“Um certo Miguilim morava com a mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutum. No meio dos Campos Gerais, mas num covão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos.”
Estas, as primeiras linhas de “Campo Geral”, história que abre a admirável série das sete novelas de Corpo de Baile, o segundo livro de um mineiro de Cordisburgo – o escritor, e também médico e diplomata, João Guimarães Rosa. Logo adiante, o novelista acrescenta:
“É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre.”
Senhor Presidente, senhores acadêmicos,
Faz um ano que, neste mesmo salão da Academia Brasileira de Letras, João Guimarães Rosa vinha ocupar assento entre vós. E, em seu discurso, as palavras iniciais foram igualmente para rememorar o pé de serra natal:
Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanha, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta de Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sobre o demais das estrelas, falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre.”
Bastava que o ficcionista, tão de início, não desse velas à imaginação, não transportasse Miguilim para o Mutum sozinho e remoto – cabeceira chuvosa de buritizal, vereda entre as mil veredas dos gerais são-franciscanos –, bastava que relembrasse, o acadêmico que esta Casa recepcionava em tão saudosa noite, algo mais de sua infância e de sua terra montezinha... e, talvez, nessa evocação se encontrasse resposta, se não para todas, pelo menos para muitas importantes perguntas da curiosidade, hoje universal, em torno da vida e da Arte do grande escritor brasileiro.
A casa, morada da família e armazém ao mesmo tempo, de concorrido balcão a esvaziar o sortido tem-de-tudo do negócio sertanejo... O carro de boi ou o cargueiro de burro a trazer o produto fazendeiro, e a retornar com o sal e o arame chegados pelo vagão da Central do Brasil... A vaqueirama espalhafatosa e novidadeira, acamaradada a beber sua pinga e a gabolar suas peripécias, à espera de que encostasse o trem para o desembarque do chifrudo e brabo gado urucuiano, ou para entupir as gaiolas de boiada enxuta, erada e invernada no sustancioso catingueiro das fazendas do Coronel Tonico Bastos... E havia ainda, ali na Rua de São José – Rua de Cima, mais comumente conhecida –, na mesma esquina do beco em frente da Estação, congênere casa de comércio, de propriedade de Seu Geraldino Rocha, respeitável cidadão, capitalista, de casa e loja sempre abertas para o desempenho do movimentado afazer de negociante, emprestador de dinheiro, e chefe político. E também, tudo na confluência do beco com a Rua de São José: o Argentina Hotel, o hotel de D. Argentina do Seu Olímpio – o Hotel da Nhatina – ponto de almoço e janta, razão de ser da parada obrigatória, duas vezes por dia, dos trens passageiros e cargueiros da Estrada de Ferro.
O menino João... João? Pois quase que Ladislau, que tal era o nome pensado pelo pai, em homenagem a um sete-lagoano de antigas e mui amigas relações. Sim, João – Joãozinho, Joãozito... – que o primogênito de D. Chiquitinha e Seu Florduardo nascera em fins de junho, e mais valera a força do padroeiro junino e joanino, de ainda não apagadas fogueiras, mastros de pindaíba ainda de pé, a efígie de algodãozinho embandeirada e espetada de ordinária laranja azeda, espécie de ex-voto preventivo, na fiúza de que o santo as adoçasse e afarturasse para a outra safra. Os primeiros anos do menino João... A Central do Brasil já esticava trilhos para além de Corinto, inaugurando as estações de Pirapora e Diamantina, e principiava a abrir picada em demanda de Montes Claros. E o avançar da ferrovia era um sem-fim de mundo que começava a desbravar-se, lado e outro dos caminhos novos que subiam a escampada chã mineira, para o norte, nordeste e noroeste, para as caatingas do sul baiano e as empedernidas encostas do planalto de Goiás – toda a desmarcada capitania do coronelato barranqueiro do Rio São Francisco, palco do guinhol jagunço, desabusado e perpétuo.
Da única janela ou de uma das cinco portas da venda do pai Florduardo, sobranceira de dois bons lanços de pedra, dava para o menino assistir, ali embaixo, no pátio da estação, ao encher ou descarregar das gaiolas de boi. O corre-corre do povo, a molecada incendida a embarafustar por entre as pernas dos mais velhos, os sustos do mulherio janeleiro, o paciente porque perigoso espremer da boiada na seringazinha do curral... João Guimarães Rosa averbará para a imortalidade, anos depois, em seu “O Burrinho Pedrês”, a divertida cena do embarque de uma boiada gorda na estaçãozinha da Central:
“Com um último trompejo do berrante, engarrafam no curral da estrada de ferro o rebanho, que rola para dentro e se espalha, como um balaio de laranjas despejado no chão...”
E prossegue, em trecho catado mais acolá:
E começou o embarque, rico de sortes, peripécias e aplausos, que durou mais de hora e meia, até a boiada inteira, lote a lote, desaparecer no bojo dos carros-jaulas dos dois trens especiais. E pois, logo depois, encharcados, enlameados, cansadíssimos e famintos, os vaqueiros saíram para comer, e beber, principalmente, porque força há na cachaça que custa dinheiro da gente. E, com isso, deixaram todos de caber no dia, que rodou e se foi, redondo e repleto, com a tarde a cair rente, uma tarde triste de tempo frio.
Mas Cordisburgo não produzia, de matéria a ser utilizada pelo futuro novelista, apenas esses espetáculos de todo dia, comuns em arraial boiadeiro crescido à roda do curral de embarque de uma estação de trem de ferro. Boa parte de sua ficção, construiu-a Guimarães Rosa com os tipos humanos que ele conheceu em seu burgo de nascimento – seu burgo do coração – e com as histórias ouvidas aos fazendeiros e peões que paravam, para o mata-bicho e a prosa, na Venda do Florduardo e na do vizinho e mandachuva municipal, Geraldino Rocha. O pai – mineiro de Caeté, de instrução razoável, imaginoso, caçador, seu tanto ou quanto acaipirado e bonachão –, esse tinha seu particular repertório, ajuntado pelos lugarejos em que vivera, antes de vir firmar pé ali na Vista Alegre; assunto, pois, e de primeira, foi mercadoria que nunca lhe faltou na venda. O compulsar da comprida correspondência que Florduardo manteve com o filho, mesmo quando andava este pelo exterior a fazer carreira no Itamaraty, há de fornecer, aos interessados em acurar o estudo de Guimarães Rosa, útil e farta informação, não só no tocante à tipologia e temática de sua obra literária, mas no relativo, também, ao copioso e colorido vocabulário roceiro que tanto a aformoseia e autentica. As pessoas que privaram com Florduardo Pinto Rosa confirmam-lhe o rico sortimento de anedotas, casos e observações, e a essa atulhada bruaca de velhos guardados do pai é que o escritor principalmente recorria, quando carecido de um refresco de memória ou de novas inspirações para sua fábula opulenta.
