Enquanto dizíeis, Sr. Levi Carneiro, a formosa oração de posse que vimos de aplaudir, uma alucinação me visitava.
À medida que íeis falando, o conspícuo e maduro varão que sois agora voltava a ser, exultante de alegria, o jovem e obscuro causídico de 1906. Mudava simultaneamente de feitio e colorido o traje aparatoso e incômodo em que estais encarcerado. O tecido se distinguia desse verde austero, solene, oficial que, conforme acentua a malícia de Henri Lavedan, é justamente a cor do absinto, da bile e da esperança, e convém por isso mesmo a um uniforme como o nosso, motivo de tantas satisfações capitosas, de muitas ironias amargas, de tantas ambições berrantes ou tímidas. Mãos invisíveis modificavam o corte, desfazendo e refazendo as costuras e reajustando os panos. De tal jeito que, em breve, o fardão vistoso estava reduzido a fato prosaico de linho branco. O suntuoso chapéu armado tomava, por sua vez, indignado com a humilhação, a matéria e o formato de palheta democrática; e, tinindo de raiva e de vergonha, o espadim cerimonioso e incruento se via transfigurado em simples bengala.
Não mais nos encontrávamos, nós ambos, à hora que passa, neste recinto engalanado; e sim à distância de três decênios, lá fora, perdidos na turba anônima. Reintegrado miraculosamente na juventude, vivíeis de novo os minutos de arrebatamento, que fixastes mais tarde em página saudosa. Um deslumbramento vos alagava os olhos fitos em alguém que, vindo de muito longe, depois de larga ausência, aqui desembarcava, como se, redivivo, exsurgisse dos limbos do passado, para ouvir nas aclamações dos moços o pronunciamento do futuro.
O condestável da Abolição
Joaquim Nabuco ali estava, suportando airosamente o confronto com a imagem radiosa, que dele a tradição legara à minha geração e à vossa. Era bem o exemplar augusto, que imaginávamos, de uma variedade insigne da espécie humana, inconfundível com a raça inumerável dos efêmeros; e se aproximava bastante do tipo ideal, com que sonhávamos, para a alma e para a carne do Brasil.
Dir-se-ia, quando o conhecemos sexagenário, que, em pleno viço e robustez, houvesse encanecido repentinamente. Sabedora de que se não julgava “feito para velho”, a Fortuna, sempre condescendente, não lhe embotara no espírito aquela sensibilidade “às surpresas da vida”, em que ele enxergava lucidamente o sinal específico da juvenilidade. Nem lhe profanara a altivez do porte, a esbelteza do talho, a galhardia da cabeça impressionante, o rosado da tez, a pureza dos traços, a elegância do gesto e o volume e o timbre da voz poderosa e suave, caudal harmonioso que para dentro das consciências carreava idéias cristalinas e saudáveis.
Há crepúsculos que resumem às pressas o melhor de cada uma das estações do dia: a madrugada, ao despertar, meio tonta, da embriaguez das trevas; a manhã risonha e corada, que, como a noiva do poema de Cassiano Ricardo, promete muito e “falta sem querer”; a tarde, que é toda ela uma carícia lenta, silenciosa e lasciva; a noite, com a sua profunda e insidiosa poesia. Era assim o caso de Joaquim Nabuco. A velhice limitara-se a pratear-lhe os cabelos, como se quisesse apenas acrescentar às graças remanescentes dos verdes anos e às virtudes intactas da madureza a dignidade, que a neve imprime à culminância das montanhas menos distantes do céu e à fronte das criaturas mais próximas da morte. Não mutilara, estólida ou estouvadamente, o mármore. Dera-lhe, sim, com a pátina do tempo, o acabamento e a expressão definitiva.
Sofrendo-lhe a ação de presença, compreendíamos e perdoávamos a ternura escandalosa com que fora amado pela vitória e servido pelo destino.
É com um “sorriso de doçura” que o recebe o mundo. É com o mesmo sorriso que o acompanha ao longo de sessenta anos vividos à feição de lindo “sonho realizado por especial favor da Providência”. É com igual doçura que, depois de seu desaparecimento “na curva extrema do caminho extremo”, lhe recorda a figura de singular nobreza.
Palavra não existe que o defina todo inteiro, física, moral e intelectualmente, como essa tão desgastada pelo uso, mas de tão alto sentido, se por nobreza entendermos, à maneira de Ruskin, humanidade intensa. O efeito que nos contemporâneos produz a contemplação do homem não diverge do que desperta na posteridade a visão da obra do escritor e do político. É, incisiva e imperiosa, uma sensação de superioridade orgânica. É aquilo que certa vez ele chamou “a impressão aristocrática da vida”.
Pode-se-lhe aplicar o que Hugo von Hofmannsthal escreve de algumas criações varonis de Shakespeare: a atmosfera olímpica de que estão cercados Hamlet, Romeu, Antônio, Mercúcio, Tibaldo parece penetrá-los até ao inconsciente, como a luz doirada em que se fundem os personagens de Giorgione e Ticiano. São todas integralmente nobres, porque neles coexistem, dosadas com precisão, em perfeito equilíbrio, as qualidades mais diversas: a energia máscula e a delicadeza feminina, a altivez e a cortesia, a gravidade e a gentileza, a intrepidez e a moderação, a cordialidade policiada pela reserva, que lhe proíbe a intemperança, a generosidade envolta na discrição, que é o seu pudor. Nada de subalterno: desconhecem o próprio disfarce inteligente da crueldade, que é a ironia. Nenhuma vulgaridade: cada um deles constitui, por assim dizer, um fragmento de rei.
É com essa família privilegiada que se aparenta Joaquim Nabuco. Ninguém mais fidalgo. Na substância e na aparência. Tanto na limpeza da linhagem quanto nas atitudes. Assim nas idéias e nos sentimentos como na linguagem. Sempre e em toda a parte: na atuação parlamentar, na atividade literária, na vocação diplomática.
