DISCURSO DO SR. DANTAS BARRETO
Sejam as minhas primeiras palavras, nesta solenidade regulamentar, do mais vivo reconhecimento para com os eminentes escritores que me deram entrada na Academia Brasileira de Letras, em cuja serena atmosfera eu procurava, desde muito, um lugar, embora o último, para desafogo de uma existência intelectual que me seguia com permanente insistência. Evidenciado, entretanto, que não posso aspirar neste instituto senão o que ao mais obscuro dos seus associados compete, é certo que não venho preencher, assim, o vazio que se fez com a morte de Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, um dos brasileiros que mais dignificaram sua pátria e que melhores vestígios deixaram da sua passagem pela vida.
E se as dificuldades com que lutei para vencer a distância que me separava de tão valentes peregrinos, eram para desanimar um espírito menos resoluto, sem os hábitos das contrariedades torturantes, maiores proporções tomara o meu empenho de triunfo.
Por isso a minha vitória, de certo indiferente à grande totalidade dos nossos homens de letras, tem o alcance para mim de um sucesso francamente premeditado, de uma aspiração vivamente satisfeita. Confesso-vos que me sinto orgulhoso desta aproximação que me deu a segurança da vossa generosidade sem restrições.
Contudo, não levo a minha vaidade natural ao ponto de acreditar que resultasse do meu valor pessoal o acolhimento que tive nesta Casa. É que todos vós tendes acompanhado o desdobramento dos fatos que, desde muito, ilustram os melhores capítulos da nossa história e sabeis que à instituição das armas cabem algumas dessas conquistas com que vamos entrando no concerto da civilização universal.
Sabeis ainda que o estandarte dos nossos regimentos e batalhões sempre tremulou arrogante nas mais longínquas paragens deste continente, onde o dever militar nos tem conduzido, e quisestes, talvez por este meio fidalgo, dar uma prova solene de consideração ao Exército brasileiro na pessoa do seu obscuro representante, que buscou a vossa companhia. Não fosse o vosso sentimento de patriotismo tantas vezes manifestado em produções que vão além das nossas fronteiras literárias, vitoriosamente; não vos arrebatassem os feitos das nossas legiões antigas, através de aldeias e cidades remotas, para reprimirmos os excessos dos tiranos, para libertarmos povos escravizados e não me concederíeis certamente tamanha distinção. Não foi, portanto, ao modesto narrador das nossas últimas desavenças políticas que prestigiastes com o vosso acolhimento franco, mas sim ao Exercito nacional, que resumistes no mais obscuro dos seus generais. E assim, profundamente convencido dessa palpitante realidade, eu vo-lo agradeço em nome da minha classe, em nome das suas gloriosas tradições.
E contudo se eu não viesse ocupar o sólio de onde pontificara Joaquim Nabuco, sob a evocação de Maciel Monteiro, talvez não me pesasse a responsabilidade esmagadora de que não tenho meios de libertar-me airosamente.
A última vez que o laureado escritor e diplomata veia ao Rio de Janeiro, em 1906, eu estava em Mato Grosso e nem sequer me foi dado, nessa quadra de intensa vida internacional americana, ver os estragos que o tempo havia produzido nesse moço elegante e forte, de uma beleza insinuante e atraente, que até aos homens impressionava e atraía.
Ele dirigia os movimentos de um congresso em que se trabalhava pela aproximação continental americana; eu conduzia batalhões e bocas de fogo para restabelecer a harmonia de uma população, alarmada pelo incêndio da luta civil, a mais brutal e apaixonada de todas as lutas humanas. Aí se fazia a apologia da força do Direito, tão belamente desenvolvida entre nós, pelo nosso brilhante compatriota Dr. Sá Viana; aqui, se ostentava e direito da força, que não é uma convenção formulada em capítulos admiráveis, cuja técnica constitui o encanto dos protocolos complicados e cujos textos se rompem ao primeiro assomo de violência contida. “Le droit de la force, tant honni, est non seulement lê premier en date, de plus anciennement reconnu, mais la souche et le fondement de toute spèce de droit”, dizia Proudhon. Nós, entretanto, nunca usamos desse direito senão em defesa legítima, senão para mantermos ilesa a soberania da Pátria.