E o povo itinerante, a correição de passageiros descidos do comboio emboaba para o almoço ou o jantar no Hotel da Nhatina, parede-meia com a venda, de calçada e quintal quase em comum? Por ali transitava de tudo: boiadeiros, caixeiros-viajantes, mascates, garimpeiros, graduados e praças da polícia destacada no calcanhar geralista, e, não raro, os pelotões da Captura, os famigerados “volantes” da temida – pois tal e qual facinorosa – tropa militar daqueles tempos. Foi mais tarde, fardado de capitão-médico da Força Pública de Minas Gerais, que Guimarães Rosa, na convivência de velhos milicianos, camaradas do 9.º Batalhão de Barbacena, e na papelada dos porões de outros quartéis, pôde dar-se à paciente investigação dos figurantes da variada comparsaria de Grande Sertão: Veredas. Muitos desses personagens, porém, e muitas das suas façanhas, já eram – gente e coisa – assunto conhecido, aprendido com os pensionistas do Hotel da Nhatina pelo menino perguntador de Cordisburgo.
Duas pessoas da família de João Guimarães Rosa merecem ser de especial lembradas, porque de sobremarcada influência na formação do escritor: o avô materno e também padrinho, Luís Guimarães, e o Tio Cândido. O primeiro, em motivo de pronta percepção que teve dos dons de inteligência do neto e afilhado, levando-o consigo logo-logo pôde mudar-se para Belo Horizonte, buscando-lhe descortino mais aberto que o perfil montanhoso do arraial; o segundo, afetuosamente citado em um dos quatro prefácios explicativos do livro Tutameia:
“Meu mestre foi, em certo sentido, o Tio Cândido.”
E Rosa esclarece:
Era ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios-termos, acocorado. Mas também parente meu em espírito e misteriousanças. De fato, aceitava Deus – como ideal, efetividade e protoprincípio – pio, inabalável. E a Providência: as forças que regem o mundo, fechando-as em seus limites, segundo Anaximandro. [...] Tio Cândido era curtido homem, transurucuiano, de palavras descontadas.
Nesse rol de boa gente caseira há de incluir-se o pároco de Cordisburgo, ao tempo do menino João: Fr. Esteves, frade franciscano, talvez quem primeiro adivinhasse a inclinação do pequeno por tudo quanto era “estrangeiro”, tudo quanto ele já percebia existir além dos morros e dos pastos adjacentes, das pontas de trilho da estrada de ferro e do Sertão dos Gerais. É que João aprendera a ler sozinho, não entrado ainda nos quatro anos – testemunham-no a família e mais conviventes de meninice –, servindo-lhe de cartilha as letras graúdas dos rótulos dos caixões e mais volumes de mercadoria, cabeçalhos de jornal, e impressos em caixa alta de toda sorte. Brincar com elas havia virado ocupaçãozinha favorita: desenhá-las, recortá-las a tesourinha, juntá-las e arrumá-las de vário modo, eis o passatempo em que se absorvia o menino quieto, ensimesmado, misterioso e sonhador – desinteressado do pique e da bola de meia, e de outras distrações mais naturais à infância. Vindo-lhe um dia ao alcance pequenino atlas cartográfico, enamorou-se de imediato pelo livro, passando a copiar os mapas e a soletrar os esquisitos nomes encontrados naquela mina encantada. Debruçava-se demasiadamente, porém, sobre as páginas, quase que as tendo de encostar aos olhos, para distinguir a tipografia de composição miúda. Atinam-lhe, então, com a miopia, e tratam de impor-lhe os óculos. Daí por diante é que se junta fome com vontade de comer, e nada mais fugiria à voraz curiosice da singularíssima criança. O jeito foi metê-la, sem delongar idade, na apertada escola primária de Mestre Candinho, logo ali atrás da venda, de grito da Estação.
Corria o tempo. Frei Esteves vigiava, feitorando o progresso do pequeno, admirado de sua docilidade e, mais que isso, da ligeireza com que se adiantava nas primeiras letras. O frade dava também a sua ajuda: fazia o menino ler os jornais que chegavam a Cordisburgo – na época o que vogava eram as notícias da Primeira Grande Guerra – e punha-o a alfinetar na geografia os pontos onde mais lavrava o fogo do conflito, mandando-o escrever e pronunciar corretamente os ásperos nomes dos generais e cidades em evidência. Sim, Frei Esteves entusiasmava-se. Sabia, o arguto ovelheiro do rebanho vilarengo, que lidava com excepcional inteligência, superiormente poderosa em imaginação e avidez de aprender, e ia carregando a mão, carregando... – sabe lá Deus se não esperançado de tanger o meigo cordeirinho para o redil da Ordem. Quando dão fé, olha o frade a lecionar, ao borrego peticego, francês, e até mesmo um contagotado e paciencioso principiozinho de latim!
Avesso a falar de si mesmo, Guimarães Rosa legou escasso subsídio autobiográfico. Notório seu desinteresse por depoimentos públicos, reportagens de imprensa, e outras formas de divulgação e propaganda pessoal. Sem embargo, assinava cartas, nem um nada esquivo em preencher questionários – hoje tão em moda na pedagogia das Letras – que lhe enviavam estudantes de curso secundário e superior. Referem companheiros seus de Itamaraty a passagem acontecida pouco antes de sua morte, já desde muito alçado à glória literária. Acabava ele de negar-se, a pés juntos, a conceder uma entrevista – era estrangeiro o repórter, e, entre outras alegações, declarava ter-se deslocado ao Brasil com essa exclusiva finalidade quando se apresenta à Divisão de Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores, sem protocolar aviso – muito à simpática maneira dos dias atuais – uma pencazinha de meninotas, alunas de um curso clássico das imediações. As colegiais invadem o gabinete e mostram ao Embaixador trabalho escolar sobre um dos livros dele. A obstinada e até que impiedosa resistência ao assédio do jornalista transmudou-se, então, de instantâneo, na mais aberta e sorridente acolhida. Rosa conversou largo tempo com as mocinhas, deu-lhes corda, divertiu-se a valer, e acabou respondendo a todos os pontos da encomenda do professor, passando até a ditar, bondosamente, os quesitos que entendia conveniente relevar.
