DISCURSO DO SR. GREGÓRIO DA FONSECA
SENHORES,
Recordar e prever constituem dons peregrinos da inteligência. Recordar é privilégio do homem; prever, quase atributo da divindade.
Recordo...
A memória espelha-me, em relevos nítidos, envelhecidos, quadros e fatos. Entre a serrania e o pampa, contemplo a cidade natal. De permeio, desliza tranqüilo, remansado entre cachoeiras, o Jacuí, o rio da minha saudade. Ao iniciar-se o êxtase distingue apenas aspectos físicos. A pouco e pouco, a paisagem anima-se e transforma-se em palco de cenas vividas na minha juventude. Apercebo a casa paterna. Relembro as vicissitudes do meu lar, repentinamente empobrecido. Rememoro o acabrunhamento do meu Pai e o heroísmo de minha Mãe. Revejo-me nas primeiras lutas. Visito o prédio de armarinho, onde, aos quinze anos, fui ser caixeiro. Lembro-me do amor que dedicava aos livros, da admiração que sentia pelos poetas e do meu orgulho quando me tornei possuidor do volume Poesias, de Olavo Bilac, recentemente aparecido. Suave e cara reminiscência! Certo dia, à hora da sesta, em que a loja estava deserta, julgando-me só, eu recitava, com eloqüência, a um recanto de balcão, sonetos da Via Láctea. O patrão, homem prosaico, espreitava-me, e, inexoravelmente, dispensou o empregado declamador... Abandonei a carreira inimiga das musas... Fiz-me soldado. Ao recordar este passado distante, alteia-se refletida na memória, ressaltante de minúcias, a cidade onde nasci, a igreja, o casario, e ao fundo, entre arvoredos, sempre o rio da minha saudade, lentamente rolando as águas claras.
Quem pudera prever!
A corrente da minha existência mudou de curso: alguns anos após, eu habitava a metrópole do Brasil. E conheci pessoalmente o vate-profeta da minha adolescência, na glória da ascensão. Amei-o. Não tanto pela beleza que criara, mas, talvez, pela alma e pelo coração. Vivemos, durante decênios, em fraternal convívio. Fui-lhe, ele próprio o proclamou, um irmão bem amado e quando pressentiu “a última curva do caminho extremo”, elegeu-me, entre os inúmeros amigos, para ser aquele que lhe velasse a agonia. Depois... a generosidade dos confrades legítimos do poeta alçou-me à seleta companhia. Requintastes, ainda, em gentileza, designando para meu paraninfo, neste ato solene, um companheiro querido de toda a minha mocidade.
Bendigo da vossa bondade e abençôo a minha vida.
A Academia Francesa, que serviu de modelo à nossa, teve a nascença bafejada pelo sopro criador de Richelieu, a engalanar-lhe o berço de brasões. Aos seus membros concedeu a honra perpétua de contubernais da Casa Real e a regalia prestigiosa de poderem, incorporados, falar, diretamente, ao Monarca. Apesar de fundada em meio estranho a privilégios aristocráticos, a Academia Brasileira proveio de origem mais nobre: nasceu da amizade. Homens de letras, unidos por este alto sentimento de afeição e por idêntico amor à cultura que se manifesta em obras notáveis de Arte ou de Ciência, criaram-na. Onde a amizade fraterniza e impera, prevalece a benevolência. Só assim compreendo os vossos sufrágios.
Com o coração, fonte de tudo quanto penso, preso às palavras que pronuncio, eis-me aqui para tomar posse da Cadeira de que é patrono Maciel Monteiro, e que foi ocupada por Joaquim Nabuco e o General Dantas Barreto.
Poeta, jornalista, político e diplomata, Maciel Monteiro merecia a homenagem de ter o nome perpetuado no espaldar de uma poltrona acadêmica. O prestígio do diplomata desapareceu quando se lhe findou a vida mundana de enamorado; o renome do político e do jornalista diluíram-se com o tempo, restando apenas, de efêmeros triunfos, a lembrança do orador de atitudes sóbrias e frase literária elegante. Sobrevive o poeta. O poeta e a lenda que a sua galanteria e os seus versos formaram.
Fulge-lhe ainda a auréola de Lovelace, de D. Juan a quem o amor matou... A lenda fará perdurar-lhe o nome, mas, no conceito final que a expressa, existe duplo contra-senso: D. Juan é um grande símbolo de dúvida e renúncia. Não encontrará nas sucessivas vitórias amorosas a paz definitiva, o termo feliz. Persegue-o o espectro da saciedade. E jamais morrerá de amor: a morte pelo amor seria uma redenção...
Nabuco, com excessiva modéstia regionalista, justifica a escolha do patrono, dizendo: “Nesse misto de médico e poeta, de orador diplomata, de dandy que veio a morrer de amor, elegi o pernambucano.”
A Cadeira de Nabuco! Venho ocupá-la comovido, não, porém, humilhado. O piedoso Carlyle, que criou a nobreza do heroísmo para os poetas, dando à Poesia o sentido profundo de percepção do mistério sagrado do Universo, concede a honra de artistas não somente aos que pontificam, também aos que apenas percebam os ritos. Quem sente o sagrado calafrio estético ao meditar a Divina Comédia tem, ainda que em pequeno grau, alguma cousa das faculdades de Dante, – doutrina o apóstolo do culto à Arte. A inteligência criadora, penso, é como a graça divina: em irradiação intensa, – cega São Paulo; mas qualquer presbítero humilde, que anuncia o Cristo, possui imanente a centelha dos mesmos raios, diferença apenas de intensidade.