Acredito que um diplomata pode bem ser substituído em lugar de destaque por um general, porquanto um general, como o idealizam os mestres da guerra, deve ser invariavelmente um diplomata tão galante e astuto nos salões das grandes embaixadas, como sereno e vigilante nas lutas internacionais, onde se jogam os destinos das nações em litígio. Nabuco, porém, não era simplesmente um diplomata como qualquer pretensioso, apenas recomendável pela correção da sua farda bordada ou de uma casaca da última invenção do príncipe de Gales: era primeiro um intelectual apaixonado pelos grandes acontecimentos da história, e, como ele mesmo refere, ainda novo, Lamartine, Thiers, Mignet, Louis Blanc, Quinet, Mirabeau, Vergniaud e os girondinos, tudo passava sucessivamente pelo seu espírito, já grandemente ilustrado nos fatos políticos dos principais povos do mundo.
Depois era um mundano dos mais requintados e vitoriosos, que passara por todas as sensações violentas dos meios mais exigentes, das sociedades mais aparatosas, na Inglaterra, como na França, na Itália, como nos Estados Unidos da América do Norte.
Nascido na então província de Pernambuco, em 1849, Joaquim Nabuco fez a travessia da existência, de criança a adulto, sem dificuldades materiais, sem os embaraços que a escassez de recursos cria, e, já do colégio, se interessava pelas idéias políticas de seu pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo. Sua educação literária foi desde começo encaminhada para centros de maior atividade, para outras civilizações mais ruidosas, sem que talvez ele mesmo percebesse a intenção de quem o guiava com esse destino Dai resultava conhecer melhor o francês e o inglês do que a língua do seu país, que lia relativamente pouco. E assim, quando foi impelido pela espontaneidade do talento às suas expansões literárias, fez prosa e versos em francês e lançou à publicidade um volume intitulado Amour et Dieu, que, segundo Renan, a quem fora destinado um exemplar, traduzia o sentimento de um verdadeiro poeta.
Uma vez em Paris, aos 24 anos de idade, Joaquim Nabuco conseguiu aproximar-se do autor da Vida de Jesus, por quem nessa fase da sua vida tinha o fanatismo das grandes admirações, o respeito quase divino de um deus em plena terra. Por intermédio de Ernesto Renan conheceu Taine, Scherer, Littré, Laboulaye, Charles Edmond, George Sand e Saint-Hilaire, que o apresentara a Thiers como, de resto, ele próprio conta no livro da sua Formação.
Não podia haver melhor companhia para um homem de letras estrangeiro e é fácil de perceber com que distinção, assim prestigiado, Joaquim Nabuco aparecia nos principais focos mundanos de Paris.
É um trabalho singularmente penoso, meus senhores, para quem não viveu na intimidade do eminente brasileiro, que foi o nosso Embaixador na América da Norte, traçar a síntese da sua fulgurante carreira, como político, escritor e diplomata, e de quem dizia o ex-ministro Root:
“A largueza da sua filosofia política, a nobreza do seu idealismo, a visão profética da sua imaginação de poeta, eram nele reunidas à sabedoria e sagacidade prática do homem de Estado, a um simpático conhecimento dos homens e um coração sensível e afetuoso, como se fosse uma mulher.”
Por isso que ai fica já se vêem traços ligeiros da sua fisionomia moral e intelectual, da sua individualidade, evidentemente superior.
E, contudo, se fosse mister isolar-se das grandes fascinações que estragam a alma e o corpo, que constituem a suprema felicidade de quem nunca soube o que eram restrições nos seus desejos saciados, Joaquim Nabuco não resistiria decerto. Se tivesse de embrenhar-se nas solidões de um país selvagem, como Humboldt ou Euclides da Cunha; nas sombrias regiões dos Andes ou das florestas amazônicas brasileiras, não suportaria um mês. Matava-o a nostalgia desse tumultuoso meio onde formara o espírito delicado.