A propósito de suas cartas – certo de muita valia para a análise da obra rosiana – andam elas por aí, espalhadas não se sabe se em poucas, se em muitas mãos. Em uma delas, pode-se ajuizar o apreço do escritor por esse tipo de correspondência, e encontrar um autodepoimento do temporão pendor romanesco, revelado ainda ao tempo de criança aldeã. Diz Guimarães Rosa a uma aluna de Belo Horizonte:
Assim, tenho de responder depressa, depressa, para não deixar sem matéria Você e suas Coleguinhas. [...] Não repare, pois, se os quesitos vão preenchidos de modo curto e fosco. Mas faço-o com vivo carinho e sincera alegria. Assim: 1) – Desde menino, muito pequeno, eu brincava de imaginar intermináveis estórias, verdadeiros romances; quando comecei a estudar Geografia – matéria de que sempre gostei – colocava as personagens e cenas nas mais variadas cidades e países: um faroleiro, na Grécia, que namorava uma moça no Japão, fugiam para a Noruega, depois iam passear no México... coisas desse jeito, quase surrealistas.
A resposta a outro item descobre as feridas que o formão da infância lhe insculpira na alma:
É difícil dizer qual o livro (da gente) preferido. A gente sempre gosta mais de um livro futuro, que se pensa ainda escrever. De qualquer modo, entretanto, posso dizer sinceramente que, de tudo o que escrevi, gosto mais é da estória de Miguilim (o título é “Campo Geral”), do livro Corpo de Baile. Por quê? Porque ela é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas o porquê mesmo, a gente não sabe, são mistérios do mundo afetivo.
Quando o artista chega a emocionar-se tão entranhada e incontidamente assim, é porque logrou a perfeita projeção de si mesmo. Acertado será, pois, admitir seja a “estória de Miguilim”, isto é, a novela “Campo Geral”, o marco mestre das muitas outras referências que a extensão da obra de Guimarães Rosa permite sugerir.
Os dois volumes da primeira edição de Corpo de Baile, harmonioso encadeamento de sete novelas, cujo primeiro elo é a já muito referida “Campo Geral”, vieram à estampa em janeiro de 1956. Fixado aí o ponto de partida, a trena do tempo medirá, então, em contagem regressiva, quarenta anos redondos, da publicação do livro até à remota época em que o menino João, com oito anos, se despedia, em Cordisburgo, da escola primária de Mestre Candinho e das aulas particulares do atilado Frei Esteves.
Agora, com o zero da fita cronológica do mesmo marco mestre inicial, e adotado igual critério retrocessivo de medida, afinquem-se mais umas poucas estacas intermediárias nas referências seguintes:
1952 – quatro anos, portanto, antes do lançamento de Corpo de Baile: viagem de Guimarães Rosa, a cavalo, na culatra de uma boiada sertaneja de trezentas e poucas reses, do arraial de Andrequicé a Araçaí, tudo nos gerais são-franciscanos; estirão de cinquenta léguas, e dez esticadas marchas de sol a sol;
1946 – dez anos de distância, à ré do tempo: publicação, pela Editora Universal, de Sagarana;
1937 – dezenove anos: Prêmio Humberto de Campos, instituído pela Editora José Olímpio, ao qual Guimarães Rosa concorreu, obtendo o segundo lugar, com as histórias que, totalmente revistas e depuradas, dariam depois o livro Sagarana;
1936 – vinte anos, sempre na direção do passado: Prêmio de Poesia, da Academia Brasileira de Letras, outorgado a Guimarães Rosa pelo seu livro Magma;
1929/1930 – 26 anos, lido em última medição retrospectiva: aparecimento, na revista O Cruzeiro, de três contos assinados por João Guimarães Rosa – sua estreia, portanto, na Literatura Brasileira de ficção.
Somadas a estas cinco as estacas inicial e final da contagem – saída de João Guimarães Rosa de Cordisburgo e publicação da “estória de Miguilim” – serão sete os pontos de informação que balizam, num dilatado trecho de vida de quarenta anos, os acontecimentos mais significativos do processo de aprendizagem, acumulamento de cultura e aprimoramento do escritor, desde a hora em que o alfabetizaram e lhe deixaram à mão papel e lápis, até ao momento em que pôde – coração aos solavancos e olhos mareados – contemplar plenamente realizada a sua vocação artística.
Senhor Presidente, senhores acadêmicos,
Graças ao vosso sufrágio, aqui me encontro para tomar posse da Cadeira que Guimarães Rosa ocupou durante horas tão diminutas. Regimento e tradição desta Academia pedem, da parte de quem sucede, oração de homenagem e louvor ao sucedido. No meu caso, o panegírico não é só obediente, protocolar: é superior mandamento de afeição e consciência.
João Guimarães Rosa não foi apenas um querido amigo: foi-me o mestre maior, dia a dia mais e mais admirado e respeitado. Bastava o afeto, pois, para que redobrasse de esforço no levantar-lhe as pisadas, no desvelar-lhe o ainda mal conhecido de sua predestinação, pode-se dizer monástica, de estudioso sem fadiga, trazer demão, em suma, tanto quanto possível vera e proveitosa, aos especialistas que já lhe estão a investigar e especular vida e obra mais acurada e competentemente. Outra razão, sem embargo, é o estímulo, inseparável e instante, da minha convicção da grandeza de Guimarães Rosa, convencimento que apenas se modifica para crescer: toda vez em que se assina novo e sério e inteligente laudo crítico sobre a obra de Guimarães Rosa – e não somente aqui, mas, em consagrador crescendo, também fora daqui – é para lhe categorizar o nome e emoldurá-lo na galeria dos grandes vultos das Letras universais.