Liga-me a Nabuco um sentimento altruístico, por excelência, o que ele próprio definiu como sendo a felicidade: a admiração; e quem assim se expressou sabia que a pura substância da felicidade consiste em viver integralmente pela inteligência. Possuirei tal virtude? Chego, por vezes, a esquecer-me do que sou para deixar-me absorver por aquilo que admiro...
Conheço o poder de um oh! admirativo, quando proferido com profundo amor. Nos meus estudos sobre São Francisco adquiri especial dileção por Frei Masseo de Marignan. Frei Masseo era um dos companheiros do Bem-aventurado.
Simples e humilde, em qualquer recanto da Úmbria santa, ajoelhava-se, abria os braços, olhava o céu, e, pronunciando repetidas vezes, com tom de voz cavernosa, a imitar o arrulho das rolas – oh! oh! oh! de rosto alegre e coração jocundo, rapidamente caía em contemplação. Ora, um dia, o irmão Jacques de Falleroni perguntou a Frei Masseo por que não mudava a fórmula de rejubilar-se em Deus, entoando outra canção. Respondeu-lhe o santo frade, radiando alegria: “Quando em uma coisa encontramos a felicidade, não devemos mudar de canção.”
Aceito a definição de Nabuco: – “Felicidade é admiração, sentimento do que é belo em conta de participação com os que nos são harmônicos”, e, como Frei Masseo, não pretendo também mudar de canção.
Entre os nossos homens célebres, Joaquim Nabuco destaca-se com distinção rara. A sua vida tem os característicos da obra de arte – unidade e beleza.
Desenvolve-se-lhe a atividade, na esfera política, através de mandatos legislativos, do jornalismo e da diplomacia e a atuação literária, pela sua vasta obra de escritor. A inteligência brasileira alçou-se em Nabuco a um dos seus vértices, – alto e amplo em perspectivas. O homem de letras, o poeta, que, num excesso de crítica interior, afirmou não ter feito poesia e, sim, eloqüência rimada, nunca se separou do político e do diplomata. Em outro meio e momento, tal a revolução inglesa, poderia ser, como Milton, secretário de Cromwell, não deixaria, por isso, de ditar o Paraíso Perdido. Ação e poesia, nele gêmeas, unificavam-se. Político, agiu sempre sob o estímulo de um móvel superior. Idealizava os fenômenos sociais com o senso estético que presidia à fatura da obra de arte. Ao contrário de Rui Barbosa, orgulhava-se da predestinação literária e considerava-a participante das suas glórias parlamentares.
Triunfador em política, a guirlanda da vitória conquistou-a na campanha abolicionista, combatendo pela fraternidade humana, a mais alta expressão da liberdade. Para servir a este ideal, ele próprio proclamou: “separar-me-ei não só do meu partido, não só da opinião pública e da conspiração geral do país, mas de tudo e de todos! Neste ponto, faço uma aliança com o futuro”.
Mais do que qualquer outra, esta afirmação reflete a grandeza e a bondade da sua alma. Na causa da emancipação, o político partidário cedia lugar ao apóstolo, aliançando-se com a posteridade.
Descortinou, com amplitude e sagacidade, a multidão dos nossos erros, e foi, talvez, dos estadistas brasileiros o que melhormente os caracterizou, profligando os nossos males institucionais e traçando o quadro fiel das taras hereditárias que maculavam o nosso organismo representativo. Diagnosticou com perícia as psicoses perturbadoras do poder da opinião pública entre nós, a anemia cívica reinante, em grande parte do Brasil e os vários morbus causadores da anarquia política e administrativa em que sempre vivemos.
Resumindo a sabedoria e a experiência de todos os nossos homens públicos do passado, ninguém compreendeu como ele o feiticismo que sempre nos inspirou a ficção do poder. A apóstrofe retumbante do tribuno dos pampas – O Poder é o Poder – expressava um axioma. Confirmando-a, dizia Nabuco, “o poder entre nós – e esse é um dos efeitos mais incontestáveis do servilismo que a escravidão deixa após si – é a região das gerações espontâneas. Qualquer ramo por mais murcho e seco, deixado uma noite ao alento dessa atmosfera privilegiada, aparece na manhã seguinte coberto de rebentos e folhas”.
Profeta e paladino de uma grande causa, com o pensamento inteiramente preso ao seu apostolado, o abolicionismo foi, para Nabuco, a idéia interior e absorvente da totalidade da sua ação política. Com patriótico pavor e indução segura dos acontecimentos, articulava todos os nossos males em torno do maior, – a escravidão, chaga contagiosa, a infeccionar o organismo da nação, incapacitando-lhe o desenvolvimento.
Filiava a série de nossos erros evidentes em matéria política e administrativa à organização escravagista do trabalho. Daí provinha a degradação!