Nasce em um sobrado do Recife, trazendo nas veias o sangue preclaro de morgados do Cabo e senadores do Império. Cresce no ambiente arejado e sadio de engenho de Massangana, que a sua meninice tornaria ilustre. Mãos de arminho alvas e macias, conformam-lhe o coração. Mestres esclarecidos lavram-lhe a inteligência. Aprimora-lhe o gosto e a distinção o comércio com os artistas, os diplomatas, os vultos mais eminentes da época, a gente educada, e fidalga, que freqüenta a casa paterna à Rua da Princesa, canto da Praia do Flamengo.
Vai para São Paulo, onde encontra a Faculdade egrégia na fase mais rutilante da sua história. É discípulo de José Bonifácio, o Moço, professor de liberalismo romântico. Faz-se amigo de Rui Barbosa. Rende-se, como todos, à fascinação de Castro Alves. Aprende com eles o entusiasmo pelas batalhas do pensamento, a paixão da liberdade, a religião do direito, coisas que os moços de então consideravam sublimes e os de hoje, famintos de autoridade, sedentos de disciplina, dispostos a todas as demissões e renúncias, averbam de abusões decrépitas, como se velhas e absurdas não fossem a absorção total do indivíduo pela massa e a idolatria do Estado, onisciente, onipotente, onipresente.
Seguem-se, na biografia de Nabuco, a iniciação literária, assinalada pela descoberta de Camões e de Renan; a primeira viagem à Europa, que empreende com a emoção e com o alvoroço de quem vai a uma entrevista de amor; o ingresso na diplomacia, para a qual parece fabricado acintemente. Carreira não há, com efeito, mais acorde com os seus pendores mundanos; e ainda com o desejo, tão natural naquela idade, de esgotar as curiosidades do espírito e dos sentidos; e também com a atração, felizmente passageira, que sobre ele exerce o diletantismo, o “lazzaronismo intelectual”, a volúpia de gozar gratuitamente, de longe, trepado no egoísmo de simples observador, o espetáculo tumultuário da grandeza e da miséria humanas.
Está em Londres com o rosto assim voltado para o nada (é de Mauriac a imagem), quando o apelo da terra distante lhe sacode o coração distraído.
Regressa ao Brasil. A Câmara dos Deputados abre-lhe as portas, o que, aliás, costuma fazer sem maior dificuldade a toda a gente.
Aí, onde tantos encontram um meio de vida, Nabuco depara, face a face, com a suprema razão de viver, a vivendi causa, a que alude Lucrécio. Dez anos consomem, ele e seus companheiros de jornada sentimental do abolicionismo, em despertar o remorso da escravidão na consciência nacional anestesiada pela indiferença diante de um crime que data de três séculos; em aliciar e mobilizar as almas para o combate à grande iniqüidade; em formar e apertar o sítio do poder pelas forças imponderáveis da opinião. Chega o triunfo mais depressa do que promete a esperança. Digno remate de uma campanha desencadeada pelo Poeta dos Escravos, a princesa regente se decide a trocar, num gesto bem feminino e com um desprendimento bem lírico, o cetro dourado, que o pai lhe confiara, pela Rosa de Ouro, que Leão XIII lhe oferece.
Durante a luta (é ele que o proclama lindamente) os líderes se identificam de tal modo com a causa e se despersonalizam a tal ponto, que se lhes perguntarem pelo nome nenhum deixará de responder, como Ulisses ao ciclope cego da epopéia homérica: “Eu me chamo Ninguém.” Mas no dia da vitória, quando, talqualmente no-lo mostra José do Patrocínio, o deputado pernambucano aparece à janela da Cadeia Velha, com os cabelos empapados de suor, os olhos úmidos de felicidade, o semblante iluminado pela chama que lhe abrasa o peito, a multidão lhe confere por aclamação unânime as insígnias de libertador da raça espoliada, a investidura de Condestável da Abolição.
Sente-se desde esse instante na obrigação moral de consolidar o trono, abalado em seus fundamentos pelo movimento emancipador. Mas é em vão que desfralda a bandeira da Monarquia Federativa. O golpe militar de 15 de novembro vem como conseqüência lógica, embora injusta, da lei de 13 de maio.
Nabuco aproveita o longo ostracismo, a que espontaneamente se condena, para meditar e escrever.
Medita. Com a atenção disputada por outros interesses, nunca tivera o ensejo, que a inatividade forçada lhe concede nesse momento, de “pensar sozinho”, conversar mão por mão consigo mesmo, freqüentar com assiduidade a própria alma, de que, a exemplo do que amiúde acontece em todos nós, andava inteiramente deslembrado. A meditação leva-o devagarzinho à certeza que Madame de Staël adquiriu na leitura da Imitação de Cristo: a fome que nos devora não é de felicidade, mas de perfeição. Ele que não sabe onde e quando poderá avistar-se com Deus, vai achá-lo um dia muito simplesmente na cruz de sua infância, que lá está em pedaços no fundo do coração, e que, restaurada, finca de novo no alto da consciência.
Escreve. Pensador, tem predileção pelas máximas, concentrando destarte em comprimidos de sabedoria o fruto de sua experiência abundante dos homens e o resultado de suas excursões através dos sistemas e pelas províncias da arte. Político em disponibilidade, entrega-se a investigações históricas. Nada mais natural. O passado é o único refúgio de quem se não conforma com o presente e não confia no futuro. A História, o derivativo por excelência dos que se afastam, premidos pelas circunstâncias, do meneio dos negócios públicos; porque, dentre todas as musas, é Clio que lhes permite a ilusão de que continuam a intervir, pela narrativa e pela crítica, na marcha dos acontecimentos em que estão privados de colaborar pela ação direta.
Mas, felizmente para nós, não dura muito para ele o suplício, da atividade acorrentada, a que o chumbara a fidelidade estéril a um ideal defunto.