Rastrear-lhe as veredas... Voltar a Cordisburgo, seria agora só para visitar de novo, e com mais prazo, a Gruta de Maquiné, onde os tesouros de muitos Ali-Babás mal e mal ocupariam uma de suas prodigiosas naves sem conta, em cujas trevosas entranhas – é o que por lá se diz – morou um sábio, o Dr. Lund, regressado a troglodita, enlurado na profundura de um oco subtérreo, a exumar seus fósseis e a quebrar cabeça com os rabiscos bugres das paredes; chegar, mais uma vez, à Fazenda Saco-dos-Cochos, do José Saturnino, gozar-lhe o convívio e o farturento pomar; rever a boa gente cidadã, que ainda bem se recorda do sossegadinho menino de óculos, o filhote prodígio de D. Chiquitinha e Seu Florduardo; reabrir a casa da venda, onde Rosa nasceu e morou nos seus primeiros oito anos – agora abandonada e a desabar, infestada da ardida inhaca de fecundíssima tribo de morcegos –, varar pelos alçapões do assoalho podre e ir reconferir, no quintal, as jabuticabeiras e os abacateiros, se ainda e milagrosamente de pé; ao fim e ao cabo, reviver, em tudo e em todos, o cenário serrano e as figuras da infância e das histórias de Guimarães Rosa. É principalmente em “Recado do Morro”, a quarta novela de Corpo de Baile, que ressurge, fiel e quase inteira de paisagem e gente, a terrinha sertaneja do menino João. Eis como a descreve, em parte apenas e em curto golpe de pincel, a mão amorosa e correta do grande artista:
Serras e serras, por prolongação. Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo calcário. E elas se roem, não raro, em formas – que nem pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés, guaritas, grades, campanários, parados animais, destroços de estátuas ou vultos de criaturas. Por lá, qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-íris, cor por cor, vivente longo ao solsim, feito um pavão. Umas redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando com vapor e empurram enxurradas mão de rios, se engolfam descendo por funis de furnas, antros e grotas, com tardo gorgolo musical.
E Guimarães Rosa, para repovoar este cenário, vai buscar, um por um, os moradores da aldeola: Seu Alquiste, Frei Sinfrão, Seu Jujuca do Açude, o Ivo da Tia Merência...
Depois de Cordisburgo, Belo Horizonte. Aí, para tirar prova da passagem de João Guimarães Rosa pelo Grupo Escolar Afonso Pena e suas idas à Biblioteca Pública. Em seguida, o internato em São João del-Rei, para onde acorria – como se fora sucursal leiga do Caraça – a criançada mineira mais bem-dotada de cabeça ou mais carecida de aperto. Dirigia o colégio de São João del-Rei, dando-lhe o nome que chegou a discorrer por todo o Estado, o Prof. Lara Resende. Foi lá que Rosa tirou os primeiros preparatórios e – ao que parece – continuou bravamente o latim de Frei Esteves.
Voltou, todavia, por motivo de saúde, ano e pouco depois, para Belo Horizonte, ingressando no Colégio Arnaldo, dos padres alemães da Congregação do Verbo Divino. Encontra-se nos arquivos da secretaria do estabelecimento, no ano de 1923, o nome do interno João Guimarães Rosa, apontado no registro de matrícula da terceira série ginasial. Vive ainda – e de sadia, conservada e útil memória, em despeito dos seus entre setenta e oitenta e muitos anos – o Pe. Wilhelm Gross, que integrava, já àquele tempo, o corpo docente do colégio. Lembra-se ele muito bem do rapaz espigadote, de óculos de grossas lentes, silencioso e macio de passo, em extremo arredio – o seu melhor aluno de inglês e alemão. Em meio de outros depoimentos relativos ao trânsito de Rosa pelo Colégio Arnaldo, há o narrado por antigo colega de classe, o Dr. Lívio Renault, médico ilustre de Belo Horizonte. Era ele, Lívio, o aluno que obtinha o melhor grau nos trabalhos de redação dados pelo mestre de português. Certo dia, Rosa aborda-o modestamente, curioso de saber aonde ia o colega garimpar o vocabulário e floreios outros que lhe faziam as composições tão elogiadas pelo professor, merecedores de nota sempre e sempre distinta. E Lívio, não obstante o risco da competição que iria correr de então por diante, não sonega a receita: Camilo... – cuja obra completa, sem falta de um único volume, alumiava as prateleiras da biblioteca do pai. Os padres do Colégio, duros de disciplina, mais rijos ainda em matéria de religião, só permitiam no internato – que aí seria menos difícil a vigilância – livro por eles previamente examinado e aprovado. Camilo Castelo Branco... – pois sim! O destabocado é que não vazaria pelos apertados furos da peneira! Mas vazou – de contrabando, mas passou... – por debaixo do paletó do camarada externo. Foi então que Guimarães Rosa pôde ler – e note-se: aos quinze anos de idade – toda a vasta obra camiliana. Sim, toda, todinha – garante o Dr. Lívio – baldeada tomo a tomo das estantes do erudito e saudoso educador mineiro Prof. Leon Renault. O que e o quanto de influência terá entalhado e marcado, na esculturação da personalidade artística de Guimarães Rosa, a acerada garra do velho e dominador leão de São Miguel de Ceide, cabe aos técnicos da investigação literária esmiuçar e discernir.
É no Ginásio Mineiro, oficial, famoso pela seriedade das bancas examinadoras, que Rosa vai concluir preparatórios. Deixa marca, ali também, ao enfrentar o rigor dos rigores, o Prof. Valadares, catedrático de geografia. Raríssimos, na longa tradição do Ginásio Mineiro, os alunos que alcançaram a nota máxima com o austero examinador. Ao perceber que alguém estava a pico de merecê-la, o lente prolongava o exame e alteava a voz, para chamar a atenção da sala. Dava o dez, dava, mas após esvaziar a algibeira de todo um escolhido estoque de perguntas, bem encaixadas dentro do ponto sorteado – para que, assim, lhe atestassem a correção do proceder e o merecido do grau, e, também, palmeassem o saber do examinado. Foi um duelo, demorado e sensacional de lances, aquele exame. Mas foi um dez, o dez fora do comum do Prof. Valadares, a nota que Rosa obteve em Geografia.