Desde o Estado providência, concepção genuinamente brasileira, salvando a indústria, o comércio e valorizando a lavoura, até o poder pessoal do Imperador, quando a quando acrescido em prerrogativas à revelia do povo, que, pelo hábito da escravidão, não dava valor à liberdade, todas essas aberrações sociológicas eram apenas aluvião de efeitos daquela causa perene. A monomania do emprego público, já então morbus avassalante, julgava-a Nabuco doença normal, em um país onde somente o negro trabalhava:
A classe dos que assim vivem com os olhos voltados para a munificência do Governo é extremamente numerosa e diretamente filha da escravidão, porque não consente outra carreira aos brasileiros, havendo abarcado a terra, degradado o trabalho, corrompido o sentimento de altivez pessoal em desprezo por quem trabalha...
Todos os males do regime: marasmo econômico, crises financeiras, orçamentos mancos e sangrados, marinha e exército de profissionais, mantidos em engajamento pela disciplina do azorrague, tudo, Nabuco fazia provir do eito e da senzala.
E na tribuna do parlamento e dos comícios, nas páginas dos jornais e dos livros, a sua voz sonora e honrada e a sua pena convincente e elegante, armaram catapultas formidáveis, demolindo preconceitos e erros, em benefício da redenção de uma raça infeliz.
Vitorioso no dia 13 de maio, o “Spartacus da abolição”, Patrocínio, delineou-lhe o monumento, em apóstrofes:
Grande, solene, como há de ser guardado na memória da tradição nacional, na estátua que ele mesmo fundiu com o fogo da sua palavra e com o bronze do seu caráter.
A carreira política de Nabuco “verdadeira marcha triunfal”, encerrou-se com a proclamação da República e, se não fora isso, vaticinava Rui Barbosa:
A monarquia teria tido em Joaquim Nabuco a edição revista de seu pai. Ambos entrariam, então inseparavelmente, numa só obra, que, à semelhança da sua, historiasse – em vez de um – dois estadistas do Império.
A diplomacia, carreira que o atraiu ao terminar o curso acadêmico, foi o meio propício onde se lhe aprimoraram as qualidades encantadoras. O contacto direto com as velhas civilizações, a contemplação dos horizontes em que se desenvolveu, no ocidente, a história do progresso humano, o estudo dos monumentos criados pelo gênio artístico greco-latino, marcando-lhe os diversos estágios, o convívio com as personalidades ilustres representativas da inteligência e da cultura européia, poderosamente influíram na sua formação de homem perfeito.
Nabuco sempre foi um encantado pelas formas aristocráticas da vida. Deliciavam-no a suavidade das frases e a elegância dos gestos. Devia ter horror às sensações veementes e trágicas. Talvez daí proviesse o seu ódio olímpico pela barbaria escravocrata. Se o homem é um animal sociável, ele foi a mais nobre expressão da sociabilidade. Disse-o: “Não pertenço ao número dos solitários, dos que bastam a si mesmos e podem viver consigo, só de arte, de história, de paisagem, de pensamento.”
Na Europa, não se limitou à convivência com os altos espíritos preponderantes em filosofia, crítica e literatura – Renan, Scherer, Stuart Mill. Seduzia-o também o ambiente onde predominava o eterno feminino. George Sand, íntima dele, produzia-lhe o efeito de uma triaga romântica, inofensiva, em que se caldeavam, mutuamente destruídos, todos os venenos sutis de Eva. Os salões da alta sociedade francesa, herdeiros da maravilha que foi a arte da conversação em França nos séculos XVII e XVIII, e os confortáveis interiores, onde rutilava a sobriedade espiritual da aristocracia inglesa, temperada pelo humour peculiar à raça, exerceram influência capital no tom da sua existência e até na escolha dos ideais a que serviu.
A acreditarmos na confissão feita por Nabuco em página de saudade, o trato e a freqüência dos salões prestigiados com a presença das realezas orientaram e fixaram a sua conduta política. Quando acadêmico, iludira-se, dando ao velho Bagehot a honra de convencê-lo da excelência do parlamentarismo monárquico. Em Londres, renegou-lhe a ascendência doutrinária. Ouvi-o:
Muitos argumentos me foram apresentados na mocidade a favor da monarquia; nenhum, porém, teve para mim a força persuasiva, a evidência, destes dois, um que me foi formulado no Píncio, outro que me foi formulado em Hyde Park: a princesa Margarida de Sabóia e a princesa de Gales. A republicanos de boa fé estética – ponhamos tanto os bárbaros como os anacoretas de parte – eu não quisera apresentar outros. A formosura das rainhas tem, quando é perfeita, um reflexo seu exclusivo, combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza nacional, de dependência, tremor mesmo, do destino, e proteção e amparo para os que se acolhem ao seu manto, que forma dupla projeção ascendente, do trono para o povo e do povo para o trono, que na ordem espiritual fez a Rainha dos Anjos comparar-se com o arco-íris.
Ao escrever estas deliciosas coisas já desaparecera, em Nabuco, por obra e graça dos “vibrantes açoites do padre Galhway, a anestesia religiosa”; o renanismo literário era-lhe, porém, inveterado...
Voltando, na República, à diplomacia, naturalmente coube-lhe a investidura dos mais altos postos. Embaixador junto do Rei de Itália, advogando os nossos direitos no arbitramento sobre limites da Guiana Inglesa, edificou na defesa deles verdadeiro monumento de sabedoria e de atilamento jurídico. Criada nos Estados Unidos a primeira embaixada brasileira, foi escolhido para provê-la.
