A PESCA DO SURUBIM
Hora e tanto já, e nada de peixe. Mas o gostoso era ficar assim na canoa, pensando na vida, imaginando coisas. Passada aquela eleição, ia sossegar. A política matava, acabava com a pessoa. Depois que se metera nela, nunca mais pudera ter uma semana de descanso. Escravo dos outros, do partido, do eleitorado. E os adversários não dormiam, os concorrentes vigiavam. Todos os dias, uma notícia má, nomeações que não saíam, chefes do interior que ameaçavam romper por causa de pedidos impossíveis... E ter de mentir, de prometer...
Doutor, doutor... agora é a peixa... é a peixa, sim... engasgava o Gerôncio. Ferra, doutor, ferra!
Mas era Paulo quem estava no cabo da vara; sabia que precisava esperar, sentir primeiro aquele tranco surdo trazido das profundidades pela linha de aço e pelas fibras do bambu.
Calma...
Agora! O pescador abaixou a vara um pouco mais, mais um pouco ainda, para bambear o aço e voltou com ela, num golpe duro, seco, certo.
Ladrão! Paulo gritou quando sentiu a vara erguer-se frouxa, sozinha.
Lhe falei, doutor... O senhor dormiu no ponto...
Fora peixe grande, mesmo. Do muçum, nem notícia: o anzol sem um fiapo de isca...
Ferrou de mau jeito, Gerôncio. Mas antes escapar no começo que na hora de embarcar o bicho na canoa. Já-já o safado está de volta. Você trouxe alicate?
A ideia do alicate era desculpa. Paulo sabia que Gerôncio não se dava a esses luxos de carregar a porção de ferramentas que pescador de cidade costuma trazer nas capangas. Com a volta do anzol mais entortada ou exatamente como se achava, não seria por isso que o peixe ia escapar da fisgada. Falta de treino, isso sim. Errar logo um peixe de couro! Felizmente, o Rufino não estava perto. Se estivesse...
Paulo ajeitou outro torete de muçum no anzolão. Perfeita, aquela enguia preta e encontradiça em qualquer brejo ou resfriado dos rios do Sertão dos Confins. O Lobo, outro fanático pela pesca dos grandes peixes noturnos, tentara aclimá-la em Amburana, inventando um brejo artificial no quintal da casa dele, planejando até uma criação para vender as iscas vivas à companheirada. Mas o muçum só vivia mesmo era pelas bandas do Urucunã, nativo de lá, e tal criação dera em nada. Uma pena, pois, como o Lobo dizia, Deus quando inventou o mundo previu até a pesca do surubim. “Que outra serventia?” perguntava ele. “Prestem atenção na cobrinha: carne dura, sangrenta, o tubo digestivo num canudo só, de calibre certo para se ajustar aos anzóis fundo de agulha e revestido, ainda por cima, desse músculo contrátil, acomodatício, agarrando-se ao aço como guarnição de borracha...” Outro que gostava dum palavrório, o Lobo. E as discussões dele com Rufino? Os peixes em latim, os plecostomus, os bimaculatus...
Foi pena você não conhecer o Lobo, Gerôncio: companheirão estava ali! Paulo disse, depois que atirou novamente a isca no centro do rebojo.
O senhor fica conversando, Dr. Paulo, e daqui a pouco o peixe passa outra vez a perna no senhor... provocou o maldoso do Gerôncio.
Mas o pescador estava prevenido. Sustentava, agora, a vara com ambas as mãos, sem deixar que encostasse na borda da canoa, para que as mínimas vibrações do bambu lhe chegassem imediatas e perfeitas. Ferido na boca pela ferrada malsucedida, o peixe ainda demoraria a voltar e a sucumbir ante a presença do outro muçum carnudo e tentador... Mas havia outros: o rebojo da peroba-rosa nunca deixava ninguém de mãos abanando...