Cometem-lhe o encargo de vindicar uma faixa de nosso território, disputada por vizinho poderoso. Salta aos olhos que só o mandamento inelutável do patriotismo teria força bastante para constranger um espírito como o dele, afeito à pesquisa imparcial da beleza e da verdade, a confinar-se durante anos a fio na destrinça miúda e na discussão tediosa de centenas de documentos rebarbativos, e a acompanhar penosamente, através do inferno verde dos trópicos, o trâmite obscuro do Mahú, do Tacatu, do Cotingo... ele que não conhecia senão as ribanceiras tranqüilas do Capiberibe e do Piabanha e as águas ilustres do Tibre, do Sena e do Tâmisa... Não faltam, apesar de tudo, energúmenos que o acusem de deserção, como se a alguém fora lícito indagar quem está à frente da governança da terra comum, quando chamado a defender-lhe a integridade ou o pundonor. É o mais inteligente e impenitente paladino de velho regime, é Eduardo Prado que esfrangalha a increpação com duas linhas terminantes, em resposta à consulta de seu grande amigo: “Aceite, e se quiser levar-me para secretário aceitarei também.”
Se lhe aproveitassem a sugestão, bem pode ser que ele evitasse o único deslize ocorrido no desempenho do mandato incomparável: a proclamação precipitada de um fracasso relativo. Os romanos ouviram de Ênio há vinte séculos a advertência que ouvimos de Foch há vinte anos: ninguém deve considerar-se vencedor, enquanto o adversário se não confessar vencido. Ora, nenhuma das partes poderá dizer-se vencedora ou vencida, em face de um laudo, que pretende inspirar-se na equidade, por não encontrar elementos para uma solução fundada no direito. Quem há, todavia, que não compreenda a amargura do patrono, diante do malogro parcial de seu trabalho gigantesco!
Ainda nessa provação a fortuna se lhe mostra compassiva. Porque mais justo do que o juiz na decisão do pleito se revela o cliente no julgamento do advogado; o que é de todo em todo excepcional em uma profissão como a nossa, que comparte especialmente com a Medicina, o privilégio detestável de fazer ingratos.
Pela voz altíssima de Rio Branco e de Rui, a que outras se juntam, autorizadas, como a de Oliveira Lima, de cuja sinceridade não há suspeitar, a Pátria manifesta a Nabuco a admiração e o reconhecimento de que lhe é devedora; e, numa soberba reafirmação de confiança, manda-o logo após a Washington, como embaixador do governo e também como espécime enganoso da civilização do Brasil.
Tal o homem, rico de bens imperecíveis, que naquela tarde longínqua de 1906 acompanhastes através da cidade, a que voltava para cimentar a cordialidade e a compreensão entre os povos do continente; e, algumas noites mais tarde, ouvistes pronunciar no antigo Cassino Fluminense uma oração de serena e harmoniosa eloqüência, que cantando vos ficou para sempre na memória. Vendo-o, ouvindo-o, sabendo-o tão adulado pela vida, sentistes decerto no coração, como os jovens do meu e do vosso tempo, não o despeito rasteiro dos invejosos que lhe mordiam ou sujavam os calcanhares, mas o desejo impetuoso e salubre de chegar um dia à altura de seus ombros.
Quem vos diria então, Sr. Levi Carneiro, que ao termo de seis lustros, seríeis chamado pela justiça da Academia a receber em depósito o espólio aqui deixado por esse eleito dos deuses? E como poderia ele adivinhar que vos tinha indigitado ao sufrágio dos vindouros, quando reclamava que para esta Casa confluíssem todas as forças representativas de nossa cultura, todas as correntes poderosas de nossa inteligência?
Era com a latitude que às Letras confere Descartes no Discurso do Método, era assim que ele concebia o Instituto, de cuja fundação participara. Queria franqueá-lo aos valores autênticos da nacionalidade, que tivessem por denominador comum o espírito. Sonhava-o à maneira de um Senado do pensamento brasileiro.
Houve, o que é natural, quem impugnasse a fórmula, por muito ampla. Houve, o que é humano, quem se atrevesse a deformá-la e fraudá-la em proveito de vaidades arreadas de prestígio. Houve, o que é doloroso, quem a aplicasse, desvirtuada, à sucessão do próprio autor de Um Estadista do Império, de Minha Formação, de Balmaceda, substituindo-o por alguém que com a maior naturalidade proclamava conhecer-lhe apenas pela rama a produção literária.
A concepção que de sodalícios como este formava Joaquim Nabuco tem o abono insuspeito de Paul Valéry. Tanto basta para lhe demonstrar a exatidão: porque, no dizer de Proust, o encontro fortuito com um grande engenho constitui o único meio de verificação do acerto de nossas idéias.
Entre os encantos da ilustre Companhia, a que pertence, o delicioso estilista do “Cântico das Colunas” encarece o fato de se não tratar de simples coleção de literatos. É que dificilmente se entendem os oficiais do mesmo ofício; e, na melhor hipótese, a convivência não lhe dilata os horizontes. Enquanto que o comércio de personagens dessemelhantes, do filósofo com o militar, do historiador com o romancista, do diplomata com o filólogo, se processa à maravilha, indene dos atritos suscitados por dissidências de escolas e envenenados por ciúmes ou ressentimentos pessoais. São curiosidades que se abordam com prazer, interesses que se aproximam com proveito. Nada mais útil e saboroso do que colher ao acaso, de passagem, o fruto da experiência de outras vidas em domínios que a gente não conhece ou não freqüenta.
Causaria espanto a ausência de juristas em corporações assim constituídas. Há-os de sobra e em toda parte. Até no Céu, em que doa aos maldizentes. Lá se encontram cinqüenta, pelo menos, devidamente canonizados. É possível que os haja também no Inferno. Mas não é certo. O último recenseamento, de que temos notícia por um médico de Cleves, data do século XVI. Acusa a existência de 72 príncipes das trevas e 7.405.926 danados, precisamente, sem tirar nem pôr. Omite, porém, os dados referentes à profissão anterior dos condenados aos círculos dantescos; de sorte que nenhuma conclusão positiva nos permite.
Tão excusada seria a indagação dos fatos que levaram alguns colegas nossos à bem-aventurança, e outros, eventualmente, ao fogo eterno, quanto à enumeração dos motivos por que muitos encontram agasalho nos meios acadêmicos.
Haverá, com efeito, quem não saiba que a arma do causídico é a palavra? E que para a palavra o estilo significa o mesmo que para o aço constitui a têmpera? E que o advogado tem por missão precípua convencer os tribunais? E que não poderá fazê-lo, se incapaz de dizer o que pensa com limpidez são consubstanciais à sua nitidez e transparência? E que portanto o exercício de vosso ministério exige, a par de qualidades insignes de outra ordem, virtudes eminentemente literárias.