Aos dezessete anos incompletos, João Guimarães Rosa prestou vestibular e matriculou-se na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Duas de suas aptidões, já agora mais notavelmente aperfeiçoadas e percebidas, destacam-no, desde logo: a memória em verdade milagrosa, e a facilidade com que aprende idiomas estrangeiros, aventurando-se até aos ainda praticamente incogitados. Relativamente à primeira, afora os muitos testemunhos das espantosas proezas praticadas no picadeiro da anatomia de Testut, os contemporâneos de curso médico contam como ele, devotadíssimo às cadeiras básicas, mormente Botânica e Zoologia – às quais se dava esmerada e apaixonadamente – livrava-se, entretanto, de outros que lhe não acendiam o interesse; limitava-se a assistir às provas orais dos colegas, afastando-se da sala ao chegar sua vez, para não ter de responder à chamada em ordem alfabética, mas tornando logo após, pulado o seu nome, para continuar a ouvir as perguntas dos examinadores e as respostas dos examinandos; e era o último em apresentar-se à banca, já senhor do resumo da matéria, suficiente para boa nota de aprovação. Do segundo pendor – a queda para o estudo de línguas – diz, mais objetivamente que o entusiasmo de seus admiradores, a tradução por ele feita de um trabalho do Prof. Quelle, da Universidade de Bonn, sob o título A Organização Científica em Minas Gerais, reproduzida no órgão oficial do Estado, o Minas Gerais, em 5 de outubro de 1928, quando o tradutor contava apenas vinte anos de idade. E já ia bem avançado no russo, estudado com Miguel Theodorovich Chiquiloff, intelectual muito conhecido nos meios mineiros, que assina valioso depoimento vindo a lume em edição do Suplemento Literário do Minas Gerais.
É ainda o Prof. Chiquiloff quem fala dos habilidosos métodos mnemônicos inventados pelo seu aluno de russo. Extraordinariamente bem servido de retentiva, nem por isso deixava Rosa de obstinar-se em tê-la cada vez mais disciplinada e ágil, afirmando frequentemente ao professor ainda acabar por descobrir o segredo e as misteriosas regras do processo mental de memorização. Tantas e tão maravilhosas demonstrações deu Guimarães Rosa de sua quase sobre-humana memória – e mais convincentemente depõem a extensão e profundidades dos seus conhecimentos idiomáticos – que não é de todo exagerado supor-se haja, afinal, atingido a ambiciosa meta, ou, pelo menos, dela se abeirado, e bastante.
Ainda estudante de Medicina é que veio Rosa a exercer seu primeiro emprego público, o de funcionário do Serviço de Estatística de Minas Gerais, onde passa a trabalhar com Teixeira de Freitas. Àquela altura, era moda o esperanto; e Rosa matricula-se em curso especializado aberto de recém em Belo Horizonte. Diplomou-se em 27 dias. A uma das moças da repartição que, simploriamente, lhe observa nunca imaginar fosse o esperanto coisinha assim maneira, Rosa deu o risonho troco: – “É muito fácil sim, meu bem. Desde que se saiba um pouco de espanhol, de francês, inglês, italiano, do alemão, do russo...”
Demais do estudo de línguas e Estatística, organização de herbários e coleções de insetos – e até de cobras –, Rosa fascina-se pelo xadrez, aprende-o a fundo, e acaba por sobressair-se também aí, e brilhantemente. “Tempo e Destino”, com o título em grego, Chronos Kai Anagke –, tradução e pronúncia do nosso eminente Paulo Rónai –, o segundo conto publicado em O Cruzeiro, ainda quando o autor cursava o quinto ano da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, é fantástica história de um jogador de xadrez, ucraniano. E, em “Minha Gente”, um dos contos em primeira pessoa de Sagarana, é ao xadrez que Guimarães Rosa pede ajuda para compor as páginas da viagem que faz, a cavalo, da estaçãozinha de trem de ferro do povoado à fazenda do Tio Emílio. Arranja, de companheiro, por coincidência de trajeto, um inspetor escolar itinerante – o Santana – “cujo fraco e também o seu forte é o ‘nobre jogo’ do xadrez...” Fazem o percurso, de carteirinha de bolso, onde as peças se atarraxam, passada de um a outro para os lances da partida.
Multifário de inteligência, preciso e competente – assim definem Guimarães Rosa, à casa dos vinte anos, professores e colegas de curso, chefes e companheiros do Serviço de Estatística, e mais pessoas que o conheceram. Mas reservadíssimo, deveras impenetrável, mesmo com os mais chegados. Rosa morou quase sempre em pensão de estudantes, desde que deixou o internato do Colégio Arnaldo até pouco antes de formar-se em Medicina; mantiveram essas pensões, a princípio o avô Luís Guimarães, em seguida os pais, D. Chiquitinha e Florduardo – mudados de Cordisburgo à época em que o filho se matriculava na Faculdade –, e, por último, uma tia-avó, ainda viva, D. Petrina Guimarães. Pois mesmo aos companheiros de pensão, alguns até de quarto, não confidenciava Rosa seus pensamentos e intenções, muito menos seus primeiros titubeios literários.
Por isso que um fato vem surpreendê-los a todos. Foi quando, na muito circulada revista O Cruzeiro, precedido da declaração “selecionado em concurso”, com ilustrações em três inteiras páginas de texto, surge estampado “O Mistério de Highmore Hall”, conto de autoria de um João Guimarães Rosa. Por certo pseudônimo coincidente, talvez algum homônimo integral, da primeira letra à última... Seria o preparado e modesto rapaz, o estudioso quintanista de Medicina... o poliglota e problemista de xadrez, o capaz funcionário tão gabado pelo grande Teixeira de Freitas, o precoce ledor e tradutor de sábios alemães?!... Logo, logo, porém, desapareceriam as dúvidas, que o autor se confessa. Era mesmo o talentoso e discreto estudante de Cordisburgo: era o Guimarães Rosa, sim.
“O Mistério de Highmore Hall” foi publicado a 7 de dezembro de 1929. Seis meses depois, traz a revista outro conto de Rosa, também ilustrado, desta vez com o anúncio: “A mais extraordinária história do xadrez já explicada a adeptos e não adeptos do tabuleiro.” A data é 21 de junho de 1930, e o título, já se disse, vem em grego: Chronos Kai Anagke. Três semanas após o segundo, na mesma revista, um terceiro: “Caçadores de Camurças”. Foi este o derradeiro fogo de artifício a espocar e luzir naquela curta festa de estreia. Com exceção dos discursos de orador de turma dos médicos de 1930 e de agradecimento, na Academia Brasileira, pelo prêmio de Poesia concedido ao volume de poemas Magma – livro que, não se sabe bem a razão, o autor jamais desejou ver nas livrarias –, só muito mais tarde é que Guimarães Rosa iria ler o seu nome, em letra de forma, autenticando trabalho literário de lavra própria: foi dezesseis anos ao diante, em 1946, ao vir à luz Sagarana.
