conceitos de curiositas e studiositas, apontando a superficialidade do primeiro e resguardando a densidade do segundo. Em Coelho Neto se desprende à primeira vista uma curiosidade e uma sensibilidade que muitos confundem com riqueza de imaginação que ele próprio se atribui. Sua inteligência se distrai com as cenas do cotidiano e não com os desafios existenciais que transbordam do cálice das vivencias humanas. É preciso observar que, à época de Coelho Neto, a especulação filosófica não vicejava entre nós como em terra nativa. O domínio do darwinismo, do positivismo exercia fascínio nas gerações mais voltadas para a especulação. É bem de ver que não se tratava de um evolucionismo sólido, senão que de formas meramente embrionárias de um pretenso sistema completo. O positivismo parecia mais respeitado pelos seus arautos, cujas vidas ofereciam à sociedade o espetáculo da seriedade de palavras e atos, bem mais do que da densidade do pensamento. Tal predomínio do efêmero sobre o duradouro explica magna parte a postura literária de Coelho Neto, que não tinha a socorrê-lo um sistema de ideias bem estruturado ou o recurso surpreendente e oportuno de intuições, que Nicolai Hartmann chama de intelecções.
A ausência de um compromisso com sistemas e correntes de pensamento poderia induzir-nos a concluir que Coelho Neto cedeu aos rogos de um ecletismo esterilizante. Isto em face dos acentos românticos mesclados por tinturas realistas que não encobriram traços do barroco. Talvez mais adequado se compreenderia o soi-disant ecletismo do prolífico escritor como uma maneira de não optar filosoficamente por uma determinada corrente de pensamento, quem sabe mesclando os afluentes de uma causal indefinida?
O ecletismo em nossa cultura promana, de preferência, do vezo de assentir e pugnar por teses na sua individualidade, sem atentar devidamente para a sua adequação a um sistema de ideias metodologicamente estruturado numa inequívoca travação lógica. Razão assiste a Sérgio Buarque de Holanda quando sustenta que, entre nós, a maioria dos homens de grande talento incorre em contradições de que não têm consciência. Não há que se estranhar a sinuosidade da obra de Coelho Neto no relativo à falta de nitescência na opção propriamente literária e à dispersão no campo das ideias.
É imperioso sublinhar que não advogamos uma subordinação da literatura à filosofia ou à teologia. Apenas referimos a presença, muitas imperceptível, de um embasamento especulativo do cultor das letras poder indiretamente interferir em sua criação. Isto porque nos pomos de acordo com Kant que, e sua Critica do Juízo, cuida de evitar os escolhos de uma dependência indesejável da arte a uma finalidade que lhe restrinja o campo de atuação. É o sentir também de Goethe, para quem a propósito da beleza “não podem lábios humanos dizer nada mais sublime do que: existe”.
Coelho Neto poderia ratificar o pensamento de Marcel Proust: “a verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, portanto, plenamente vivida, é a literatura”.
Em suma, tudo sinaliza para um escritor fiel à sua vocação como poucos que, no entanto, mais se assemelha ao beija-flor que colhe em cada flor o que lhe apetece e logo busca outras sem se fixar em nenhuma. Este perpassar em ritmo de leitura dinâmica do real fugidio bem se ajusta como símbolo de um escritor por alguns considerado o maior dentre os nossos artistas da palavra.
À época, os leitores corno que exigiam profissionais da pena capazes de rebuscar os recantos semi-ignotos da nossa língua rica e fecunda, sem nem mesmo perseguir temáticas mais densas e profundas. Pascal já nos advertia a respeito do abismo entre o divertissement e o resguardo necessário à criação cultural. Ate porque, no dizer de Saint Exupéry, o silêncio é o espaço do espírito.
Frequentar os escritos de Coelho Neto é volver a um passado, seja no plano da criação literária, como na expressividade esplendorosa que dimanava de sua pena privilegiada.
É conhecida a ligação de Coelho Neto com o mundo dos desportos, tornando-se patrono dos jogos atléticos entre nós. Estimulou por todas as formas diversas modalidades desportivas. Nos esportes aquáticos frequentava o Guanabara e nos terrestres o seu querido Fluminense.