Não me parece que Joaquim Nabuco tivesse jamais dificuldades que o contrariassem de leve ao menos. Em vez disso foi um vitorioso por toda a parte, onde quer que o levassem os sucessos do seu tempo. Ainda criança começou a viver numa atmosfera de homens ilustres, cujas doutrinas políticas ouvia com o interesse que lhe vinha das primeiras preocupações da sociedade política: Tavares Bastos, Teófilo Ottoni e Saldanha Marinho, para não falar de outros, que ainda existem dessa fase, cada um com seu feitio próprio, nas combinações da sua estratégia de combate.
Demais, quando se é filho de um primeiro-ministro, mesmo em adolescente, não se podem evitar carícias requintadas, de uma ternura muitas vezes doentia, solicitações as mais insistentes para o gozo, para as alegrias da vida, de toda a gente que tem os olhos no sol e até da que vive em torno do sol, bem aquecida dos raios abrasadores do grande astro. Isto é humano, e Joaquim Nabuco não escapara às condições mesológicas do seu tempo.
Começou o jovem brasileiro a desenvolver-se num ambiente calmo do Segundo Império na convivência dos reguladores das situações dominantes, e por maiores que fossem as suas impressões sobre os sistemas políticos vitoriosos nos Estados Unidos do Norte, na França e na própria América do Sul, e apesar de lhe contarem os seus autores as peripécias das grandes revoluções da humanidade para vitória da democracia, cedeu às contingências do meio que o absorvia e fez-se monarquista decidido, inflamado, de cujas normas se convenceu ainda mais com a leitura de Bagehot, que lhe pintara a Monarquia inglesa com o prestígio deslumbrante da majestade, da pompa, do aparato, para satisfazer a imaginação das massas.
Era, todavia, suscetível de modificação radical política e, de fato, mais tarde, tivemo-lo na vanguarda das nossas instituições vencedoras em 15 de novembro de 1889, honrando sua Pátria e conquistando mais brilho para o seu nome já feito.
O que admira é que esse homem nascido sob tetos de ascendentes já então cercados de recursos abundantes e que viveu como os príncipes de raça nos paços de seus país, indiferente às necessidades do dia seguinte, consciente do seu valor, consagrado pelo talento dentro e fora do Brasil, fosse de uma acessibilidade cativante, quase ingênua, dizem os que ainda restam do seu convívio inesquecível.
Podendo tornar-se um déspota intelectual em seu país, como foi Goethe quando se apercebeu da sua influência na Alemanha; podendo cercar-se da legião dos incapazes que formam as maiorias nas letras e nas artes, para abater o ânimo dos que lhe pudessem fazer sombra, segundo, o processo do autor do Fausto, dominou pela bondade, pela fidalguia do seu trato e pela elevação dos seus princípios.
Andou pelo jornalismo de São Paulo, desta Capital e de Pernambuco, doutrinando os princípios reguladores de seu monarquismo vitorioso na Inglaterra, onde as instituições refletem a vontade de um povo normalizado pelos sentimentos de raça, de disciplina social e de confiança nos seus destinos; depois entrou para a Câmara dos Deputados e logo se manifestou um orador eloqüente, arrebatador e emocionante, ao serviço da liberdade de tantos brasileiros que concorriam para a nossa prosperidade, que faziam a nossa riqueza e até que iam de terra em terra, conscientemente defender a honra da Pátria comum; a isso junte-se o polemista elegante, incisivo e cruel, que feria sem deixar cicatrizes no adversário. E, contudo, não ficavam aí as cogitações da sua atividade política e social.
Era preciso não adormecer sobre os louros das últimas vitórias. Por isso, acreditando numa monarquia que pudesse conciliar as nossas aspirações do momento, como se tivéssemos as tradições, os costumes e a educação do povo alemão, tentou, por meio de um projeto de lei, desdobrar a forma unitária do império gasto, numa monarquia federativa aliás de alguma sorte simpática aos republicanos ativos, porque dava esperanças de uma trans¬formação radicalmente democrática, definitiva.
Sempre apaixonado pela liberdade da nossa população escravizada, cuja nódoa infamante para a Nação ele via com seu grande coração dilacerado, nunca os comícios populares aqui e no Recife tiveram mais arrojado tribuno e nunca esses abandonados da sorte ouviram palavra mais convencida, cruzado mais cheio de fé. Foi talvez a fase mais brilhante da sua vida. Richelieu destruiu a importância política e tirânica dos protestantes na França de Luís XIII; Joaquim Nabuco fez mais: conquistou para uma raça maldita todos os favores da civilização e do trabalho. Não precisava mais nada para a sua imortalidade.