Este período, em que se encerra a sua gloriosa existência, valeu ainda fastígio para Nabuco, que soube impor-se pela atração pessoal, pela cultura, pelos pontos de vista americanos em política internacional, conquistando respeito e admiração na grande República.
Adaptando-se com facilidade a todos os meios sociais, Nabuco percebeu que a diplomacia nas velhas cortes européias era feita principalmente nos salões e nos ambientes aristocráticos; mas, nos Estados Unidos, grande democracia, onde prepondera a opinião pública, a sua ação deveria atingi-la em direto contacto e em conferências, nas solenidades populares, na cátedra das Universidades, a sua palavra se impôs como uma das grandes vozes continentais.
Ao político do Império e ao Embaixador da República igualava em valor e renome o escritor. Melindroso em mérito próprio, Nabuco afirmou certa vez “não ser artista, por lhe faltar a qualidade de representar, de criar a menor representação das coisas”. Em suma, não realizava o conceito de Novalis: “O artista deve querer e poder representar tudo.”
A ilusão de Nabuco é manifesta, essa faculdade, que outra coisa não é senão o poder imaginativo, fonte da inspiração, falta a muitos poetas e escritores, legítimos artistas.
Taine diz, com verdade, de Byron, que jamais se viu um tão grande poeta de tão curta imaginação. Byron não inventa, observa: não cria, transcreve. São as próprias mágoas, revoltas e viagens, apenas transformadas e coligidas, que põe em verso. Todas as suas personagens são o próprio homem – Lord Byron, contemplando-se a si mesmo e fazendo a epopéia do próprio coração.
Nabuco foi, portanto, um artista; os seus pensamentos e sentimentos, belos e eurrítmicos, reflete-os o escritor nas páginas que nos legou.
Em tudo que escreveu lhe transparece a iniciação estética. Na sua grande obra, Um Estadista do Império, a mais sincera e a mais verdadeira até hoje escrita sobre a nossa história política, pululam as páginas capazes de comover, como as de Tácito, pela virtude dos caracteres que pintam e onde a sensibilidade do estilo e a justeza dos conceitos originais a transformam em obra-prima literária.
Minha Formação e Pensées détachées são, dos seus livros, os em que com maior clareza se lhe espelha a virtuosidade de escritor, como refletores de emoções profundamente sentidas e sinceramente compartilhadas.
Renan, “le ver à soie de la prose française”, exerceu sobre Nabuco útil e fatal influência: útil, no tocante ao estilo e à aristocratização do pensamento; fatal, no que concerne às idéias e convicções. Ele próprio confessa o mal que lhe fez o antigo seminarista de Saint-Sulpice, separando-lhe a imaginação do raciocínio, em matéria de fé. Com efeito, efetuado este afastamento estabelece-se entre a imaginação infinita e o raciocínio limitado – a mágica ponte de ouro da dúvida, instituída como método de indagação da verdade, gerando, pelo dissídio entre o divino e a vida, a tortura da inquietação religiosa.
Quase náufrago nesse perigoso Tormentório em que o orgulho intelectual é a tentação sedutora, avalio-lhe a glória do triunfo e compreendo a sua feliz tranqüilidade, quando “no Oratório de Brompton, respirando aquela pura e diáfana atmosfera espiritual, impregnada do hálito de Faber e Newman, pôde reunir no coração os fragmentos quebrados da cruz e com ela recompor os sentimentos esquecidos da infância”.
Seria doloroso que Nabuco, uma tão bela obra da criação, renegasse ao seu Criador!
O diletantismo filosófico de Renan não podia bastar àquela imaginação e, cedo, percebeu Nabuco que o Cristo d’A Vida de Jesus “era um anacronismo infantil de sábio e de artista”. Vencido pela força do amor e pelo perfume da revelação evangélica, serenamente voltou ao seio da Igreja Católica, única depositária dos poderes misteriosos da salvação e da verdade divina.
Perdurou-lhe no espírito o renanismo puramente literário, a admiração pelos dons mágicos do estilo amável do feiticeiro dos Souvenir’s d’enfance et de jeunesse, sem acreditar, porém, na possibilidade histórica da existência de uma arte anti-religiosa, pois, pensava ele que a estética do ateísmo teria contra si toda a arte criada pela Humanidade.
Na sua obra de pensador político e de artista, o renanismo, do qual completamente se libertou, serviu-lhe para dar forma escultural ao pensamento e ritmo musical à frase. Não foi um escritor que refletisse nas suas páginas de arte a opulência rude da natureza brasileira. Massangana é pura paisagem psicológica, em que o motivo principal que a espiritualiza é o sofrimento resignado de uma raça infeliz; nessas páginas de beleza, resplandece a alma bondosa e a inteligência clara e harmônica de Nabuco, criando em torno da escravidão uma obra-prima de amor e de justiça.
Na forma renaniana não cabia a nossa brutalidade quase primitiva. O próprio Renan, milagroso pintor dos horizontes, humanizados pela veneração e pela lenda e que o olhar de Jesus divinizou, contemplando a Guanabara sem história, nela veria apenas paisagem, simples paisagem, a que faltava o sentimento simbólico da beleza.