Coelho Neto adotou o Rio de Janeiro como a cidade de sua vida. Tanto que a ele se deve alcunha de cidade maravilhosa à nossa antiga capital federal. Em 1908, nas páginas do jornal A Notícia Coelho Neto criou o sinônimo e avançou ainda mais em seu entusiasmo, publicando em 1928 sua centésima obra com o título de Cidade Maravilhosa. O que serviu de inspiração ao músico André Filho que, em 1934, lançou para o carnaval a música que se transformaria no hino da cidade maravilhosa. Não poderia deixar de caber ao Príncipe dos Prosadores Brasileiros a feliz ideia que associou para sempre o Rio de Janeiro à expressão com ele foi definido pelo escritor maranhense-carioca.
A paixão da família de Coelho Neto pelo Fluminense é notória. Seu filho, Paulo Coelho Neto, é um autorizado historiador do clube das Laranjeiras e de seu pai, ao qual dedicou numerosos livros. Além de Paulo, Emanuel, João, Violeta e outros mais se inseriam na galeria dos atletas do clube, então elitista.
Coelho Neto rompeu o preconceito de que ser torcedor é tarefa de desocupados. O torcedor Coelho Neto surgiu, de forma ostensiva, em 2 de setembro de 1912, quando de seu ingresso no quadro social do Fluminense, proposto por um dos antecessores dos cronistas desportivos, Honório Netto Machado. Quatro anos mais tarde, em 22 de outubro de 1916, houve um Fla x Flu, empatado em 2 x 2, quando o juiz marcou um pênalti contra o Fluminense. O jogador do Flamengo desperdiçou a penalidade, mas a seguir o juiz marcou um segundo pênalti, defendido por Marcos Carneiro de Mendonça, mas o referee mandou repetir o lance, alegando “falta de um jogador do Flamengo”. Com isso não se conformou Coelho Neto que, em companhia do delegado de polícia Corrêa Dutra, pulou a grade da arquibancada social com bengala em riste. A atitude surpreendente gerou apoio da torcida tricolor e o jogo foi anulado posteriormente. Em campo neutro, no caso o do Botafogo, o Fluminense venceu por 3 X 1.
Coelho Neto, com muitos filhos jogando em diversos níveis o velho esporte bretão, os acompanhava em todos os jogos. Assim, os domingos eram inteiramente dedicados aos diversos esportes praticados por seus filhos. De tal maneira que o prolífico escritor passou a emitir opiniões técnicas com grande ênfase, até que seu filho Paulo certa feita não resistiu ao comentário ferino: “Ora, papai! Você pensa que jogar futebol é tão fácil como escrever livros?”. Coelho Neto foi autor do primeiro hino do Fluminense, quando da inauguração da terceira sede do clube. É que o escritor consagrado visualizava na prática desportiva uma forma eficaz de enfrentar os desafios da vida. Em crônica célebre, Coelho Neto contesta tese de um prócer francês e outro espanhol em que ambos condenavam a participação da mulher nos esportes. Recorrendo à sua reconhecida cultura clássica, Coelho Neto sustenta a inconsistência dos desportistas estrangeiros.
Em 1928, Coelho Neto foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros (concurso pelo Malho).
Coelho Neto escreveu a peça Bonança, encenada na inauguração do Teatro Municipal, em 1909.
Coelho Neto escreveu 131 volumes; mas se fosse possível reunir todas as crônicas que publicou em cerca de 70 jornais e revistas do país e do estrangeiro – aproximadamente 8.000 – o total chegaria a 300 volumes. Suas improvisações, mais ou menos 3.000, segundo seus próprios cálculos, dariam matéria para outros 100 livros. Ele deixou cerca de 130 volumes, quando poderia ter acumulado mais de quatrocentos!
A ninguém ocorreria esperar de um escritor de largo espectro como Coelho Neto a excelência em todos os seus numerosíssimos escritos. Há que pinçar algumas obras que mereceriam, como mereceram, os encômios que se seguiram à sua edição. O próprio Agripino Grieco, não afeito a elogios, menciona nove livros como notáveis, a saber: Sertão, Treva, A Conquista, Jardim das oliveiras, a Bico de pena, Rei negro, Inverno em flor, Miragem, O morto. Alceu indica Esfinge como obra de peso e Hermann Lima o mesmo reconhece em Tormenta e Água Juventa.