Tontura gostosa dava a pinga forte do Gerôncio. E o silêncio, o balançar maneiro do rebojo, o fresco da chuvinha manhosa, a escuridão do rio... Impossível fixar-se numa ideia só, ou concentrar-se apenas na ponta do caniço: os pensamentos libertavam-se naquelas horas de espera, as preocupações sumiam, vinha a suave sensação de leveza e bem-estar. Daí, o irresistível daquelas fugas para as beiras de rio, o vício em que elas se tornavam. Boa vida, a de antigamente! Mas metera-se de uma vez na política, e agora era tocar para diante, que jeito já não havia de recuar. Abandonar, por exemplo, o João Soares... E os compromissos com o Bernardino, esse quase convencido, afinal, da inutilidade da antiga e terrível oposição aos Rochas, já aceitando os argumentos de D. Candinha, já se afastando da briga, dedicando-se mais à clínica e à família... Impossível... Fora ele, Paulo, que aparecera em Santa Rita para açular o pobre, metê-lo em brios... Razão tinha, e de sobra, a mulher do Bernardino, em mostrar aquela má vontade, aquela quase hostilidade... E os outros? O pessoal de Amburana, de Pedra Branca, os companheiros dos vinte e tantos municípios onde fora fundar partido e reforçar a luta contra a situação? Recuar como? Fugir como?
Agora, doutor! Ixe, que monstra. Não dê a ponta, não, que a linha arrebenta! berrou de súbito o Gerôncio.
Desta vez, a ferrada fora certeira. Ao golpear a vara, Paulo sentiu o soco da fisgada, firme tal e qual machadada de machado novo em tora macia de cedro. E um despropósito de peixe, que a vara se arqueou em curva alta, fechada, atingindo até os gomos atarracados do cabo.
Surubim! E dos manatas, olhe a vara! continuava o escandaloso do Gerôncio. Não dê a ponta, não, doutor!
E dos pintados! o deputado gaguejou. Está puxando de esguelha, o ladrão... Duas arrobas, no mínimo. Virgem, é um cavalo de peixe!
Sempre com razão, o Aleixo Telegrafista! Ferrada misteriosa. Sim, quem puxava o anzol com aquela força não podia ser bicho deste mundo. Era o caboclo-d’água. O chupão das profundas do rio levara quase metade da vara para dentro do rebojo. Mantê-la em pé, embodocada, as mãos destreinadas de Paulo já quase não o conseguiam e, se o peixe lograsse diminuir de mais um tico o ângulo que o bambu ainda mantinha com o nível do rio, aí então é que nada evitaria o desastre: linha, vara, pescador bastava que este caísse na bobagem de bancar o teimoso, tudo seria engolido de uma vezada pelo horrendo sumidouro....
Nos seus bons tempos, Paulo não admitiria aquilo mas teve de aceitar, agora, a demão do Gerôncio. O preto passara-lhe os dois braços rijos pela arca do peito, cruzando as mãos num arrocho definitivo, ajudando a fazer força. Pés calçados no reforço transversal que todo canoeiro prático já deixa pronto, inteiriço, na hora de ocar a tora de pau, o negro bufava:
’Guente o galho do seu lado, patrão, que do meu lado eu ’guento!
O bambu estralava que nem taboca no fogo. O cabo de aço três fios doze trançados, decerto presente do Pe. Sommer ao Gerôncio parecia laço em cabeça de boi xucro. Zanzava, doido, cortando o rebojo de fora a fora, enfiando-se por baixo da canoa, procurando a água-braba, fugindo, voltando, regirando agora, desatinado...
Recolha a sua linha, Gerôncio! Me largue! Deixe o bicho sozinho por minha conta. Recolha a linha, senão o peixe se embaraça nela!
Mas o Gerôncio não largava. Conhecia o tamanho daqueles surubins do rebojo e, pelo tinido da linha, adivinhava o animal que o Dr. Paulo havia ferrado.
Tem perigo não, Dr. Paulo. Ei, linhinha macha! Fica pancrácio, fica, bigodeira de jauzão! Ixe, Nossa Senhora, bicho feroso este, cruz!
Linha às costas, agora, o peixe esbarrava velhaço, no centro do rebojo, onde a ventosa da água chupava irresistível como boca de sucuri. A vara envergava, envergava, ringia, estalava.
’Guenta, doutor! Incomode com a canoa não, isso é brinquedo para ela! Se entrar mais água, eu solto a poita...
Bicho desgraçado! O repuxo era tal que a canoa embicava, popa levantada, a proa apanhando água. Se o peixe se mantivesse empacado daquele jeito, que nem estorvo em boca de bueiro, o remédio era mesmo soltar a poita para aliviar a canoa e ficar rodando com ela por sobre o redemoinho, até que se cansasse e cuidasse de inventar outra moda. O tempo passava, Gerôncio sem se resolver alargar o companheiro, e a canoa pegando cada vez mais água.
Pode me largar, Gerôncio. Solte a poita!