Nabuco, ático como o mestre, percebia essa dificuldade e, quando apareceram Os Sertões, assombrado pela rudeza do estilo novo, expressão justa do titanismo brasileiro, fórmula feliz de Alcides Maya, confessou, com sinceridade, dar-lhe Euclides a impressão de escrever com cipó, em vez de pena. Não compreendeu Nabuco que esse cipó tinha à ponta uma lasca de diamante, e abria no papel o sulco de frases lapidares, retratando a luta e o evolver das forças brutas da natureza – o Brasil.
* * *
Detive-me, quiçá, de mais a relembrar a nobre, alta e forte personalidade de Nabuco, tão sugestiva para todos os homens de pensamento, quando é certo que me atrai, precipuamente, o elogio do meu antecessor, na Cadeira de Maciel Monteiro. O Marechal Emídio Dantas Barreto, a quem me prenderam em vida, além dos sólidos laços da afeição hierárquica, acentuada admiração pela inteireza do caráter, a par da espontânea simpatia intelectual, conquistou com justiça e mérito a sua ascensão ao generalato acadêmico.
À noite de 7 de janeiro de 1911, engalanava-se o cenáculo das letras para o receber, e Carlos de Laet, entre acolhedor e irônico, dava voz de – sentido – à Companhia, conclamando-a, militarmente: “Está formada a guarnição da nossa Acrópole. Perfilam-se corretos seus ilustres batalhadores. Ressoa em vossa honra uma fanfarra de aplausos. Estais no meio dos vossos camaradas. Sede bem-vindo, General!”
Leal nas suas afeições, quanto sincero nas suas palavras, o general fraternizou com a confraria, sempre de todos querido e admirado, pelo seu amor às letras, pela rijeza moral do seu feitio e pela bondade.
A vida de Dantas Barreto modelou-a a própria vontade e valorizou-a o esforço pessoal.
Foi-lhe berço Pernambuco, província onde, desde a reação épica contra os holandeses, se iniciou a formação da nacionalidade, e, talvez, como afirmou Armitage, o recanto do Brasil em que o espírito de independência primeiro surgiu e foi mais forte.
Em Bom Conselho, na zona humilde de Papacaça, num ambiente genuinamente sertanejo, nasceu, em 23 de março de 1850, Dantas Barreto. Fez-se forte na vida indômita das caatingas, nas surpresas diárias do labutar campesino. Ao atingir à puberdade, tendo apenas quinze anos, reboava através do país o grito de guerra contra os invasores da Pátria, e iniciavam-se as operações militares contra o ditador Paraguaio. Recife vibrava de entusiasmo cívico, excitado pela propaganda ardorosa dos seus oradores e poetas. No teatro de Santa Isabel, o condoreiro patriótico culminava, glorificando Pernambuco:
Tu tens nas unhas de pedra
Cabelo e trapo holandês...
....................................
Levantas o braço forte
E o raio matas na mão!
Como um aceno de morte
Os Guararapes lá estão!...
Imaginai na conformação de uma alma juvenil com pendores românticos, a influência desse ambiente de exaltação e orgulho nacional. A criança sentiu-se homem e ei-lo, ainda adolescente, foragido da casa paterna. Voluntário da Pátria, embarcando com destino à campanha do Paraguai. Calculai a vibração e o entusiasmo juvenil que dominaram o pequeno recruta quando, ao partir, entre os aplausos da multidão fremente, ouviu, no Cais da Lingüeta, os adeuses e bênçãos aos Voluntários Pernambucanos, proferidos por Tobias Barreto, o grande vate da época, animador entusiasta de um nacionalismo vingador, declamando as estrofes incendidas d’Os Leões do Norte.
O mundo sabe a nossa história. Tudo.
Que há de heróico, entre nós também foi feito.
Quem duvida? O oceano interpelado
É capaz de atestar esta verdade,
Arrojando indignado em nossas plagas
Armas, destroços e almirantes batavos!...
Ide varrer o Sul, tufões do Norte!
O Deus de Camarão vos abençoa.
Entre os Tufões do Norte, Dantas Barreto foi um dos mais enérgicos e bravios, atesta-o a sua fé de ofício militar. A idade em que principiam a firmar-se os sentimentos e a alma começa a enrijecer-se pelo exercício constante da ação e da vontade, o período da vida em que o caráter adquire solidez e a consciência entra em luzimento, passou-o, o futuro general, em acampamentos, em marchas, em entreveros, em batalhas. A guerra com o seu cortejo de imprevistos e de exigências dominativas e inadiáveis, amoldou-lhe a alma.
No Paraguai, recebeu o batismo, de fogo em Curuzu e Curupaiti, e lutou até ao fim da guerra, fazendo ainda a campanha das Cordilheiras. Bateu-se em Tuiuti, em Humaitá, em Itororó, em Avaí, em Lomas-Valentinas, e terminou a longa série de combates de que foi parte, acampando em Peribebui, já oficial do Exército, pois, em 1868, contando somente 17 anos, fora promovido a alferes, por bravura revelada na batalha de 24 de maio.
De Pernambuco herdara o ardor cívico e o legado da bravura; a luta plasmara-lhe o caráter, fortalecendo-o, mercê da confiança no próprio valor.