Aos vinte e nove anos, Coelho Neto publica o seu primeiro romance, A Capital Federal, para Brito Broca uma crônica romanceada. O personagem principal, o jovem Anselmo, vive as agruras da mudança brusca do hinterland para a urbs. Na obra se percebe a riqueza de minúcias, o pitoresco inserido no mosaico de descrições, transformando a narrativa num documentário rico da vida carioca.
Manoel Moreyra sustenta sem rebuços que as seguintes três obras figuram entre as obras primas de Coelho Neto: Inverno em flor, Miragem e Rei Negro. Inverno em flor desenrola pungente drama de uma velhice pecaminosa servida por um elã especial. A loucura e a erótica dominam o romance que talvez antecipe os albores do freudismo, ideia compartilhada por Péricles Morais. Miragem, que revela um certo parentesco com José de Alencar no sentir de Bosi, retrata a miséria. Dada a semelhança com Alencar o uso dos adjetivos e advérbios reafirma o recurso às descrições que irão perdurar até “o advento da revolução modernista”.
Luiz Murat não se conforma. Dirigindo-se a Coelho Neto, aconselha-o: “você tem talento, mas abusa do adjetivo, e tem mania do Oriente. Você é exuberante e excessivo”, para finalizar: “o ideal do artista é a simplicidade”.
O conselho caiu no vazio.
A conquista cinzela o perfil do ser humano, sinalizando para o fim da escravidão. Em Jardim das Oliveiras, conto dialogado, modalidade nem sempre presença nos fastos literários, desenha vultos a viver seus momentos pungentes. Turbilhão é um romance realista, demarcando o sofrimento de uma pessoa pobre, cuja filha havia desaparecido. Um drama conjugal é o tema de A Tormenta. O conto de Coelho Neto mereceu premiação em Banzo, Terra, Sertão, Água de Juventa.
A poesia não figura como marca frisante de Coelho Neto. Faltava-lhe a dimensão metafísica da poesia, bem distante de Hörderlin e da justa asserção de Régis Jolivet, para quem “a poesia é o mistério do homem que dá uma voz e um sentido ao universo”.
Coelho Neto foi, essencialmente, o mestre da palavra. Palavra – Não se trata de sonus, mas de vox, pois segundo Aristóteles, nenhum ente sem alma tem voz. E Förster nos adverte que a “alma da cultura é a cultura da alma”.
A palavra como verbum expressa a riqueza maior do espírito. Verbum inclui verbum mentis ou verbum cordis. Consubstancia a variedade e fecundidade da palavra que flui das profundas camadas da alma. Mas também exprime o cotidiano que desdobra o dinamismo dos seres. De qualquer forma, locutio est proprium opus rationis, no dizer do Aquinate.
Convém recordar que a palavra que emerge da reflexão profunda, está conectada com o silêncio que a precede, pois o silêncio é condição de possibilidade da vigência da palavra que renasce quando a circunstancidade o permitir.