Mais não é preciso para justificar a presença constante, em corporações desta natureza, de homens de vossa espécie. O exemplo vem da Academia Francesa, excelso paradigma de todas as congêneres. Já na sua origem se vislumbra a influência de um ex-advogado. Sujeito menosprezível aquele Boisrobert “causídico sem causas, sacerdote sem religião, poeta sem estro”, que, depois de haver trocado a beca pela batina, passou a desempenhar junto a Richelieu os papéis de bufão e de novidadeiro, divertindo-se nas horas vagas em cavalgar um desasado Pégaso trotão. Foi ele, entretanto, quem sugeriu ao cardeal a transformação do modesto cenáculo de Conrart e seus amigos em instituição do Estado.
Essa, talvez, a nascente mesquinha da tradição multissecular que atribui às eminências da advocatura um lugar sob a cúpula. Aí se vêm sucedendo, quase sem descontinuidade, os mestres gauleses da eloqüência judiciária, desde Olivier Patru, a quem se deve a iniciativa dos discursos de recepção, e Malhesherbes, que em paga da defesa heróica de Luís XVI foi arrancado da tribuna para o cadafalso, até Berryer, Jules Favre e, em nossos dias, Henri Robert, tão apaixonado pela profissão que do trato diário dos auditórios se desenfadava, pleiteando a revisão dos grandes processos do passado perante a Corte Suprema da História.
O advogado
Sois digníssimo, por vários títulos, de figurar entre as forças espirituais a que aludia o fundador sobreeminente da Cadeira de que passais a ter de hoje por diante o condomínio.
Bem mereceis o elogio que fizeram certa feita de Pedro Lessa. O renome que vos ilumina o cimo da existência, talqualmente a claridade que sobredoira ao entardecer o viso das serranias, não é presente fácil do acaso, mas fruto de labor cansado e paciente. Em vez de subir, como tantos, de improviso, à feição da labareda que impetuosa se levanta e logo se apaga, ou à imagem da fumaça que rápida se eleva e se desvanece de pronto, crescestes com o vagar poderoso das árvores de lei.
Tanto que viestes ao mundo, alguém vos tomou nos braços descarnados. Nutriu-vos com o suco de ervas amargas e salutares. Enrijou-vos a vontade, brutalizando-a contra os obstáculos que multiplicava à frente dos deveres. Tornou-vos hospitaleiro o coração e intrépida a inteligência. Educou-vos no orgulho de só adquirir à custa do próprio esforço aquilo que se quer, e o segredo de fabricar a alegria com o trabalho. E só vos abandonou quando passastes da obscuridade à evidência.
Não era nenhuma dessas miss ou fraulein, a quem a preguiça elegante dos pais costuma delegar a formação moral dos filhos. Mas a Necessidade ou, mais cruamente, a Pobreza... companheira melancólica dos santos e dos poetas... operária mesquinha das obras heróicas... mestra insuperável, que, longe de propagar o desalento ou a revolta, como a miséria, sua irmã bastarda, ensina a temperança e a coragem, o poder miraculoso da energia, a eficácia magnífica do sacrifício.
Mal saído da adolescência, conquistastes em concurso o emprego que vos permitiu estudar. Não vacilastes em renunciá-lo obtido o diploma, como quem retira os andaimes, terminada a construção, e sozinho, desajudado, desconhecido, iniciastes a vida profissional. O gesto denuncia o que na vocação tendes de orgânico e de robusto no caráter.
Sonhastes, como sonham todos, com o primeiro cliente. Quem viria enviado pela Providência, ao encontro das forças que impacientes dentro em vós se acumulavam e comprimiam? Talvez (tudo é possível) um banqueiro, atraído pelo fulgor da placa novinha em folha e enganado pelo prenome israelita que recebestes no batismo. Talvez (a sorte é caprichosa) o autor ou, de preferência, a autora de um desses crimes passionais que asseguram a impunição ao criminoso e ao patrono a popularidade. Mas, como sempre acontece, começam a deslizar mansamente os minutos vazios, e as horas se escoam monótonas de ócio involuntário. Nada. Ninguém. A esperança vai fazendo abatimentos sucessivos. Até que um dia o encoberto se revela, o constituinte se traduz em carne. Que decepção! Em vez de Rotschild ou de Madame Caillaux, com que contávamos, surge o vendeiro da esquina ou o desordeiro suburbano. Por mais que tenha perdido em prestígio e imponência, na longa trajetória da fantasia à realidade, bendito seja o desgraçado que ingenuamente se entrega à inexperiência de um principiante!
O vosso não se apresentou sob o feitio planturoso do capitalista nem sob a espécie adorável da mulher bonita. Longe disso. Era um pobre velho, metido na cadeia pelo credor implacável. Não pudera pagar o empréstimo disfarçado em depósito. Quanto mais os honorários! Pusestes, entretanto, na defesa do coitado a argúcia e o entusiasmo com que na corte luminosa de Pórcia defenderíeis contra o ódio teimoso de Shylock o simpático Antônio; e, à guisa de salário, tivestes a emoção de ver dois olhos humildes afogados em lágrimas.
Outros vieram, cada vez mais numerosos e graduados, à proporção que em torno de vosso nome a estima dos colegas, o apreço dos magistrados, a irradiação de trabalhos forenses e doutrinários iam tecendo uma reputação crescente de competência e probidade. Chegou afinal o momento em que vos bateu à porta do escritório o maior dos clientes imagináveis. O mesmo que certa vez se confiou a Nabuco. Daquele velhinho anônimo que livrastes da prisão por dívida, ao Brasil, de que fostes o consultor jurídico, em fase de confusão e intranqüilidade, que distância incomensurável! Para vencê-la sem parar no meio do caminho, derrotado pelo desânimo, e sem perder o rumo exato, desgarrado pelas sensações, quanta firmeza nos propósitos, quanta perseverança nas virtudes, quantas imolações ignoradas pela incompreensão da clientela ou baldadas pela distração dos tribunais! Mas que ufania em triunfar lisamente como triunfastes, podendo afirmar, como fizestes, de cabeça erguida: “Nunca pratiquei a advocacia dos berros ou dos cochichos... nunca pedi para mim, nem me inculquei... nunca tive protetor, chefe ou patrono...”