Terminada a guerra, iniciou Dantas Barreto a cultura do espírito, em áureo período de vida acadêmica, até à conclusão do curso, na antiga e tradicional Escola Militar da Praia Vermelha, ao tempo, fervedoiro de idéias novas e, mais do que foco de ciência da guerra, centro social de vasta e profunda cultura filosófica e científica. Partícipe de todas as nossas lutas internas, desde a proclamação da República, ascendeu aos mais altos postos da hierarquia militar, sempre aureolado da fama como chefe intrépido e do prestígio de cidadão modelar pelo patriotismo.
Revelara-se-lhe a vocação literária e, colaborador assíduo das revistas escolares, pôs em evidência, ainda jovem militar, não existir antinomia entre a espada e a pena, nem superioridade das armas sobre as letras, como tentou demonstrar o Quixote.
Esses primeiros ensaios românticos, em páginas de ficção, ficaram sem continuidade na sua vida de escritor, pois, de logo, reconheceu não ser esse gênero afeiçoado ao seu temperamento, no qual predominavam as qualidades do homem de ação, e a eloqüência do homem de ação deve ser diferente, tem por base a clareza, reflete os acontecimentos. Os fatos, na sua verdade, sem atavios, são mais luminosos que revestidos dos ornatos da imaginação.
Naturalmente, Dantas Barreto foi atraído à literatura histórica, e nos legou, nesse domínio, vasta obra de real valor, recontando casos de guerra e fatos políticos de que foi magna pars.
Observou com profundo acerto Carlos de Laet que os melhores livros de Dantas Barreto “não são exatamente memórias, mas destas se aproximam pelo cunho da presença individual que em quase todas imprimiu. E, sob a calculada placidez do vosso frasear, prossegue Laet, ainda quando de vós mesmo, more Caesaris, apenas falais na terceira pessoa, sente-se que no escritor está o combatente e que, desoprimido da farda nos lugares literários, ainda sobre a impressão da campanha vos palpita o coração de soldado”.
Nem sempre esta literatura de observação testemunhal, clara e precisa, contém a expressão “forte da verdade”. A obra-prima na espécie, os Comentários de César, analisados frase a frase por quem poderia fazê-lo, por Napoleão, revelam múltiplos erros e falhas, sobre fatos concretos, principalmente quanto a localizações geográficas, plano de posições e marchas, comprovando que a retentiva de César era inferior às qualidades clássicas do escritor inigualável, pela correção e limpidez do estilo.
Sobre a inglória campanha de Canudos, escreveu Dantas Barreto dois excelentes livros. Ao primeiro, Acidentes de Guerra, entremeou-lhe certo episódio romanesco, talvez relembrança da juventude passada no sertão. Geralda comove pela simplicidade e pelo sofrimento. Mas o valor do livro está, principalmente, no relato sincero da destruição da coluna Moreira César.
Os pungentes lances da tragédia foram admiravelmente narrados pelo General Dantas Barreto, desde a partida das tropas da capital da Bahia para Monte Santo, até à agonia de Moreira César.
Recordarei um trecho, descrevendo o embarque dos batalhões aquartelados em Salvador:
Os soldados, obedientes à disciplina, marchavam calados, com indiferentismo aparente, no meio desse ruído que se fazia em torno das fileiras, pelos flancos e pela retaguarda dos pelotões, mas no fundo da sua organização habituada às emoções veementes, recolhiam com arrebatamento silencioso essas expressões que lhe abrasavam o coração até ao esquecimento dos seus mais caros afetos. Sabiam que marchavam sob a perspectiva de situações imprevistas; cumpriam o dever que a honra militar lhes impunha e iam satisfeitos. Representavam nesse momento de impressões inquietadoras a dignidade da Pátria, o brio das instituições das armas e nada pode exaltar mais a organização de um soldado do que esses sentimentos que se completam.
Quando a quando pontuam as páginas do livro, sincero e vívido, observações felizes, por humanas e dolorosas: “E só alguns dias depois retiraram o cadáver de Alberto do meio do caminho, para não espantar o gado que se destinava às forças de Canudos.”
O outro, a Destruição de Canudos é a narrativa da derrocada final, feita por um técnico, ator de realce no drama. Depoimento insuspeito, às vezes rude pelo tom candente das brutalidades que condena, ficará na nossa literatura por conter páginas verdadeiramente históricas.
Não posso furtar-me de relembrar um dos derradeiros episódios após o incêndio da cidade de Canudos, o da chegada às nossas linhas das mulheres e crianças sobreviventes, enquanto os homens, poucos e exaustos, mantinham-se aguardando a morte, nos últimos redutos:
Tinham a fisionomia aparentemente calma, o olhar estranho, de quem já não havia coisa alguma no mundo que lhes causasse espanto; pouco as inquietavam as multidões de soldados curiosos que viam em torno; não pediam compaixão, não faziam mistério do seu fanatismo: o que queriam era um bocado d’água, era um ambiente que não fosse de fogo, como aquele que acabavam de deixar. O mais pouco as inquietava. Dessem-lhes água até saciarem a sede, que lhes produzia vertigens e matassem-nas como quisessem depois; estavam conformadas com o seu triste fim.