Tomemo-lo agora, de relance, como o investigador que leu com a impaciência das grandes curiosidades as obras-primas de todas as literaturas, desde a mais remota antiguidade até os últimos dias da sua vitoriosa existência.
Nada lhe escapou nessa busca incessante pelas bibliotecas mais afamadas do Oriente e da Grécia, de Roma e da Itália, da França e da Inglaterra, da Alemanha e de Portugal. Mas, quando me fosse dado acompanhá-lo de longe, sequer, por entre as escavações das obras lidas, que ele ia abandonando após uma assimilação exata, não era isso trabalho para uma solenidade que tem as horas contadas, muito restritas.
E depois dessa peregrinação intelectual em cujo longo percurso foi Joaquim Nabuco caminhando de braço dado com Moisés na obra-prima da humanidade; com Homero e Ésquilo na epopéia e na tragédia; com Virgílio e Dante, Tasso e Camões, e depois de colher os melhores ensinamentos de letras e artes, resumidos nos monumentos literários desses divinos guias, escreveu e publicou trabalhos que ilustram a nossa literatura, aliás já bem enriquecida por muitos escritores de nota e principalmente por aqueles de quem venho de me aproximar nesta Casa.
Figuram no mercado das livrarias e nas estantes dos escritores mais exigentes onde se lê o português e o francês, os seus livros que se denominam: Camões e os Lusíadas, Minha Formação, Pensées Detachées et Souvenirs, Um Estadista do Império, Balmaceda e outros trabalhos colecionados em volumes de mérito.
De todos os grandes poetas enumerados, entretanto, o que mais feriu a imaginação de Joaquim Nabuco, pela forma e pelas torturas da sua vida martirizada, foi o divino Camões, com os seus amores infelizes, sempre perseguido dos homens e da sorte.
E para exalçar o gênio do grande poeta lusitano, Nabuco afirma que a Divina Comédia não vale os Lusíadas e acrescenta que a trilogia dantesca não é propriamente um poema épico: acha que é um poema fantástico.
E terá razão o investigador brasileiro? Di-lo-á o eminente escritor Dr. Carlos de Laet, se quiser amparar-me nesta questão que, decerto, envolve o amor-próprio de Portugal, a simpática e auspiciosa República de hoje. Contudo, eu penso que para dar corpo ao que existe, visível ao observador atento, basta conhecer os processos de reprodução dos objetos que vos ferem a imaginação, e essa cópia será tanto mais exata quanto maior for a habilidade do artista, do mecânico ou do cientista, encarregado de semelhante cópia.
Efetivamente, traçar as normas de um poema heróico, condensar os elementos que fazem o seu objeto, dar vulto à idealização da epopéia e por fim movimentar o seu conjunto com a regularidade dos astros, eternamente em giro, na imensidão do espaço é empresa para o gênio de Homero ou de Camões, em cujos cantos a paixão, o heroísmo e o amor nunca foram mais prestigiados. Eu penso que Homero e Dante modelaram os dois grandes tipos do poema heróico, cada um com o seu feitio original, cada qual exprimindo as ações do seu tempo, pelo heroísmo de povos conquistadores ou pelas discórdias e pelas injustiças dos homens contra os homens.
Na realidade, Camões foi o eco vibrante das tradições gloriosas de um povo destemido e laborioso, que teve domínios nos mares e continentes, mas no Dante, por isso que prepondera na Divina Comédia a imaginação e a fantasia, há mais gênio criador do que no poeta dos Lusíadas, há mais originalidade, há mais poder emotivo e só pode ser comparado com Homero, de cuja obra gigantesca se originaram as artes e as letras da Grécia. Homero, entretanto, teve imitadores em Virgílio e Camões, para não falar de outros; o Dante ainda não foi imitado por ninguém, e tal é a grandeza da Divina Comédia que, segundo o próprio Nabuco, é a criação da Idade Média com a sua lógica, seu mundo de espíritos, sua escuridão, sua noite.