Como mestre inconteste da palavra, Coelho Neto pode exibir o seu vocabulário além de vinte mil palavras. Martins Fontes escreveu: “num sarau em casa de Neto conversávamos com Euclides da Cunha sobre verbos luminosos e ardentes da nossa língua. E Coelho Neto, com o conhecimento inexaurível do nosso vocabulário, começou a amontoar pilhas de verbos. Tomei de um bloco de papel e acumulei no momento duzentas e dezoito moedas”. Segue-se o elenco dos verbos anotados naquela noite: “abrilhantar, aureolar, acender, aclarar, arcoirisar, adurir, assoleimar, afogar, afuzilar, acalorar, alumbrar, abrasar, aloirar, alumiar, aluziar, alvorear, aluzir, alvorar, alvorescer, aurorar, aurorescer, aurorear, amanhecer, ambrear, arde, arser, assolear, aurifulgir, acobrear, arraiar, alvorejar, aluminar, abrasear, abrasificar, aquecer, argentear, argentar, argentizar, arrosear, albirrosar, albirrosear, brasilhar, brilhar, bilhantar, bruxolear, aurigemantizar, auriflamar, auriflamantizar, aurisplender, auritremular, clarear, chamear, comburir, combustar, alraboiar, causticar, cambiar, canjar, chamejar, cobaltizar, cobrear, candentear, coruscar, coriscar, diamantizar, diamantar, dardejar, doirar ou dourar, dourejar, esfoguear, esfuzilar, ensolarar, enlunar, escandear, esbrasear, escandescer, estrelar, estrelejar, estrelecer, esmechar, esmeraldear, esplendecer, esplandecer, esplander, esplender, esfuziar, entreluzir, enfervorizar, enrubescer, enloirecer, escamechar, encadear, encandecer, fagulhar, faiscar, flamear, fopar, fulvecer, favilar, ferver, flamejar, foguear, fulgir, fulminar, fuzilar, faulhar, fulgentear, fulgurear, fulgurar, flamiferver, fulgencear, fulgurear, fulgurescer, fulvejar, estreluzir, ignizar, iluminar, incandescer, encender, incendiar, insolarar, inflamar, iriar, irisar, irradiar, labaredar, labaredear , loirejar, luarizar, loirar, lucilar, luciolar, luciluzir, luaçar, lustrar, luzir, lampejar, lampadejar, lucecilar, multicolorir, nimbar, ourar, oirejar, opalescer, opalizar, prefulgurar, prefulgir, prerfulgir, fosforear, fosforecer, pirilampear, prilampejar, fosforar, fosforejar, platinar, plumbear, preluzir, purpurejar, purpurar, purpurizar, purpurar, queimar, roxear, refaiscar, relustrar, rosiflorir, radiescer, rudiclarear, ruborear, ruborizar, reluzir, relampejar, relampadejar, relampaguear, relampear, raiar, radiar, rutilar, reacender, rosialbar, rosear, rosicolorar, rosicolorir, rosifulgir, rebrilhar, refulgir, resplandecer, resplendescer, resplander, reverberar, revermelhar, rubejar, rubescer, relumbrar, rescintilar, rescentelhar, refagulhar, centelhar, sobredoirar, cintilar, siderar, translucidar, transluzir, transparecer, transfulgurescer, tremeluzir, transverberar, translumbrar, vislumbrar, vermelhar, vermelhejar, vermelhear, versicolorir”. E acrescentou o mesmo escritor: “E não estão todos. Faltam muitos ainda, espelhantes das cores e das gradações cromáticas".
Coelho Neto escreveu: “pouco a pouco fui desbastando do meu estilo os guizos de muitos adjetivos para substituí-los por um só, exato” Comentando a afirmação, observa Otávio de Faria, “O termo exato... Eis, sem a menor dúvida, o eixo básico da evolução de Coelho Neto como escritor. Consciente da insuficiência da palavra escrita, tentou animá-la, colori-la, vivificá-la, dar-lhe a inflexão sem a qual jamais poderia exprimir adequada, exata, perfeitamente, o que ia à sua mente prodigiosamente rica e variada. Para tudo e em todas as ocasiões, buscou a palavra exata e diante dela não recuou, usando termos raros, absolutamente inusitados, terrivelmente difíceis. Que importava? Não estava sendo fiel, integralmente fiel ao princípio de um de seus grandes mestres, Maupassant que ensinava:” Seja o que for que se pretenda exprimir, não há senão uma palavra para o dizer, um verbo para o animar, e um adjetivo para o qualificar “.
O homem suplanta os sinais para pervadir o espaço dos signos. Ele é autenticamente um animal symbolicum. Consoante o assente Ernst Cassirer. “Sem o simbolismo a vida do homem assemelhar-se-ia à dos prisioneiros da caverna na famosa imagem de Platão. A vida do homem confinar-se-ia aos limites das suas necessidades biológicas e dos seus interesses práticos; não poderia encontrar qualquer acesso ao ‘mundo ideal’ que lhe é aberto de diferentes lados pela religião, a arte, a filosofia, a ciência”.