É uma página verdadeira, simples e bela.
Nas Impressões Militares, título de um de seus volumes, trata especialmente de questões profissionais; mas, tão forte era o amor do general pelas letras, que, em advertência, declara: “Escrevendo-as cedo também às contingências do meu temperamento literário.”
“Abandono de Corumbá” e “Invasão do Paraná”, partes componentes da obra, pela fidelidade da exposição, pela clareza com que são expostos os acontecimentos e pela serenidade da crítica aos personagens em ação, justamente galardoam o General Dantas Barreto do título de notável escritor de memórias militares, emparelhando-o, na nossa literatura, a Taunay, Dionísio Cerqueira e Jaceguai.
A sua última obra Conspirações reflete a atividade política que exerceu, quase ao fim da carreira militar, após o generalato.
Os generais e a política, vasto tema, antigo como a história! Consubstanciando a sabedoria dos séculos, Taine, certa vez, afirmou: “os generais fortes à frente das suas brigadas são habitualmente fracos em argumentos políticos”. Não aprovo nem contradigo a asserção, recordo apenas que “o político hábil é calculador avisado, pára a meio caminho, tateia, demora a olhar sobre os acontecimentos, mede o possível, emprega a lógica da prática e métodos contemporizadores”. Por educação e influência de ambiente, o militar conforma o seu espírito em uma escola de disciplina que é ao mesmo tempo escola de autoridade. Habitua-se a mandar e a ser obedecido. O soldado executa normalmente as ordens recebidas, pois do cumprimento delas depende o êxito da sua missão. Em política é diferente: os verdadeiros estadistas precisam dar a impressão de mandatários de um poder mais alto. Em todo caso, a estatocracia será sempre regime perigoso.
O General Dantas Barreto em Conspirações recorda os desenganos sofridos na política e as lutas partidárias em que se envolveu. Governador de Pernambuco, procurou reagir contra o sistema oligárquico que infelicitava o Norte do país. Desfrutou alto e real prestígio, conquistado pela conduta modelar do administrador e pelo civismo audacioso das atitudes. Rompeu com Pinheiro Machado e lutou para conquistar o apoio do Presidente da República, que fazia forte o antagonista. Foi vencido. O sectarismo partidário tentou envolvê-lo nas suas malhas, mas o velho general era demasiado digno para participar dos acordos e conchavos, indispensáveis à conservação do poder, na politicalha da velha República.
Desiludido, silenciosamente, afastou-se das posições e da atividade militar. Passou a viver para as letras, para a família e para a Academia, prezando até à morte a ascensão ao convívio acadêmico, como a sua maior vitória.
O General Dantas Barreto amava a arte e bem-queria aos artistas, vasta família de sofredores e desiludidos, em que poucos triunfam e a maior parte sucumbem desalentados e vencidos pela falta de ambiente propício, estimulador ao esforço que despendem. Quantos para quem a floração da inteligência depende de continuado e torturante labor, quantos abandonam o sonho?
Ao começo, trabalham, estudam, anotam, meditam, esperançados em atingirem ao Fiat da inspiração, realizando a obra-prima que imaginam. Consomem noites de vigília, rebuscando idéias novas, na luta para a conquista de períodos perfeitos, encerrando noções originais e de frases com metáforas cintilantes como meteoros, deixando após rastilhos luminosos! Às noites sucedem-se dias de pesquisa exaustiva, de pensamento revolto de contenção febril, no esforço para perceber a aparência fundamental, origem do belo. A estes dias, seguem-se outras noites, meses, anos... Finalmente, o edifício encantado começa a surgir do subconsciente. Exultante, coloca-lhe o animador os primeiros andaimes e, com paciência beneditina, vai amontoando o material para a construção faustosa: sensações, idéias, imagens, pedras, calhaus polidos pela cultura, palavras. As palavras, seleciona-as: algumas, como as definiu Ésquilo, esbeltas e aristocráticas, parecendo envoltas em amplos mantos de púrpura; outras breves e alígeras, calçando sandálias de ouro e vestidas de flores; e, ainda outras, encouraçadas de bronze, enérgicas e sonoras...
Súbito, o deslumbramento! E o artista, pobre Deus sem divindade, escuta o marulho de multidões de águas em tumulto; julga perceber do outro lado da existência terrestre o absoluto invisível e misterioso; e contempla, obumbrado, descer para si a esfera transparente da realidade idealizada, o segredo aberto de Goethe, onde vivem palpitantes os grandes símbolos humanos! Ouve-lhes os diálogos portentosos: Fausto com Helena, Prometeu com Antígona, Dom Juan com o Quixote, Napoleão com Zaratustra... Inesperadamente, claridades diáfanas, em lampejos cambiantes, irradiam, de forma inteligível, o espírito das paixões – do amor ao ciúme, do orgulho à calúnia, da avareza à inveja, do crime à caridade, a gama inteira dos sentimentos. E, aumentando o assombro no recinto fúlgido, aparecem serenas, luminosas de uma luz fixa de estrelas – Beatriz, a mulher que Dante criou para o amor no céu e Gioconda, a mulher que Da Vinci retratou para o amor na terra.
Desventurado Anfortas! O Graal continua retido no interior do sacrário mas, para resplandecer, fora preciso a fé e a obstinação de Parsifal!