Joaquim Nabuco atravessava a melhor quadra da sua radiante mocidade, quando, em 1872, publicou o seu livro Camões e os Lusíadas. Identificado, por uma forte concentração de estudo, com os sentimentos do poeta lusitano, pintou o seu ídolo com excepcional relevo, através da sublime epopéia cheia de incidentes valorosos, em cujo desdobramento transparece nitidamente a história de Portugal e para cujo pretexto buscara Camões a temerária viagem de Vasco da Gama às terras meridionais da Ásia Central.
Os amores, as desventuras, os sofrimentos e as melancolias de Camões, inspiram essas páginas de erudita eloqüência a que o escritor brasileiro deu todos os tons de desalento, de paixão veemente fazendo por vezes cotejos entre os maiores poetas da humanidade, sempre arrojados. E concluiu daí Joaquim Nabuco que nenhuma vida foi mais cheia de amarguras, nem mais digna de estima do que a do cantor dos Lusíadas.
Buscar de novo o delicado escritor nacional na turbamulta dos homens e dos fatos que ele examinou em toda a sua obra política e literária, seria mostrá-lo com todas as proporções do seu privilegiado talento; mas eu já tenho abusado muito da vossa generosa atenção, de modo que nem sequer me é dado ferir as passagens mais tocantes do livro da sua Formação, por onde decorre todo o perfume de sua existência de menino e adulto, e nem ao menos posso falar da personalidade simpática e serena de seu pai, o senador Nabuco de Araújo, que ele estudou em três fortes volumes e em cujas últimas páginas, decerto as melhores da obra inteira, sente-se a mágoa da ingratidão com que feriram a alma sensível do notável estadista em face de uma preferência talvez injusta do imperador D. Pedro II.
Dizem que Joaquim Nabuco não foi bem um escritor profissional, um poeta ou um artista, como o entendem os conhecedores dessa técnica do belo. Não posso entrar nesta apreciação escabrosa, tanto mais quanto apenas fiz uma leitura superficial das suas obras, e também porque me falta competência para julgá-lo.
Percebe-se que em Nabuco predominara o sentimento do aparato, a paixão do ruído mundano e que ele não seria capaz de sacrificar um momento dessa necessidade psicológica a uma inspiração genial, cuja síntese fosse preciso aproveitar no isolamento de si próprio, imediatamente, como o faria Coelho Neto, por exemplo. Penso, entretanto, que, no publicista espontâneo e elegante se encontra o escritor, o artista emocionante, profissional ou não, e, por fim, o diplomata de raça.
Foi esta última feição dos últimos tempos da sua vida que lhe deu grande relevo na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte e em cujas complicações oficiais tornou-se digno de um príncipe de Metternich ou de um príncipe de Bismarck.
Os trabalhos que desenvolvera na Itália em defesa do nosso litígio com a Inglaterra e que ecoaram em todas as chancelarias dos grandes países; a confiança que inspirara no corpo diplomático americano, chegara, no dizer de Root, a dar-lhe o cunho de figura dominante do movimento internacional da atualidade.
A diplomacia absorvia assim, por vezes, o homem de letras, o artista da prosa e verso, por vezes também abrasado de entusiasmo e paixão.
É de fato averiguado que a literatura de um povo dá exatamente a medida dos sentimentos deste, da sua civilização, dos seus hábitos e costumes e, no dizer de H. Heine, sua história é a grande morgue où chacun vient chercher ses morts, ceux qui ont des liens de parenté. Da sua feição preponderante se coligem as situações e tendências de uma época, assinalada por acontecimentos que perduram e que refletem as condições mesológicas de uma coletividade. Nem outra idéia nos alimenta a filosofia da história.