Galgastes dessa forma, em diuturna e áspera escalada, as culminâncias da carreira que singularmente enobreceis e prezais.
Dissestes de público os motivos por que lhe benquereis, com ternuras de filho e extremos de namorado, “na sua beleza, na sua força, nas suas aflições; no que comporta de lealdade, abnegação, desinteresse; no que proporciona de independência, no que ensina de tolerância”. Ninguém ama verdadeiramente senão aquilo em que de certa forma se reconhece. Tudo quanto a advocacia proporciona, exige, comporta e ensina, tudo corresponde aos instintos profundos e às tendências dominantes de vossa personalidade: temperamento combativo e apaixonado; vontade ciumenta de própria autonomia; caráter feito do mais indúctil dos metais preciosos.
Não vos limitastes a proclamar em páginas de fino lavor quanto amais o ministério que elegestes. Desse fervor, que amiúde é puramente retórico e platônico, haveis dado testemunhos cabais e repetidos.
Vossa, em boa parte a organização vigente da profissão. Vossa, a idéia da federação dos institutos regionais. Vossa, principalmente, a realização de um ideal que vinha de Montezuma, com a criação da Ordem dos Advogados do Brasil, votada à seleção, disciplina e defesa dos interesses morais da classe. Dez mil confrades espalhados pela vastidão da terra comum vos ergueram à presidência do Conselho Federal, ou seja, ao governo supremo do organismo que os representa e coliga. Haverá quem reconheça em vós o generalíssimo do exército que nas trincheiras do foro se bate pela causa do Direito. Com o meu horror ingênito à ênfase direi singelamente que mais alto no conceito dos companheiros não poderíeis subir.
Preocupa-vos sobremaneira o decoro da comunidade. A vigilância que exerceis, entretanto, não é a de bedel rabugento, mas a de zeloso pai de família. Intransigente nas questões essenciais, tendes o bom senso de não tentar a admissão em nosso meio de regras e práticas forasteiras. Assim, nunca vos passou pela idéia a transplantação de normas vigorantes em França, por exemplo, onde os vossos confrades não podiam, até há pouco tempo, usar bigodes, e ainda hoje continuam proibidos de pleitear os honorários em juízo, de anunciar o local e o horário das consultas e até de possuir no consultório um divã, por mais estreito e menos profundo que seja...
Dentre as virtudes cardeais da corporação uma se destaca, sobreexcelente, que tudo vindes empenhando por conservar intemerata. É a independência. Quando consciente de sua missão, o advogado não se inclina senão diante da lei, não dá conta de seus atos senão a Deus, não se teme senão de si mesmo. É o que expurga da eiva de mercenário o serviço que prestais, mostrando, na expressão de um antigo, quantum a famulato vestrum distat officium; e é também o que vos confere a autoridade e impõe o dever de acudir em socorro das garantias individuais, contra os abusos da força e os desatinos da prepotência, venham eles do povo desvairado pelas paixões ou dos governantes embriagados pelo vinho alucinante do poder.
Em louvor da bravura com que sempre e em toda parte se tem havido a classe a que pertenceis, nada mais se poderá dizer depois de Rui naquela oração do Instituto que, pelo ímpeto marcial da argumentação e pela armadura inconsútil e rutilante do estilo, recorda o sermo galeatus, de São Jerônimo. Ninguém como ele, que nunca deixou de se erguer na defensão das liberdades públicas, sem indagar se contava amigos entre os opressores ou adversários entre as vítimas, ninguém encarnou melhor essas tradições de hombridade e denodo. Ao vosso lado estava a sombra augusta, Sr. Levi Carneiro, ditando-vos a atitude e abençoando-vos o gesto, quando, em pleno fastígio do último regime discricionário, lavrastes, com destemor e firmeza, o protesto dos homens da lei contra a idéia quase vitoriosa da dissolução do Supremo Tribunal; e neste lance o discípulo não desmereceu do mestre.
Se muito fizestes por manter ilibados os foros de nobreza moral da profissão, não menos vos tendes esforçado por lhe aumentar o lustre intelectual.
Demonstra-o a insistência com que vindes pugnando pela melhoria do ensino jurídico, e também a pregação, pela palavra e pelo exemplo, de que o curso de Direito não termina, como vulgarmente se pratica ou entende, com a expedição do diploma.
Só o leguleio e o rábula poderão satisfazer-se com o manuseio das leis, o convívio mesquinho dos comentários, o espiolhamento dos julgados. Para quem exerce honestamente a advocacia é necessidade vital fazer nas altas esferas da doutrina uma provisão diária de idéias gerais. Não lhe basta, porém, o conhecimento do Direito, por mais intenso e largo que seja. Ir-se-á definhando pouco a pouco, asfixiado insensivelmente no ar confinado da especialidade, se não mantiver escancaradas, de par em par, aos quatro ventos, as janelas do espírito.
Em verdade, não conseguirá desempenhar-se condignamente das funções do ofício quem se trancar a sete chaves dentro das preocupações quotidianas e dentro dos interesses imediatos, como dentro de uma cidadela cintada por muralhas de processos e guardada por meia dúzia de códigos. Por esses códigos que (diga-se de passagem) parecem intratáveis e truculentos aos profanos, mas que, no fundo, são ótimos rapazes, serviçais e amáveis, para quem sabe lidar com eles... Se atividade existe incompatível com semelhante impermeabilidade mental é exatamente a vossa. Porque nenhuma exige tão estreito e permanente contacto com a atualidade. Assim era ao tempo de Cícero, que já então reclamava dos confrades um saber enciclopédico: Omnium rerum magnarum atque artium scientium. Que diremos agora, diante da complexidade crescente das relações jurídicas e quando o Estado se arroga a competência de regulamentar os próprios fatos da Natureza, desde o volume das safras até à reprodução da espécie? E como se há de ensimesmar, indiferente ao que passa lá fora, um homem arriscado a discutir com os técnicos no cível e no crime problemas de psiquiatria e de balística, de contabilidade mercantil e de genética, de arte e de finanças? Em que pese a Mallarmé, nem tudo quanto se faz termina em livro. Em autos, sim, é que tudo acaba nesse mundo.