O artista pensa ter atingido o momento da hipóstase criadora. Ilusão, falta-lhe ainda concretizar em arquitetura de forma, sólida e durável, tudo que viu, escutou e sentiu... O que resta fazer, demanda esforços hercúleos. Apercebe ser impossível continuar sem interrupção até à vitória final! Da faina dominadora e absorvente, afastam-no a luta pela vida, as necessidades materiais. Impõe-se-lhe abandonar temporariamente o lavor do prodígio em formação. Abandona-o, para depois volver. Retorna e recomeça. Pela falta de continuidade, o material acumulado envelhece e inutiliza-se. Esmorecem-lhe as energias e desiludido, concentra em si e para si todo o sonho que sonhou, vivendo-o, egoisticamente, nas horas de repouso que lhe sobram à conquista do pão.
Alguns, heroicamente, resistem e, sem temor à miséria, não contemporizam, abroquelam-se à sua arte como profissão, a ela exclusivamente dedicando-se. De um sei, orgulho e modelo para todos nós: – Coelho Neto, nela solitário, predestinado da ilusão, conservou-se e mantém-se íntegro e intacto dentro do seu sonho.
Aplica-se-lhe, sem paráfrase, um dos capítulos mais belos e sugestivos das Fioretti. Coelho Neto atingiu à Alegria Perfeita, no sentido místico da parábola, venceu-se a si mesmo, recusando os dons ofertados pelo mundo a quem o segue na conquista vã da riqueza e do poder, para tirar de dentro de si, em quase meio século de labor fecundo, circunscrito ao seu ideal e à sua arte, – a glória e o pão.
A Academia é, para esses, vitoriosos ou vencidos, refúgio e consolo. Sem preconceitos de escola, sem vaidades de primaciado, no seu âmbito todos fraternizam em torno do ideal, que, por intermédio do belo, busca atingir a verdade e o bem.
Neste recinto, entre Calibã e Ariel reina o último. Preferimos Ariel. Calibã inspira respeito e compaixão, mas é enganoso como a natureza; hirsuto, brutal como a caverna onde se acoita. Força virgem da terra, cava a gleba, semeia searas e inconscientemente pratica crimes e perfídias. Ariel, ao contrário, toca de leve o solo, adeja, veio do céu e traz-nos de lá “as estrelas mudadas em sonhos e mentiras”. Calibã possui milhares de habitações opulentas, aqui, não lhe abrimos a porta, reside unicamente Ariel, com a sua louçania e enganos deliciosos de mensageiro do devaneio, do ideal, do pensamento, matérias-primas sutis que transubstanciam, em beleza, e realidade informe, apanágio de Calibã.
Ao receber a investidura acadêmica, tenho em mente a pitoresca definição de Olavo Bilac e com que saudade lhe pronuncio o nome nesta noite e neste recinto, caracterizando-a como único cargo realmente vitalício, inamovível, inamissível, fatal, e, acrescenta ainda o poeta, “nem uma pena infamante priva da tonsura acadêmica!”
Irrevogabilidade e fatalidade que têm os seus percalços!
Não me assustam os compromissos assumidos. Serei sempre o que sou, e, sem vanglórias ou aspirações descabidas, pertencerei à ordem dos tonsurados mortais. Na colméia acadêmica outros produzirão o mel delicioso, eu louvarei o doirado dos favos, o perfume do néctar, a perfeição do fabrico. Aliás, isso ocorre em todos os cenáculos da imortalidade. Na Academia Francesa, instalada no velho prédio do Instituto, há uma galeria de bustos de legítimos imortais eleitos pela posteridade: Voltaire, Diderot, d’Alembert e, de gerações mais recentes, Lamartine, Victor Hugo, Vigny... Domina-os, ao centro, presidindo-os e assistindo-os com a sua glória, a estátua de Molière, um pobre cômico, que não pertenceu à Companhia. Mas, não é só. A mania dos bustos, em outras épocas generalizada, dá a impressão de que, ao entrarem para a confraria, os escolhidos levavam as próprias efígies envoltas no discurso de recepção. Há nos porões do Instituto, em desvãos mal iluminados, prateleiras sobrepostas onde se alinham centenares de outros bustos, irreverentemente acumulados. Com o decorrer dos anos, de séculos, alguns, quiçá por descaso dos serviçais, ao lhe espanejarem a poeira antiga, perderam a placa-etiqueta que lhes dava alcunha.
Presentemente, a identificação tornou-se impossível, e estes bustos representam hoje imortais anônimos, talvez heróicos como o soldado desconhecido!
Apesar de ser a mais relativa das concepções, é o tempo implacável e, entre os homens, o seu transcurso destrói a própria imortalidade por eles criada! Não alimento ilusões: na galeria dos nossos imortais serei, em futuro não remoto, busto com etiqueta perdida, e, nos anais acadêmicos, um nome sem renome! Mas, d’Aquele que no princípio era o Verbo e fez perpétuo como o Universo o pensamento humano, do meigo Jesus, que, à borda do poço de Jacó, deu de beber à Samaritana pecadora a água viva que dessedenta para a vida eterna, de Deus, suprema justiça e primeiro amor, eu espero julgamento e imortalidade!