Ao vir ao mundo, o homem como que pede a palavra, a fim de dizer ao que veio, ao explicitar os seus pensamentos, desejos, volições. A expansão da personalidade se prende à ampliação do espaço concedido à palavra.
O homem persegue o sentido. O desespero lhe vem da aparente inutilidade da busca. Até mesmo Nietzsche asseverou que “eu não desespero de encontrar um dia um caminho que conduz a algum lugar”. É o pressentimento do Encontro que se dará quando o ouvido humano ficar atento à Palavra. Pois é de palavra que se trata sempre que perseguimos a finalidade última de nosso destino.
No limiar da palavra, o ser humano se percebe acima de quanto o circunda. Conscientiza a sua condição de rei da criação, de timoneiro da nave que cifra o seu caminhar, no meio das borrascas que emergirem em seu itinerário. E só pela palavra ele se afirmará, a partir do nome que portar e da mensagem que ousar transmitir ou receber, nesse lusco-fusco que encobre aqui e ali a luminosidade prestes a se manifestar.
Nascido da Palavra, o homem, pela palavra, reencontra a Palavra que selará o seu caminho como luz e amor.
Coelho Neto fez da palavra a sua religião literária, dela e para ela viveu e se transformou no monumento de nossa cultura pela fidelidade e tenacidade com que, partindo das palavras em demasia, buscou na maturidade reduzir os vocábulos em busca da palavra exata. Por este motivo conquistou o seu lugar em nossas letras. A disparidade de juízos de valor sobre o mestre maranhense talvez se prenda à diversidade dos momentos e fases de sua longa vida, estuante de amor pela língua, pela pátria e especialmente pela expressividade artística in genere em que pôs todas as suas complacências.
Coelho Neto mergulhou na riqueza ignota de nosso idioma privilegiado e nele fincou as raízes de seu opus. Daí a pletora de vocábulos que deixaram a zona sombria em que os esquecemos e trouxe para a luz solar que se espraiou aos seus leitores.
Otávio de Faria, seu ardoroso defensor, tem Coelho Neto como um autor difícil, e assente: “Coelho Neto não é um autor fácil. E não o é, sobretudo, para a nossa comum e moderna ignorância da língua portuguesa. Dono de um prodigioso vocabulário – calculado em mais de vinte mil palavras – sabendo manejá-lo e manejando-o com plena convicção do acerto com que o fazia, não podia deixar de se tornar difícil de entender, às vezes mesmo misterioso para a ignorância de muitos. Um empolado? Um gongórico? Um cego apologista do culto do estilo pelo estilo? Um escravo da forma? Todas essas acusações foram formuladas, exploradas. Fizeram delas mesmo o cavalo de batalha de mil condenações, às vezes levianas, às vezes ridículas. E foi preciso que o tempo e o bom senso dos críticos as dissipassem estrepitosamente para que a verdade enfim se restabelecesse a respeito do estilo de Coelho Neto”.
Pode-se falar numa espécie de ascese literária, uma limpeza de texto tese chocante se levarmos em conta a presença maciça de palavras fora de uso comum, mas patrimônio inesquecível de um idioma com toda uma coorte de cultores que espargem pelos quatro cantos do mundo a bela língua que herdamos e em torno das quais respiramos valores, costumes, com a qual fortalecemos as nossas instituições. Um escritor que pôs em marcha em numerosíssimos escritos o reconhecimento explicito e cotidiano da fecundidade da língua portuguesa, só por isto merece o respeito e a admiração dos brasileiros. Ele realizou tal obra ancorando em todos os gêneros literários e abrindo as portas de sua oratória belíssima para mais diretamente dizer ao que veio.
Coelho Neto sempre vincou sua presença como homo politicus, no sentido helênico da expressão. Preocupava-se com o País e explicitava o sentimento pátrio em discursos fulgurantes cinzelados com um ardor poucas vezes encontradiço. Mormente porque não o conduzia a ambição política. É bem de ver que havia um certo provincianismo em suas falas. Hoje, quando o sentimento de amor a terra há de forçosamente conjugar-se com a consciência da aldeia global, impossível seria qualquer opção radical; ainda por ai se pode lobrigar o distanciamento em que nos encontramos do ilustre e saudoso Acadêmico, dada a extraordinária mudança no ritmo da história com a quase supressão do espaço e do tempo nas relações humanas.
