Além do resultado de 9 x 0, o julgamento do STF desta semana apresentou outra unanimidade: o voto da relatora Cármen Lúcia, considerado histórico e, como tal, seguido por todos os seus pares. Não chegou a ser surpresa para os que a conhecem e, devido à sensatez, a chamam de “Cármen lúcida”. Primeira a votar, foi também a primeira a usar com todas as letras a palavra “censura” para caracterizar a exigência de autorização prévia para uma biografia. E a censura, como explicou, é proibida pela Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão, de pensamento, de criação artística e científica. Admitiu que “há riscos de abusos no dizer e no escrever, mas a vida é uma experiência de riscos”. E para os riscos há a solução de buscar no Judiciário as reparações para os eventuais danos morais. O que a Constituição não permite, ela acrescentou, é que, a pretexto de se preservar a intimidade de alguém, abolir-se o direito à liberdade do outro, principalmente em casos como o das obras biográficas, “que dizem respeito não apenas ao biografado, mas a toda a coletividade”. Entremeando no seu douto parecer o saber jurídico com ensinamentos da vida real, a que está sempre ligada, a vice-presidente do STF lembrou uma ciranda de roda de sua infância (“cala boca já morreu quem manda na minha boca sou eu”) e recorreu a um poético jogo de palavras: “Na vida aprendi que quem por direito não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito”.
Fora do STF, Cármen Lúcia é uma cidadã capaz de frequentar festa literária e participar de debate público, expondo suas opiniões, como fez recentemente (“Esse Estado como está estruturado não atende mais a sociedade. O que era esperança na década de 80 pode se transformar em frustração, cujo risco social é se transformar em fúria. E quando a fúria ganha as ruas, nenhuma ideia de justiça prevalece”).
E tudo isso sem deixar de ser dona de casa, que faz compras no Mercado Central de Belo Horizonte, onde viveu a seguinte cena:
— Então, procuradora, como vai a senhora?
— Pois é, seu Manuel. Não sou mais procuradora, agora sou ministra do Supremo Tribunal lá em Brasília.
— Não se incomode. Hoje a gente está por cima, amanhã por baixo. Fique tranquila que a senhora vai melhorar. Quem sabe volta a ser procuradora.
Também já foi confundida com ela mesma por um motorista de táxi:
— A senhora é muito parecida com aquela juíza de Brasília.
— O senhor não é a primeira pessoa que diz isso.
Agora, é possível que não possa mais se divertir com o anonimato. Ela não mais se parece, ela é “aquela juíza de Brasília”.