Assim é que até o aparecimento de Goethe e Schiller, os escritores da soberba Alemanha gastavam o seu talento e a sua erudição em descaradas imitações de uma antiguidade grega já desfigurada em França e faziam reviver o prestígio da Idade Média com tudo que falava desse piedoso tempo com as suas catedrais misteriosas, no seu conjunto arquitetônico suntuoso, na sua ornamentação aparatosa, e nem mesmo o espírito cavalheiresco de campeões aventurosos se lhes apagara da imaginação, incapaz de produção original. Imitaram-se com toda a santidade as peças de Calderón de la Barca, de cujas páginas, inspiradas nas doçuras do Cristianismo, tinha-se a sensação do perfume que se evolava do sagrado incenso pelos templos abertos à contrição dos fiéis; ora o espiritualismo com a sua feição melancólica, renascido das obras de arte católicas da Idade Média: na tela, no mármore e em todos os atos dessa tocante religião poética. Era o sentimentalismo de uma fase doentia da humanidade, reconstituída num país cuja originalidade literária havia desaparecido com os seus grandes escritores. Cada país, portanto, vazado em moldes de civilização antiga ou moderna, tem os seus escritores que falam do seu tempo na posteridade e nós tivemo-los também resumidos em Tomás Gonzaga, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.
Joaquim Nabuco pertence entre nós a essa família de escritores que mais realce têm dado às nossas glórias, a qual vem de quarenta anos se renovando sempre, e que atravessa vitoriosamente esta fase movimentada da nossa vida política e social, fortalecida pela fé que lhe domina a alma generosa, cujo sentimento constitui o primeiro elemento do triunfo artístico.
Algumas das suas obras irão à mais remota posteridade e nunca, portanto, seu nome desaparecerá da nossa literatura, já hoje a mais rica, talvez, do continente americano.
A triste notícia da sua morte, lançada de repente, inesperadamente, no Brasil inteiro, tomou as proporções de um desastre colossal! Estava muito em evidência nesse momento terrível para não ser assim. Ninguém calculava, decerto, que esse homem havia pouco tão empenhado nas questões de maior vulto das duas Américas, estivesse às bordas do esquife que o recolhera, por entre as saudades do grande povo cujo luto, nesse momento, se confundiu com o nosso.
Sabem todos o respeito com que foi tratado o cadáver de Joaquim Nabuco pelo Governo dos Estados Unidos e as solenes manifestações de pesar que foram tributadas em sua honra. Essas demonstrações na hora derradeira tomaram as proporções dos grandes acontecimentos na América do Norte, tal era o valor do nosso egrégio morto na poderosa República amiga, e, ainda hoje decerto, a casa em que morreu o ilustre brasileiro será olhada com acentuado pesar pelos homens de espírito que privaram com o nosso imortal patrício. Sirva-nos ao menos tão significativa homenagem ao diplomata extinto de imperecível consolo. Conduzido a seu país num elegante cruzador, dos mais poderosos atualmente, coube-me a piedosa missão de assistir, em nome do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao desembarque do caixão que encerrava os seus despojos e depois acompanhar todas as cerimônias dos seus funerais pranteados, até a partida do féretro para a cidade do Recife, onde o deixaram, por fim, na solidão de um campo santo.
Sigamo-lo agora nos seus exemplos de patriotismo, na justiça das boas causas, em torno das quais se bateu, entre os mais arrojados. Em vez da luta esterilizadora em que nos empenhamos, desde algum tempo, proclamemos cheios de confiança o direito de todos os brasileiros aos favores do nosso pacto fundamental e, se houver classes privilegiadas no país, acabemos com essa ilegalidade que o nosso regime não comporta. Acentuemos bem que todos os homens desta nação livre devem ter os mesmos direitos políticos e de representação, na esfera da sua competência, seja socialista exaltado ou republicano radical, católico ou protestante. Na luta pelos princípios o vencido de ontem pode ser um bom elemento de conciliação amanhã.
No trabalho de reconstituição da Pátria sejamos todos brasileiros e respeitemos os direitos de todos.O que precisamos neste momento é de orientação político-social e que a força brutal dos canhões aperfeiçoados seja apenas um instrumento de civilização, da liberdade e da justiça.
Onde houver o culto da justiça não pode vingar a planta da tirania, cujos últimos rebentos se extinguiram nos países americanos.
É sob estas singelas impressões, vingadoras desde que as ciências exatas libertaram o sentimento humano de teorias imaginosas, subjetivas, que venho ocupar o lugar que me destes na Academia Brasileira de Letras e de cuja posição me sinto profundamente orgulhoso.