De um escritor que produziu grande número de obras, publicou milhares de artigos, proferiu conferências e discursos também aos milhares não se poderia idoneamente exigir qualidade permanentemente superior. O descompasso fluiu até da necessidade premente de sobreviver da pena, o que situa Coelho Neto como um modelo de profissional da pena.
CONCLUSÃO
Impende analisar a obra de Coelho Neto à luz de sua época, de sua condição inelutável de ser situado. Por vezes, cuidamos que tal cautela não comparece ao palco iluminado da crítica. Assim, que sentido teria chegarmos às culminâncias, por exemplo, do evangelho literário de Italo Calvino para com seus passos acelerados em direção do novo milênio e procedermos ao pente fino de seu ideário estético e ético no julgamento dos literatos? Coelho Neto não teria ultrapassado a barreira da primeira configuração ditada pelo talentoso crítico quando se estende sobre a leveza. Até porque para Calvino, “a literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão da peste da linguagem”.
Deixando de lado o horizonte fantástico de Calvino e volvendo à planície de nossa literatura brasileira de fins do século XIX e no primeiro terço do século XX, cumpre-nos reconhecer a figura esfuziante de Coelho Neto. Pleno de domínio de nossa língua, elevando-a a patamares insuspeitados para lhe reconhecer os méritos e resguardar-lhe a memória, foi escritor primoroso e fiel ao seu ofício como poucos o souberam ser.
A morte, companheira inseparável de todos os seres vivos, segregou em capítulos a sua vinda misteriosa e fatal. Saúde precária, em face do labor febril e da necessidade de prover a numerosa família, Coelho Neto viu-se forçado, certa feita, até a vender tudo o que possuía de algum valor para enfrentar período de enfermidade pertinaz. Chegou a abandonar a sua cidade maravilhosa demandando a cidade de Campinas em que nasceu Carlos Gomes até que dois golpes profundos lhe vincaram a alma, a perda de seu filho Mano (Emanuel) e de sua esposa Gabi (Gabriela). A fragilidade natural se viu agravada por maneira a indicar o seu fim próximo, ocorrido em 28 de novembro de 1934.
Sorveu a vida com ardor e devoção. Não se ateve a doestos e críticas acerbas. Iluminou-lhe o caminho a palavra forte pela qual pautou os seus atos: perge, isto é, segue adiante, não te voltes para trás.
A ansiada participação cultural, política, desportiva desabrochou em Coelho Neto o grande orator. Amante da cultura grega, por vezes ele nos relembra a eloquência ática. No concernente ao apuro da forma, é uma espécie de Isócrates redivivo, para quem o conteúdo é menos relevante do que a beleza estética do discurso. É oportuno recordar que a retórica demorou a se impor entre os gregos. Aristóteles assinala que isto se deveu à abolição da tirania.
Os eventos cívicos se prestaram especialmente para que Coelho Neto externasse os seus invulgares dotes oratórios. Ao lado de Joaquim Nabuco, de Teixeira Mendes, de Tobias Barreto, de Rui Barbosa, Coelho Neto figura entre os grandes de nossa eloquência. Seu desmedido arco vocabular, seu empenho de ordenar ritmicamente as frases, ensejando uma musicalidade que a sua dicção favorecia, garantiram ao polígrafo sua inclusão dentre os mais prodigiosos oradores de nossa história. Escritor, ser participativo, artista da palavra, orador, eis em síntese o perfil de quem para muitos foi o nosso maior escritor. Membro e depois presidente desta Academia, Coelho Neto foi plenamente fiel à sua pena rica e fecunda e alargou os horizontes de nossa língua, revelando-lhe a beleza e a plasticidade e assim alçou seu voo seguro para a imortalidade.
*Conferência proferida pelo acadêmico Tarcísio Padilha, na Academia Brasileira de Letras em 25 de abril de 2006, no ciclo sobre Fundadores da ABL.