Mas não foi preciso: o surubim desembestara, agora num volteio maluco de pião. Lá estava, porém, na argola de arame do cabresto, o girador. A linha de aço se destorcia quando chegava ali, afastando o perigo das crocas. Muito peixe escapa assim, em vara sem girador, a linha arrebentada no melhor da hora...
Tempão lutou o peixe antes de pranchear, entregue. A espaços apontava a cabeça à superfície todo feioso de pau preto para, em seguida, remergulhar num último desespero. A vara, porém, empinada, quase a prumo, obrigava-o mais e mais a acercar-se da canoa. Gerôncio deixara, afinal, Paulo gozar sozinho a luta com o surubim já dominado.
Me apanhe a carabina, Gerôncio. Tome a vara, tome...
O surubim boiou por derradeiro quando boiou bem no centro do rebojo, lá onde as espumas não chegavam. Paulo atirou. Bruto tiro de morteiro que quis ameaçar um ror de iguais respostas nos barrancos mas que mal deu em tímido pingue-pongue de ecos frouxos, porque molhados e apagados logo pela chuvinha que apertava.
(Vila dos Confins, capítulo IV, 1956.)
A CHACINA
Acostumado a levantar-se cedo e ir logo ao Fórum, Seu Juca Meirinho ali chegou pouco antes das sete da manhã, malgrado o frio e a ausência do Juiz de Direito.
Sabia da reunião marcada para as oito horas. entregara, na véspera, por ordem do Dr. Damasceno, a chave da porta de entrada do sobrado ao Sargento-ordenança e desejava, agora, pôr-se à disposição do delegado militar. Abriria o café do vão da escada e, vez ou outra, acharia desculpa para ir até o andar de cima, conforme recomendara o doutor, a fim de verificar se não tentavam fuçar pelo quartinho fechado, cheio de roupas e outras coisas particulares, além de tanto livro e papelada.
A porta estava aberta, de sentinela embalada. Mais velho que o sobrado era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro no antigo Fórum, e já rapazote e já taludo, quando da construção e instalação do novo o prédio acabou como por ser da casa, coisa sua, e o oficial de justiça foi entrando, distraído, pensando no café do Capitão e das outras pessoas por chegar.
Alto! o cavalariano atravessou-lhe o passo.
Assustado com o berro, a feia catadura e a declarada má-inclinação da sentinela a fera estava armada de máuser, sabre e mosquetão, as cartucheiras pesadas de tanta bala, mal pôde o Juca Meirinho gaguejar:
Mas eu sou o oficial de justiça... O doutor... O Doutor Juiz de Direito...
Aqui não tem juiz de direito nenhum! O Fórum ’tá requisitado. Se arretire!
O jeito era afastar-se, como ordenava o soldado, e foi o que fez o Juca, sem abrir mais a boca, cruzando a Praça e indo postar-se na esquina da confeitaria. Quando aparecesse o Capitão reclamasse o café, que viessem ali chamá-lo... E, se o homem azedasse, paciência!: o volantezinho malcriado da porta do Fórum, então, que ouvisse...
Erguia-se a manhã, ainda fria e nevoenta, e principiava a encher-se o Largo das Mercês. Abriam-se as portas da Confeitaria do Cucute, as das lojas e outras casas de negócio abriam-se as janelas dos sobrados que davam para a Praça. Iam e vinham as normalistas descia dos altos o povo do comércio, subiam os que voltavam do Mercado.
Encostava-se ao ponto o primeiro carro de praça, quando o relógio da Matriz deu as sete horas, e começou a apitar a serraria-carpintaria do Seu Costinha da Força-de-Luz, lá no Alto da Estação.
Mais um dia! pensava o Juca Meirinho, de pé na esquina, curtindo a mágoa causada pelos gritos da sentinela. Felizmente, porém, o Governo já havia mandado chamar, com urgência, o doutor... Seu Polinésio da Estação falara, muito em segredo, na véspera, depois que partira o Dr. Damasceno, sobre um telegrama do Dr. Tancredinho para o pai, o Coronel Americão: as coisas, na Capital, corriam bem, pois o rapaz se declarava muito satisfeito... Decerto a viagem o Dr. Damasceno Soares era para fecharem, por lá, algum acordo, acertarem tudo com o Coronel Americão, mandarem embora o Capitão Eucaristo e a soldadesca dele...
