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Perda

 

Na quinta-feira da semana passada, dia 24, perdi um amigo e companheiro na reinvenção da vida: o pintor Antonio Henrique Amaral. Ele nasceu em São Paulo e viveu quase todo o tempo nessa cidade. Andou pelo mundo e morou algum tempo em Nova York, mas foi na capital paulista onde viveu e trabalhou a maior parte da existência.

Fazia algum tempo não nos víamos, mas isso em nada alivia o baque que me causou a notícia de sua morte. Aliás, até o momento, mal consigo acreditar nela.

Faz mais de 50 anos que nos conhecemos e que conheço seus trabalhos, tendo escrito sobre eles. A relação nascida naquela época se manteve ao longo dos anos, apesar dos percalços que tumultuaram nossas respectivas vidas.

Mas tais problemas, em vez de nos afastar, nos aproximaram, graças ao sentimento de solidariedade. Foi em sua casa, em São Paulo, que me abriguei, quando saía clandestinamente do país, em 1971. De volta ao Brasil, reatamos nossos contatos, tendo eu a oportunidade de prefaciar livros seus e exposições de seus trabalhos.

Além da admiração que sempre manifestei por sua arte e de certas afinidades de temperamento, ligou-nos também o inconformismo com o regime militar que se implantou no Brasil a partir de 1964.

A esse propósito, deve-se observar que sua admirável série da bananas está entre as mais significativas manifestações artísticas de contestação da ditadura. Nela, Antonio Henrique Amaral conseguiu incutir ao significado das bananas, como símbolo da vida nacional, o caráter alegórico da fruta, para denunciar o regime autoritário que atentava contra as conquistas de um Brasil independente e democrático.

Deve-se observar que, de modo geral, a arte engajada tende a se tornar retórica e às vezes demagógica.

Isso não acontece com a arte de Antonio Henrique, uma vez que essa fase de suas pinturas e gravuras nada fica a dever, esteticamente, às demais fases de sua produção. Agora mesmo, ao rever imagens de alguns desses quadros, redescubro neles o talento e a criatividade que os consagraram. Nas telas a óleo, como nas xilogravuras, ele versa esse tema com raro apuro estético, que se revela tanto no desenho quanto na originalidade do colorido refinado.

A esse propósito, cabe assinalar, na sua obra, as qualidades excepcionais do desenhista e do pintor, que lhe reservam um lugar de destaque no acervo da arte brasileira moderna. A obra de Antonio Henrique Amaral teve um desenvolvimento admirável, quando ele juntou ao elemento figurativo formas abstratas que parecem flutuar magicamente no conjunto da composição.

Esses são apenas alguns fatores que fazem de sua obra uma das mais ricas contribuições à arte gráfica e pictórica do país.

Minha admiração por seu talento está manifesta nos vários textos que escrevi sobre ele e mais particularmente no convite que lhe fiz para ilustrar esta coluna na Folha de S.Paulo. Durante vários anos, estivemos juntos nesta página, para minha alegria em tê-lo com parceiro.

Nossa parceria deu certo, tanto que dela resultou o livro "Resmungos", editado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que reuniu uma seleção de crônicas e ilustrações aqui publicadas.

Houve um momento, porém, em que nos desentendemos e decidimos interromper a parceria nesta coluna, ocupada desde então por outro excelente ilustrador, meu atual parceiro, Rubem Grillo. Aquele fato, naturalmente, nos afastou.

Se, por um lado, o novo parceiro imprimiu uma outra linha expressiva a este diálogo da palavra escrita com a criação gráfica, por outro, a ruptura de tão longa amizade me deixava inconformado.

Descobri que o mesmo sentimento o tocava, conforme ficou provado faz poucos meses, quando pus de lado qualquer arrogância e enviei uma mensagem manifestando-lhe o desejo de reatar a velha amizade. A reação dele foi instantânea e generosa, como eu esperava. Voltamos às boas de sempre. Pena que durou pouco.

Faz algumas semanas que recebi, enviado por ele, um volume que reúne suas obras de pintor e gravador. Vou guardá-lo como um testemunho precioso de afeto, sem favor. 

Folha de São Paulo, 03/05/2015