Sois entre nós uma das expressões mais perfeitas dessa mentalidade arejada e expansiva, dessa curiosidade universal que ganha em superfície o que perde em profundeza.
Bilac não se cansava de afirmar que a vida é bela de qualquer maneira. Para vós, seja como for, a vida é interessante.
Foi em um congresso de eugenia que vos avistei pela vez primeira. Encontrei-vos depois no Instituto Histórico, no Reformatório de Menores, na Assembléia Nacional Constituinte, no Laboratório de Biologia Infantil, na Sociedade Brasileira de Educação; estudando em Oliveira Lima o historiador, em Nilo Peçanha o político, em Vilaespesa o poeta, em Ferri o conferencista, em Oscar Guanabarino o crítico, em Afrânio Peixoto o parlamentar, em Raimundo Correia o magistrado, o professor em Jimenez de Asua, o homem de ação em Mauá, o jornalista em Alcindo Guanabara; escrevendo sobre o desarmamento do Brasil e as caixas escolares, o problema universitário e o código de posturas de Niterói; discutindo questões de impostos e de política externa, e fazendo, no intervalo, crítica teatral. Diante disso não me causa espanto dar convosco no Pequeno Trianon, ansioso por saborear essa precária imortalidade, que só nos garante contra o esquecimento até à noite da posse de quem vier gulosamente preencher-nos a vaga.
Espírito assim, buliçoso e pugnaz, tinha de se decidir fatalmente ou pela Advocacia ou pela Imprensa. Escolhestes ambas as duas. Desposastes solenemente a primeira, que atraiçoais gostosa e ostensivamente com a segunda, a que destes aquele pedaço do coração, animæ de dimidium, de que fala o poeta latino. Nenhuma tem razão de queixa. Ao contrário. Jornalista e causídico se completam, atenuando os defeitos naturais de um com os predicados congênitos do outro.
Daí o sainete de modernidade tão marcado nos livros, conferências e monografias que vos opulentam o acervo, e igualmente incisivo nos temas, na maneira de versá-los e no estilo.
O assunto, ides respigá-lo de preferência no direito público, mais sensível que o direito privado às influências do momento histórico e às flutuações da moda. Ainda agora estamos vendo as revisões profundas e as transformações radicais que, devido à situação criada pela guerra mundial, vem sofrendo o Estado em seu conceito e em sua estrutura. Esse o terreno de vossa predileção. Poucos terão feito mais do que vós para o entendimento e a divulgação dos princípios do regime, com os estudos que consagrastes à formação e à evolução do federalismo brasileiro, à função política do Judiciário, à definição da autonomia dos municípios, às diretrizes dos estatutos de 91 e 34.
Descaberia em assembléia desta ordem a análise de obra dessa natureza. Oportuno, porém, é acentuar a translucidez e a elegância da linguagem. Não vos classificais entre os oradores e escritores pelintras, que parece estar sempre de cartola, polainas e monóculo; nem tão-pouco no rol dos que falam e escrevem descompostos, em chinelos e de mangas arregaçadas. Evitando com o mesmo escrúpulo a janotice e o desmazelo, dais testemunho de discernimento literário.
Outra circunstância a relevar é o espírito emancipado, rebelde ao cabresto dos preconceitos, de que dais prova. Nenhuma classe, como a dos juristas, merece o nome de conservadora. Na resistência às inovações entra um pouco de preguiça: custam sobremodo a renúncia de hábitos inveterados, o repúdio de estradas conhecidas, o abandono de idéias correntes. Mas entra boa porção de sabedoria: as reformas políticas e sociais não conseguem geralmente senão pôr uma injustiça no lugar de outra; e as modificações da legislação ordinária se limitam quase sempre a substituir defeitos velhos, que a prática já ensinou a suportar com paciência ou a contornar com habilidade, por inconvenientes inéditos, que só depois de longos anos a gente aprende a remediar. Ainda neste ponto sabeis guardar o meio-termo. Não tendes nem o fetichismo do que se foi, nem a fobia do que há de vir; mas encarais com admiração o passado, e o futuro com simpatia. Venerais, por isso mesmo, os clássicos do Direito, pensando todavia com os mestres contemporâneos.
Até na maneira de tratar a matéria denunciais que permaneceis integrado em vosso tempo. Sirva de amostra a polêmica referente à mudança de nome por interesse comercial, em que reforçais a argumentação doutrinária, não com citações de Silva Lisboa ou de Ferreira Borges, mas com a inesperada abonação da Bugrinha, de Afrânio Peixoto... Quantos precipícios vos separam do jurisconsulto lembrado por Vicente de Carvalho, que já nos primeiros dias deste século pedia subsídios a Aristóteles, para interpretar um texto da Constituição Federal!
O legislador
Nem só por elevar o nível moral e intelectual da corporação vos haveis afadigado e consumido.
De vós se dirá sem favor o que em louvor de um coetâneo escrevia Saint-Simon: tendes “o coração e o espírito cidadãos”. Assim, não compreendeis o foro senão dentro e em função da cidade. Pensais com acerto que ao advogado não será lícito circunscrever a sua atividade à estreiteza do círculo forense na defesa de interesses particulares. Outra missão de caráter social, relevante e inelutável, lhe impõe a investidura. Corre-lhe antes de tudo a obrigação de cooperar na educação das massas, fazendo, mediante a apologia das soluções legais, a profilaxia das reivindicações violentas e trabalhando por que se torne cada vez mais esclarecida e vivaz a consciência jurídica da nacionalidade. Incumbe-lhe também o dever de acompanhar e orientar a ação legislativa. A lei não pode conservar-se, como tantas vezes acontece, indiferente à vida. As fórmulas acanhadas e enferrujadas, a que em certa ocasião aludistes, hão de ceder fatalmente à pressão dos fatos. Nesse esforço diário por conformar a lei antiga com as imposições do momento não há quem sobreleve aos causídicos que, dentre os juristas, representam “o núcleo central, mais numeroso, mais ativo, mais vibrátil”. Estão naturalmente indicados para apontar à picareta dos demolidores as partes ameaçadas de ruína e à diligência dos operários as reparações e ampliações urgentes. Atuarão destarte como força de moderação e equilíbrio, impedindo a um tempo que a legislação fique atascada na rotina ou se despenhe no desconhecido.