Paga a pena ler esses três contos de Guimarães Rosa saídos ao seu tempo de estudante de Medicina. Aqui, mal e mal pode caber pequena amostra da sua prosa dos vinte e um anos. Ouçamo-lo em “O Mistério de Highmore Hall”:
O vento batia de rijo o castelo, guinchava, zunia, assoviava, musicando tons macabros, como se as ruínas fossem órgão enorme a ressoar em meio o fragor da tempestade. O relampejar repetido de mil coriscos tigrava a escuridão de rajas e zigue-zagues cor de fogo. E a chuva caía em bátegas violentas.
Em “Tempo e Destino”:
Em torno da mesa, único móvel ali existente, erguiam-se candelabros de bronze, sustentando tochas. E essa iluminação funérea, derramando-se pelo vasto aposento, caricaturava sombras esguias, como aventesmas. Na circunferência muito negra da parede decifravam-se pentáculos e símbolos cabalísticos e abracadabrantes. Odores intensos de styrax, incenso e mirra misturavam-se no silêncio subterrâneo da sala.
E em “Caçadores de Camurças”:
Toda a noite a tempestade chicoteou a montanha. A neve derramou-se, não em flocos leves, mas em turbilhão, aos bulcões, rebocando de gelo as trilhas e desfiladeiros, vestindo de branco o cone dos pinheiros, enquanto o vendaval esfuziava em rajadas frias, regougando nas cúspides do fragal.
Ficaram nos três os contos de O Cruzeiro. Na citada carta de outubro de 1966, escrita à moça estudante de Minas Gerais, Guimarães Rosa não nega paternizá-los, mas faz questão de os definir:
“Mas, escrever, mesmo, só comecei foi em 1929, com alguns contos, que, naturalmente, não valem nada.”
Novidade não seja que um escritor, ao alcançar madureza e fama, repudie, assim categórico, o resultado do seu verde esforço inaugural. O pouco habitual e muito estranho, isso sim, é que o tenha feito na hora mesma de recolher os louros, vencedor de anunciado concurso público, ao qual hão de ter corrido não poucos postulantes à glória do nome impresso e, também, à nota de cem mil-réis arvorada ao tope do pau-de-sebo. E ainda: quando crescido de conceito junto aos professores e colegas de Faculdade, que lhe tributam a homenagem da escolha para orador da festa de formatura.
O mais extraordinário, porém, foi ter Guimarães Rosa encostado a ferramenta, mesmo sabendo não se lhe ter exaurido a grupiara. Parou com as histórias inventadas à força de geografia, gente e fala exótica, porque convencido de que minerava em errado veio, certamente já bem desconfiado de que precisava libertar-se dos cânones muito rígidos, do termo bateado nos dicionários, da frase feita e do raso lugar-comum. Mas ainda ignorante ou indeciso do jeito de proceder: anos depois é que lhe empenaria a asa e ganharia alforriar-se desse cativeiro.
Vem a talho, como exemplo desse desnorteamento que tanto demorou seu retorno às luzes do palco, o discurso lido por Guimarães Rosa, orador de sua turma na solenidade de colação de grau, paraninfada pelo Prof. Samuel Libânio, e realizada na antiga Câmara dos Deputados, em Belo Horizonte, a 21 de dezembro de 1930. Transcreve-o, na íntegra, o Minas Gerais de 22/23 do mesmo mês e ano. Basta a peroração para que se avalie a peça inteira:
“E quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as despedidas dos meus colegas, eu lamento não poderem falar-vos todos eles a um tempo, para que sentísseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.”
Senhor Presidente, senhores acadêmicos,
Careço de tudo – da queda à aptidão – para aventurar-me à análise, ainda que por alto, da psique e da arte de um mestre do porte de João Guimarães Rosa. Posso, quando muito, manifestar a minha incompreensão e ignorância – e, por isso mesmo, a minha inexplicação – ao topar tão singularíssimo caso de transmudamento de inspiração e expressão artística, arrisco-me a dizer de tão espantoso exemplo de metempsicose. Com todas as veras, não sei de nada semelhante ou sequer parecido. Os primeiros contos do estudante de Medicina não estão mal feitos – pelo contrário, são até que muito bem trabalhados, perfeitamente ao jeito do rigorismo gramatical e do estilo abundante e vistoso, ainda em muita moda na época; não resultaram de pueril fantasia, precipitado desejo de aparecer e brilhar, tampouco aceitos a poder de pistolão ou de facilidades irmãs, de igual e feia ordem. Produziu-os, às vésperas de doutorar-se, um moço de 21 anos, idade em que não é tão de admirar assim o revelar-se alguém artista, e artista de apurado timbre. Um jovem, mas jovem intelectualmente adulto, respeitado pela assiduidade ao livro, escorado de nada frágil calço humanístico, e abastecido de boa provisão científica – roceiro já acostumado de braço, mesmo para lavourar em culturas estrangeiras. Sua literatura – e, agora, a indagação: como deu conta de refazê-la assim, primeiro começando por desaprender o aprendido em anos de aturada porfia, para, depois, reiniciar e reconstruir tudo, e de modo totalmente irreconhecível, como se fora labor de outra alma e de outras mãos?
Não monta a resposta: o incontrastável é que Guimarães Rosa saiu um e voltou outro à ribalta. E o que de princípio fez, durante o entreato, foi trocar de ambiente e de vida, na hora favorável em que se habilitava em Medicina. Meteu na mala o Chernoviz e outros competentes guias da esculápia pau-de-toda-obra, encaixotou os clássicos, dicionários e gramáticas, a tralhazinha de recruta na profissão em que acabara de licenciar-se, o diploma e também o tabuleiro e os trebelhos do xadrez. Largou o emprego no Departamento de Estatística, largou o professor de russo, e partiu de Belo Horizonte para a cidade do interior onde – alguém lho disse – não havia médico. Nem trem de ferro, tampouco estrada de rodagem que prestasse. Mas limpo céu, ares sãos, alegre gente. Itaguara, esse o nome do lugar.
Hoje, vai-se a Itaguara pelo macio e veloz asfalto da Fernão Dias, que liga a capital mineira a São Paulo. Quem sai de Belo Horizonte, acerca de duas horas de viagem, pode enxergar bem lá embaixo – isso à mão esquerda e se forçar a vista – ponta-de-rua ou outra da cidadezinha branca, afundada e meio sumida na paisagem de redondos morros. Há coisa de quarenta anos, quando Rosa ali chegou, o caminho era de terra, muito mais comprido, custoso e lerdo, e o lugarejo não passava de distrito – apesar de bem-dotado, com grupo escolar, bonitinha igreja, padre local, e afamada festa na Semana Santa.