Sim concordava com Seu Polinésio da Estação o Juca Meirinho o Dr. Damasceno, pessoa tão religiosa, não podia estar apoiando, no íntimo, as barbaridades da captura: o Dr. Jojoca, coitado criatura tão alegre, um mão-aberta, brincalhão... O inofensivo do Quincota, esse, o mal dele era somente aquela mania de futricar, meter a colherzinha-torta onde não devia... Que limpassem a cidade do banditismo, que se pusesse um freio aos abusos do Coronel Americão Barbosa... havia mesmo necessidade de um pouco mais de energia por parte do Governo...; mas sem tanta malvadeza e violência! Prenderem o Clodulfo era merecido: culpado de tudo, o alma-negra de Santana do Boqueirão, o espírito-mau que atuava na sombra... Sim. Precisavam de acabar com tanto crime, tanta jagunçada: não passava uma semana sem nova façanha da quadrilha do Clodulfo: a última Santana do Boqueirão inteirinha já sabia dela, a história do José de Arimateia em Campanário...
Passou pela esquina o Xico das Moças murchozinho, as mãos cruzadas nas costas, olhando pro chão, parecia até que falando sozinho. Oito filhas-mulheres, o azarado! E todas solteiras ainda... Decerto nem dormir ele não podia mais, com o fechamento da Lotérica... Viver, agora, de quê, o pobre do Seu Xico? Sustentar de que maneira a mulherada em casa, se a única ocupação que sabia ele desempenhar era vender bilhete e encher talão de bicho?
Chegou à esquina Seu Lamartine da Farmácia, o Brasilino da Tinturaria, o Aracífico da Gráfica. De charrete, passou o Zé da Vó, carregado de menino, vindo da chácara, com certeza. Outro que perdera a minazinha, o Zé da Vó: o ponto mais movimentado do centro da cidade, o invejado Elefante de Ouro, com mais de vinte cambistas... Além do bicho, o víspora, e mais o buzo e o jaburu nos fundos...
Deus havia de ajudar porém, suspirou o Juca Meirinho. O Dr. Damasceno acharia jeito de normalizar, na Capital, a ruim situação, deixar, pelo menos, aberto o jogo... Ali estava ele sim, ele também, Seu Juca Meirinho do Fórum com um rombo danado na feriazinha... Brincando, brincando, eram lá os seus oitenta, os seus cem-mil-réis o que rendia, em comissão, e todo mês, o talãozinho dos advogados e do pessoal aos cartórios justo o que pagava do aluguel de casa.
Os primeiros a chegar passava pouco das sete e meia foram o Capitão Eucaristo Rosa e o Sargento Hermenegildo. De passo descansado atravessaram pelo meio do Largo sem se deterem na esquina ou na confeitaria e entraram logo no Fórum.
A notícia da reunião correra pela cidade, e começava a juntar mais gente na Praça, nas portas das casas de comércio, nas janelas. Próximos do Fórum, na calçada, a porção de cavalarianos do Destacamento de Capturas, armados e municiados fartamente se via pelas cartucheiras estufadas, pendentes dos cinturões.
Demonstração de força era o comentário geral. Maneira d’o Capitão Eucaristo obrigar o Coronel Americão a ceder a tudo, sujeitar-se por completo às imposições, entregar à Captura os jagunços que faltavam. Todos já estavam a par das boas notícias mandadas ao pai pelo Dr. Tancredinho, e do telegrama, também, chamando o Juiz de Direito. Não demoraria a ordem para que a Captura se retirasse de Santana do Boqueirão. E o Capitão Eucaristo aproveitava o pouco tempo que lhe restava: iria embora, iria, mas depois de dobrar a arrogância do Coronel Americão, deixar o chefão de Santana humilhado, desmoralizado por completo...
Cederia o Coronel? Afinaria frente ao aparato da Captura e às ameaças do Capitão? perguntavam, a si mesmos e uns aos outros, os santanhenses reunidos no Largo das Mercês, parados de curiosidade e expectativa.
Não eram ainda as oito horas quando apontaram na esquina do alto da Praça, certamente que vindos da casa do Coronel Américo Barbosa, concentrados ali, primeiramente os chefes do Diretório convocados pelo Capitão Eucaristo Rosa. Quase todos, ausente do grupo apenas Seu Valério Garcia, o Delegado Municipal. Na frente, os principais: o Coronel Americão e o Coronel Calixtrato, este de bengala e chapéu-panamá, emproadão e pedante como sempre. Atrás, os outros três: o Major Hipólito, Seu Josué Malaquias e o Coronel Ludgero Alves.