A influência que reclamais para os vossos na criação ou definição do direito positivo não será eficiente, senão quando exercida dentro do órgão destinado a elaborá-lo. De onde a necessidade, que reconheceis, da assídua intervenção da classe na vida pública e particularmente na esfera parlamentar. Não para disputar posições ou cargos, deixando-se envolver em competições mesquinhas, ou embair pelas mentiras enfáticas das facções. Mas tão-somente para imprimir à lei a forma adequada, insuflar-lhe o sentido humano, saturá-la de justiça.
Metido em meio tão virulento, será difícil ao jurista conservar-se imune à infecção partidária. Não é impossível, entretanto. Demonstra-o o vosso exemplo.
Vencedor o Movimento de 30, recusastes a pasta de ministro, no que fostes coerente porque a aceitação importaria em comparticipação política. Obediente, porém, ao programa que aos colegas havíeis traçado, assumistes o encargo de formular as chamadas “leis orgânicas” do Governo Provisório, que nos salvaram da completa subversão do regime; e arcastes a seguir com uma responsabilidade extenuante de presidir à revisão das codificações vigentes e à organização de outras, de que sentíamos a carência.
Vieram depois os dias amargos e heróicos da Constituinte. Muitos e notórios são os defeitos da construção levantada, mercê de um milagre de energia, àquela hora incerta naquele chão trepidante. Nem poderia ser de outra forma, porque as circunstâncias desfavoráveis do instante centuplicavam as dificuldades inerentes à tarefa de tamanha delicadeza e gravidade. Proliferavam, com efeito, ideologias daninhas; impacientava-se a opinião; adensavam-se as ameaças de dissolução pelas armas; o que tudo nos intimava à terminação imediata da obra iniciada, recusando-nos o vagar necessário ao desbaste e polimento. Pecaria assim contra a equidade quem levasse todas as imperfeições à conta da possível imperícia dos obreiros ou da suposta inferioridade mental de uma assembléia, em que a presença de alguns frutos abortícios e pecos do sufrágio era ofuscada pela claridade que irradiavam sabedores do valor de Carlos Maximiliano, Raul Fernandes, Levi Carneiro, e letrados da categoria de Miguel Couto, Augusto de Lima, Olegário Mariano e Fernando Magalhães.
Do Palácio Tiradentes se dirá com acerto o mesmo que do Palais Bourbon dizia Maurice Barrès: temos ali o mais rico dos nossos museus etnográficos. Não é, pois, de admirar que nele se processe fenômeno idêntico ao observado por Eugène Melchior de Vogüé e Louis Madelin no Parlamento francês. Transparecem a cada instante, nos debates e votações, nas querelas de grupos e desavenças individuais, a influência subterrânea, a sobrevivência teimosa, a repercussão atávica dos ódios raciais e das lutas religiosas, das rivalidades regionais e das rixas de família, que dividiram os antepassados e continuam a separar os descendentes.
Na Constituinte de 1934 as diferenças de mentalidade e as paixões ancestrais exasperadas por fatos recentes favoreciam o desentendimento e propiciavam a confusão. Mais de uma vez concorreu a vossa palavra serena e lúcida para conjurar os conflitos e clarear as controvérsias.
Ganhastes, por isso mesmo, desde logo, autoridade e prestígio. Ninguém vos excedeu em capacidade de trabalho, limpeza de atitudes, fidelidade aos princípios. Desempenhando com exação insuperável o mandato recebido da classe, não fostes senão um causídico a serviço da Pátria, e nesse augusto patrocínio sempre vos houvestes com a intrepidez e a probidade impostas pela ética profissional.
Dessa diretriz intorcível não vos tendes apartado na Câmara dos Deputados, aonde vos enviaram depois os conterrâneos.
Acertaram esplendidamente os fluminenses. Nunca se fez mais precisa a interferência de homens de letras e juristas de vosso quilate no corpo legiferante. Dia a dia se vai agravando a situação deprimente denunciada por jurisconsulto patrício: na interpretação dos textos legais devemos ter em vista que o legislador brasileiro não conhece o vernáculo e não sabe Direito.
Dessa inópia sobejam os depoimentos e alastram-se os malefícios. Caiu em terra sáfara o ensinamento de Rui, quando acentuava que essenciais à eficácia da determinação legal são “a simplicidade, a clareza, a transparência; porque se não tem vernaculidade, clareza, concisão, energia, a lei não se entende, não se impõe, não impera: falta às regras de sua inteligência, de seu decoro, de sua majestade”. Em vez de se aproximar, a legislação da República foge desse ideal a passos largos, tresmalhada pela displicência de uns, tangida pela ignorância de outros.
Quando raiará o dia, anunciado por Edmond Picard, em que neste domínio voltem a reinar a força, a vetustez e a graça? Quando se decidirão de novo os legistas a falar com a sobriedade elegante de um Celso, com a nitidez lapidar de um Modestino? Quando tornarão a fazer, como os romanos, de cada preceito de lei uma jóia literária, uma obra em que a Arte exerça, no dizer baudelairiano, a doçura de sua autoridade?
A Arte, sim. O Direito exige de seus cultores a lucidez do pensamento e a perfeição da forma. Porque esta dá relevo e contorno àquele, como o recipiente ao líquido; e só a palavra publica a verdade, iluminando-lhe os mais distantes recessos, como, na imagem de Rodolfo Sohm, o relâmpago, que rasga de repente a escuridão e desvenda a terra e o céu até a linha derradeira do horizonte.