Essa distante fase da vida de João Guimarães Rosa durou até ao meado de 1932, quando do levante constitucionalista de São Paulo. Atendendo à convocação de voluntários para o Corpo de Saúde da Polícia de Minas Gerais, Rosa apresenta-se, serve em várias frentes, e, terminada a revolução, efetiva-se na milícia. Voltou a Itaguara apenas para despachar a mudança: fora destacado, já com divisas de capitão-médico, para integrar a oficialidade do recém-criado 9.º Batalhão da Força Pública de Minas Gerais, a instalar-se em Barbacena.
Não há de ser fácil condensar a vida de médico de roça levada por Guimarães Rosa em Itaguara. Não lhe pegou, aí, a tísica intelectual de um lugar pobre de fatos susceptíveis de lhe virem quebrar, vez por outra que fosse, a pachorrenta atoíce do dia a dia. As novenas e leilões da Semana Santa eram apenas de ano em ano... E a Política, a essa a Revolução de 1930 havia posto fim; ah, se pelo menos a beleza de uma eleiçãozinha de arraial, bem tocada a futrica, cacetada e foguete!... Mas, no caso de Guimarães Rosa, foi esse período o mais proveitoso, sem dúvida, para a sua vocação: o que mais subsidiou, em matéria e forma, a reconceituação, reestruturação e refazimento de sua nova arte literária – essa, sim, original e independente, humosa e robusta, capaz de se definir e afirmar em transcendência e perpetuidade. Sua saleta de atendimento clínico virara consultório e confessionário ao mesmo tempo, que, a par do lamurioso romaneio das mazelas, sempre historiazinha ou outra haveria de render o cliente. As viagens – de infalível a cavalo – às fazendas e corrutelas de sua paróquia médica, aproveitava-as Rosa como rendoso campo de observação: gente, bichos, plantas – um novo mundo ainda muito mal explorado pela vasqueira e medrosa Literatura daquela época, desestudado em sua essência e pormenor. A própria povoação, que opulência de humanidade, quanta malícia e graça no diz que diz do comadrio, quanta novidade e variedade de temas haveria o psicólogo de então recolher, e o escritor de amanhã universalizar com sua caprichada pena?! Guimarães Rosa anotava tudo, não só de memória, mas, e principalmente, nas suas famosas cadernetas. Antigos vizinhos e frequentadores de sua casa – muitos ainda moradores em Itaguara – contam como ficava ele, noite fora, a lidar com seus misteriosos apontamentos, ou a estudar – o que de mais estranho se lhes afigurava – em seus grossos e demorados dicionários. As anotações resultaram em abastado glossário sertanejo, verdadeiro léxico enciclopédico de todo um novo vocabulário e gramática, de uma nova História Natural e Antropologia, e tudo rigorosamente autêntico, fiel ao visto e ouvido. Não tivesse Guimarães Rosa acumulado esse minucioso e exato pé-de-meia, ser-lhe-ia impossível levar a cabo a estendida e densa obra de arte que foi o seu importantíssimo legado.
Um pesquisador de gosto, sem preguiça nem pressa, muito irá descobrir, na cidade mineira de Itaguara, de curiosa informação a respeito do que Guimarães Rosa fez e também recolheu em experiência e em aquisição de conhecimentos de vária ordem.
Atualmente, Itaguara é bem outra. Emancipou-se, passando de distrito a município, calçou-se de liso e limpo paralelepípedo, construiu muita casa nova, erigiu vistosa igreja em centro de jardim – jardim zelado a mão de moça, as moças que tanto ajudam o vigário no pastoreio da criançada local –, fundou mais escolas e seu ginásio noturno, o ai-jesus da cidade. Itaguara de hoje é uma simpatia de terrazinha, e o povo, afetuoso e prestadio, continua sendo do melhor; e duro de envelhecer, e agudo de memória, que são numerosas as pessoas que se recordam, perfeitamente, do seu doutorzinho amável, dia a dia pior da vista, mas risonho sempre, pronto sempre para acudir aos chamados de socorro médico, andasse bom ou andasse mau o tempo, fosse lá a que horas fosse.
Porém manhoso, perguntador, especula por demais da conta – essa a voz geral dos informantes –, infalivelmente armado da terrível cadernetinha, a querer saber de tudo, para de tudo aprender e registrar.
Dessa mania dos apontamentos e do estudo já se falou e refalou; de como saía à cata de cogumelos e caramujos para ele mesmo temperar e comer, seria aqui ociosa, se não inadequada, a referência – o mesmo ocorrendo com respeito à criação de abelhas e de toda espécie de aves de quintal; da prosa na botica em frente e das primeiras lições de xadrez ao padre e ao farmacêutico – isso nos curtos momentos de folga que lhe concediam o consultório, as viagens a cavalo e os livros – há de ser, por óbvia, desnecessária a menção. O que de mais substancial e mais estimável convém investigar será a copiosa contribuição que Itaguara ofereceu ao escritor – em assunto, linguagem, em figuras humanas e outras criações da natureza, em rústico cenário e tudo o mais – em resumo e afinal, o complexo de recursos com os quais pôde Guimarães Rosa edificar, à sua maneira, um mundo todo seu, o universo de sua ficção personalíssima.
“Traços Biográficos de Lalino Salãthiel ou A Volta do Marido Pródigo”, por ordem o segundo conto de Sagarana, assim Guimarães Rosa titula uma história, cuja principal personagem ele conheceu pessoalmente – o mulatinho descaradíssimo, ágil de andar, sestroso e falante, peão de picareta em trecho de construção da Rodovia Belo Horizonte – São Paulo, nas imediações de Itaguara, na ocasião em que o doutorzinho de óculos e comedor de caramujo lá clinicava. Ambiência, tema, e demais figurantes além do vivo Lalino Salãthiel – tudo, também, material ali recolhido. Seu Marra – o bondoso Seu Marrinha da história –, Seu Marra, feitor real, de carne e osso, do grupo de picareteiros a que pertence o maneiroso Lalino – nem o nome dele, a condição de fiscal na construção da rodageira, tampouco a paixão por teatrinhos e pantomimas Guimarães Rosa deixou de utilizar. Seu Marrinha, que mora hoje em dia em Belo Horizonte – o nome completo é José Benjamim Marra –, relata como o doutor ia, em horas livres, assistir ao vaivém das carrocinhas de burro do aterro e puxar conversa com os braçais da estrada. A tentação é muito forte para que se possa a ela resistir; ouçamos Guimarães Rosa:
“Nove horas e trinta. Um cincerro tilinta. É um burrinho, que vem sozinho, puxando o carroção. Patas em marcha matemática, andar consciencioso e macio, ele chega, de sobremão.”