Desciam o Largo pela calçada da Força-e-Luz, atravessavam-no junto ao ponto dos carros de praça, passaram pelos soldados espalhados nas imediações do Fórum. Entraram no sobrado como se em um daqueles dias de eleição, na hora de encerrá-la, lavrarem as atas e combinarem o foguetório, a passeata... alguém se lembrou. Sim, apenas os chefes do Diretório do Coronel Américo Barbosa podiam, nessas ocasiões, entrar no edifício guardado pelos jagunços de carabina: a oposição que esperasse do lado de fora, se estrebuchando de raiva, ciente já do resultado...
À porta do sobrado, a sentinela; dentro, no saguão dos cartórios e ao pé da escada, outro volante, um cabo, embalado também. Ninguém mais.
Podem subir... o Cabo Zeca Branco disse. O Capitão já ’tá esperando lá em cima.
Subiram os dois lances da escadaria. No topo, à porta do salão de júri, o Sargento Hermenegildo:
Os senhores entrem... Vou avisar o Capitão Comandante... Mas, ’tá faltando um...
Seu Valério Garcia já deve de ’tar chegando, o coronel Americão disse. Mandou me avisar que vinha direto pr’aqui... Ele mora logo em frente, na esquina da igreja...
Os cinco assentaram-se em torno da mesinha onde o Juiz de Direito costumava presidir às audiências e ouvir as testemunhas. O Sargento apressou-se em vir avisar o Capitão da chegada do coronel e companheiros. O Delegado Especial Militar estava no gabinete reservado, do Doutor Juiz de Direito o Sargento Hermenegildo explicara, antes de deixar o salão.
Demorou-se, porém, muito pouco, voltando com a ordem do Capitão Eucaristo:
O Capitão Comandante quer falar primeiro com o Coronel Américo Barbosa... Em particular...
Vazio o corredor, apenas mais outra sentinela um praçazinho miúdo, preto tal qual o Sargento Hermenegildo, essa colocada junto à porta fechada do gabinete do Juiz o Coronel Américo Barbosa observou, enquanto caminhava seguido do Ordenança. O soldadinho entreabriu a porta, esperou que o coronel entrasse, espremido, por ela, e fechou-a novamente. O Sargento voltou ao salão de júri.
Correram alguns minutos. A sentinela foi então quem veio chamar:
É para ir também o Coronel Calixtrato.
Me acompanhe! ríspido, feio, o Sargento Hermenegildo ordenou.
Lá se foi também, chapéu-panamá e bengalão nas mãos, escoltado pelo Ordenança, o Coronel Calixtrato Barbosa. A sentinela abriu-lhe meia porta, repetiu a cerimônia e o Agente Executivo de Santana do Boqueirão entrou na saleta do fundo do corredor.
Nesse meio-tempo, o Coronel Ludgero Alves, incomodado com a demora do Valério Garcia, já havia dado as oito horas o relógio da Matriz, levantara-se e fora até a uma das janelas do sobrado para olhar o Largo. Espiou, primeiro, para o relógio, cinco minutos já de atraso! e avistou, em seguida, o Valério que cruzara o jardim, apressado, pelos lados do coreto
O Coronel Ludugero! chamou, alto, da porta do salão, o Sargento Hermenegildo, depois de receber outro recado da sentinela. Me acompanhe!
Tratados que nem menino de escola!... mal se continha, remoendo o ódio, o velho Coronel Ludugero Alves. Fazendo chamada, o atrevidaço do Capitão, e por um crioulão boçal daqueles...
Mas deixou a janela e acompanhou o Ordenança pelo corredor. Chegados à porta fechada do gabinete do Juiz de Direito, a sentinela levou a mão à maçaneta.
Foi quando o Coronel Ludgero Alves viu então: debaixo da porta, infiltrando-se pela fresta rente ao assoalho, a coisa começava a escorrer sobre as tábuas larga e grossa, e vermelha bicazinha... Sangue! o velho, de instantâneo, tudo percebeu: o Americão, o Calixtrato!... Num arranco inesperado para trás, conseguiu esgueirar-se por entre o sargento e a sentinela, e tropegar rumo à escadaria:
’tão matando a gente! ’tão matando! o Coronel Ludgero disparou a gritar que nem um alucinado.