Vem-nos irresistivelmente à lembrança o que a propósito escreve Ihering. Para o famoso romanista a matéria jurídica é essencialmente poética, no que entende com a defesa da personalidade. A beleza do Direito (acrescenta ele) não está naquilo que exclui a luta, mas, ao revés, em tudo quanto a implica e pressupõe. E prossegue: íntima e eterna é a concordância entre a beleza e a luta. Manifesta-se na Ilíada; esplende nos prodígios da estatuária grega; persiste em nossos dias. O que denota que para os artistas não há talvez manancial de inspiração generoso como a peleja, em todas as suas modalidades, do homem contra o homem, contra a natureza, contra o destino.
Gregório Fonseca
Acabo de recordar uma página digna de servir de prefácio a “A Estética das Batalhas”, de Gregório Fonseca.
Nobilíssima figura a de vosso antecessor. Testemunham-no as saudades de quantos o conheceram neste mundo, e não foram muitos, porque passou de mansinho, sem fazer barulho, embuçado na modéstia. Confirma-o o estudo vibrante de sensibilidade e simpatia, em que lhe analisastes a existência santificada pelo trabalho e orientada para os mais altos ideais, e a produção exígua, mas lavrada a capricho, de quem não confunde a popularidade com a glória e prefere ao favor barato das multidões o apreço dos entendidos.
É tão completo e fiel o retrato que acrescentar-lhe traços ou retocá-lo seria pecado a que me não atrevo.
Ninguém diria ao ver aquele homem tão retruso e retraído o que nele havia de ternura humana e de força espiritual. Longo, meio arcado, com a fita branca do bigode marcando o lábio pontudo, o nariz projetado em curva, os olhos mansos apagados pelas lentes de míope, era assim, tal qual o fixou um instantâneo feliz de Ribeiro Couto, que o víamos chegar a esta Casa. Parcimonioso nos gestos, amável sem demasias, era discreto em tudo: no trajar, no dizer, no tratar com os grandes e os pequenos. Atento às palestras e aos debates, quase nunca descerrava os lábios. Adotava gostosamente a atitude, em que se compraziam Schumann e Gabriel Fauré: quedar-se calado em boa companhia; gozar, sem o travo da solidão, a volúpia do silêncio. À glória da criação artística preferia confessadamente as delícias da contemplação. Lembrava um pássaro canoro, que ficasse a ouvir, enlevado e extático, noite e dia, o gorjeio dos outros, esquecido de que tinha uma voz igualmente maviosa e também sabia cantar.
Tudo em sua vida e em sua obra denunciava achar-se desorientado no tempo e deslocado no espaço.
Nascera em 1875 na cidade rio-grandense de Cachoeira. Mas por engano. A alma fora, há quase dois milênios, modelada para se encarnar em um ateniense da época de Péricles. Perdeu-se, porém, no caminho, e demorou-se a vagabundear pelos intermúndios; até que certo dia resolveu descansar no corpo em disponibilidade de um nascituro. Quando deu acordo de si, era tarde. O gauchinho não quis mais largá-la. Daí, a tragédia de um espírito condenado a viver longe da hora e da terra a que o haviam predestinado. De outra forma não se explica a saudade, absurda, mas sincera, daquele panorama que “do alto da Acrópole, à sombra da Atena Promachos”, se descortinava, harmonioso: “Ao longe o mar, o Pireu, Salamina; no recorte do horizonte, alto, o Olimpo, morada dos Deuses; o Himeto, o Pentélico, a furna dos mármores; e embaixo a cidade feliz”, coroada de violetas, em que vive um povo que, no dizer de Taine, tem sempre vinte anos.
Namorado dessa Hélade convencional e literata dos livros e dos museus, foi-lhe clemente e não malvada a sorte, poupando-lhe o desencanto inevitável da presença real. Sentiria ele, se visse com os olhos da carne os restos da Antiguidade grega, les beaux marbres divins épars sur le rocher, a exatidão do que disse alguém: não é impunemente que mil e novecentos anos de Cristianismo nos separam do Partenon.
Isso mesmo, sem ter confrontado o sonho com a realidade, isso mesmo ele compreendeu no declínio da vida. Encontrou-se por acaso, não sei onde, com o pobrezinho de Assis. Começou a freqüentá-lo. Empurrado suavemente pelo frade, ajoelhou-se um belo dia no confessionário e se aproximou depois da mesa eucarística. Viu então que o Deus criado pelos homens, e por ele descrito como simples “episódio da luta”, não passava de ídolo de barro grosseiro ou, quando muito, de estátua de pedra inanimada e fria; e descobriu que o Olimpo era apenas um mísero grão de areia ao pé do Calvário.
Estou certo, Sr. Levi Carneiro, que lá onde recebeu “da Suprema Justiça e do primeiro amor o julgamento e a imortalidade”, o julgamento misericordioso e a imortalidade verdadeira, Gregório Fonseca aprovou a vossa escolha. Não impressionado pelos títulos de benemerência, que sumariamente arrolei, mas porque amigo de quem, no conceito de Martins Fontes, “a tudo amou a si”, e devoto daquele que se confessava irmão da morte e das estrelas, da água e do fogo, dos lobos sanhudos e das queridas “florinhas entre as ervas escondidas”, ele situa e exalta acima de tudo quanto haveis feito pelos homens o que fizestes certo dia pela árvore, nossa irmã.
Lá está no código florestal uma disposição de vossa autoria, que autoriza o poder público a impedir a derrubada ou corte da árvore isolada. Não mais se verá, com a cumplicidade insensata do Estado, “o excídio hediondo, o crime sem igual”, que Alberto de Oliveira amaldiçoou em versos imortais. Não mais poderão a estupidez ou a ganância empobrecer e conspurcar a paisagem, com a destruição de buritis glorificados pela tradição, de jequitibás magnificados pelos séculos, dessas maravilhas de que só a Natureza tem o segredo.
Obra de poeta, de poeta involuntário ou inconfesso, o preceito, com que abristes na aridez da lei um hiato de frescura e de beleza. Porque o poeta é isto mesmo: alma, em que se inscrevem, como numa placa sensível, os arrepios de medo, os frêmitos de prazer, as vibrações de entusiasmo, as crispações de dor de todas as criaturas, e onde se refletem, como num prisma de cristal, em seu esplendor limitado ou em sua infinita miséria, todas as coisas do universo.