Mas não conseguiu alcançar nem o fim do primeiro lance da escada, lento de pernas, idoso demais para vencer os degraus estreitos e quase a pique. Alcançado pela linda pontaria do Sargento Hermenegildo, caiu por ali mesmo, picado pela rajada seca dos terríveis tiros curtos, de aço, de pistola-máuser.
Logo ao primeiro grito do Coronel Ludgero Alves, muitas portas, até então fechadas, se escancararam, ali por dentro do casarão do Fórum. Do gabinete reservado, onde haviam sido massacrados os coronéis Americão e Calixtrato, saíram três cavalarianos, mascarados de sangue, machadinha em punho um deles, o Cabo Salvador, o que, trepado na cadeira colocada atrás da porta, fora incumbido de golpear, em primeiro e na cabeça, à medida que entravam os condenados ao abate, conduzidos um por um pelo Sargento Hermenegildo. O Capitão Eucaristo Rosa, esse rompeu, carabina engatilhada, do banheiro pegado ao quarto de dormir do Juiz de Direito, na outra ponta do corredor. Da saleta dos advogados, vizinha ao salão do júri, do cômodo ao lado da escadaria depósito da papelada velha dos cartórios, das sentinas do andar de baixo, do café de Seu Juca Meirinho... de todos os cantos e desvãos saltaram os volantes da Captura, açulados mais ainda pelos tiros da pistola do Ordenança.
Encantoados no salão, restava ao Major Hipólito e ao Josué Malaquias apenas a janela aberta pelo Coronel Ludgero, na hora em que fora ele olhar as horas e a Praça, preocupado com o atraso de Seu Valério. Para ela arremeteram-se os dois.
Das sacadas dos outros sobrados da Praça, das esquinas e calçadas, viram-nos tentar a escapada... a desesperada proeza de quererem galgar o peitoril, montá-lo, atirarem-se janela abaixo. Os pobres: velhos, encarangados de juntas... Muita gente assistiu aos dois como que a lutar um com o outro, se atrapalharem, se espremerem... enquanto, de dentro do sobradão, recomeçavam os tiros, rápidos, repetidos. Sim, venceram o parapeito da janela, galgaram-no sim, o Josué Malaquias e o Major Hipólito: transpuseram-no, precipitaram-se daquela altura... mas alçados e empurrados, depois de fuzilados pelas costas, arrojados fora pelos soldados lá de cima, para virem espatifar-se na calçada de pedras do Largo das Mercês.
Seu Valério Garcia tudo presenciou, parado no meio do Largo, estupidificado, como que estuporado da cabeça aos pés. Somente se mexeu para cair, derrubado por um balaço vindo dos altos do Fórum um coice de burro, de veloz, certeiro e rijo que o atingiu na boca do estômago, quase que no centro exato da cintura.
Ocupar toda a praça fronteira ao Fórum, guarnecer os cantos do jardim, as esquinas do Largo, evacuar, limpar completamente as imediações do Fórum, isso foi obra de instantes para o treinado e ágil Segundo Destacamento do Capitão Eucaristo Rosa.
Quando o oficial desceu o degrau de entrada do sobrado, acompanhado do Sargento Hermenegildo, muitos santanhenses lograram vê-lo, uns através de frestas de janelas, outros por debaixo das mesas ou amoitados atrás do balcão da Confeitaria do Cucute. E ouvi-lo berrar para alguns volantes da Captura que se abeiravam dos corpos estendidos no paralelepípedo e lajes da calçada:
Se afastem! Entrem em forma! Os parentes que tomem conta!
Muitos, muitos anos depois, e Seu Valério Garcia ainda contava, para quem quisesse ouvir, como escapara à chacina de catorze de maio, em Santana do Boqueirão:
Foi Seu Genésio, atacadista de pinga e rapadura, quem me segurou em casa, desde manhã cedo, fecha-não-fecha a compra da safra do Pinhém daquele ano. Se aproveitava, o velhaco, da minha pressa, mo’de a reunião... Me atrasou, acabou levando um vantajão no negócio, mas me salvou a vida, o Seu Genésio...
E também mostrava, para quem quisesse ver, o relógio de algibeira um patacão de ouro, pateque, redondão e grosso com a bala de carabina, de chumbo, encravada bem no centro:
Parece até milagre, mas o soldado chegou a me enfiar o pé por debaixo do pescoço... Eu ’tava de bruço, e ele ia começando a me desvirar, no chão, a ponta de bota... Na horinha em que o Capitão Eucaristo gritou aquela abençoada ordem!
Chapadão do Bugre, capítulo 40, 1965.)