“Sarapalha”, o terceiro e comovente conto de Sagarana, origina-se de uma visita médica de Guimarães Rosa a um comerciozinho das margens do Pará, rio que nasce nas imediações de Itaguara. Assim é aquarelado, com tristonhas tintas, o moribundo lugarejo:
Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu. Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.
Popularíssimo tipo de Itaguara, engraçado poeta de rua, brigão e permanente glosador da vidinha caiçara do povoado – “Aretino de arraial”, como Guimarães Rosa o apelida e imortaliza – reaparece com o literal nome e a veia bocagiana, no belo conto de feitiçaria “São Marcos”. Rosa copia-lhe uma das quadras:
Essa história de fonética
eu nunca pude entendê!
É tão feio se assiná
Manuel Baptista sem P!
Ainda em Sagarana, no conto “Duelo”, trágico equívoco –, um desinfeliz, morto a tocaia por causa da grande semelhança com o irmão, esse, sim, a jurada vítima –, fato ocorrido e ainda não esquecido em Itaguara, é o que inspira o escritor na intriga dos motivos, na reinvenção da espera homicida e na bem construída busca do vingador atrás do assassino em fuga, obsessão que termina em imprevisto e emocionante desfecho.
Basta de referências e transcrições: seriam intermináveis, mesmo que se usasse, por fonte única, o livro de contos Sagarana. Um fato, marcadamente de tragicomédia, merece, todavia, ser aqui lembrado. Foi o súbito aparecimento, em Itaguara, de um pobre louco, esfarrapado, de cabeleira e barba desgrenhadamente crescidas, olhos alucinados, a carregar e a sacudir, aos brados, pesada cruz feita de dois galhos de pau atados a cipó. O fantasma – provavelmente um padre ou ex-seminarista endoidecido, porque temperava de algum latim a imprecação inconsequente – pregava o fim do mundo, invectivando as mulheres e mais gente aterrorada, e chegou a invadir a igreja, investindo com a perigosa cruz e pondo a correr o cura e quem mais se encontrava lá por dentro. Pois bem: o Dr. Rosa não se despregou um instante do profeta maltrapilho – e de caderneta e lápis! – a anotar-lhe a furiosa fala todo o tempo em que ficou a espaventar o povo do arraial, acompanhando-o até bem fora dele, quando a assombração se dispôs a ir anunciar o apocalipse mais ao diante. É em “Recado do Morro”, a quarta novela de Corpo de Baile, que reaparece o orate, rebatizado várias vezes pelo escritor: Nominedômine, ou Nomemdome, ou Santos-Óleos, ou ainda Jubileu... Escreve Guimarães Rosa, em uma das cenas em que entra o desmiolado peregrino:
Estafermo mesmo assim, arava o passo, pernas tantas, até cada fim de rua, e retornava, estroso, ardente, cachorro caçado, sete fôlegos. Abria o peito: – É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo... Arreúnam, todos, e me escutem, que o fim do mundo está pendurando! Siso, que minha prédica é curta, tenho que muito ir e converter...
Alguém que alcança abordar o desatinado e merecer dele atenção e resposta – quem sabe se não o próprio Dr. Rosa, quando o seguia, fascinado, pelas ruas de Itaguara? – escuta o seguinte:
– Sua pergunta é do rogo da fé, e não da carne, não, moço. O senhor é homem gentil, tem galardão! Tem galardão... Mas eu sou o zerinho zero, mal-e-mal uma humilde criatura do Senhor: eu nem sou a Voz... Vinde, povo: sem-vergonhas, pecadores, homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim por vosso serviço, Deus enviou por mim, ele requer o vosso remimento. Dele tenho o praz-me. Olha o aviso: e vém o fim do mundo, em fogo, fogo, fogo! O mundo já começou a se acabar, e vós semprando na safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma! Olha o enquanto-é-tempo... Vamos, vamos: pra igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papa! Aqui-del-presidente! Desabalou de vez, olho na rua a longe, quase correndo, feito pulando redo, tinha de alargar também as pernas – aqueles rolos de pano nos pés dele foiçavam porção de poeira.
Corpo de baile, Grande sertão: veredas, Primeiras estórias e Tutameia – os livros de Guimarães Rosa que se seguiram a Sagarana – estão povoados de gente assim, a mor parte escolhida no rol de criaturas conhecidas, pessoalmente ou por informação, durante a temporada que passou em seu arruadozinho de médico noviço. Os curiosos de saber de que pele Guimarães Rosa vestiu a inesquecível figura do compadre Quelemém, de Grande Sertão: Veredas – “Quelemém de Góis, da Jijuã, Vereda do Buriti Pardo...” – talvez encontrem resposta em Itaguara. Mas é preciso que se vá a um grotão enfurnado entre morros, lugar conhecido por Sarandi, de muitas fazendas parentes. Uma delas chama-se O Mambre – “morada, seio de Abraão”, o dono explica. A graça do fazendeiro é Manuel Rodrigues de Carvalho, de todos conhecido por Seu Nequinha.
Espírita, estimado e ótimo remedista, foi ele – o próprio é quem diz – quem bastante acompanhou e bastante adjutorou o Dr. Rosa em seus primeiros chamados e aflições médicas. Anda o Nequinha, coitado, é mas é meio perrengue, de cama; tira ânimo e proveito, porém, da forçada permanência no catre, lendo Alan Kardec e o Chico Xavier, afora romances que manda comprar ou lhe levam de presente. A Profa. Maria Geralda Costa, simpaticíssima, encantadora hospedeira e cicerone de Itaguara – amável, expedita e danada de inteligente – Maria Geralda por-se-á pronta, como de igual há de fazê-lo relativamente às outras pessoas que se lembram do Dr. João Guimarães Rosa, para acompanhar ao Sarandi e à Fazenda do Mambre os desejosos de conversar, ouvir o repertório, e – por que não fazer render a visita? – tirar também excelente receita e muito bons conselhos com o velho, lido e suave Seu Nequinha.
O que se não pode mais, lamentavelmente, é ver a casa onde morou e clinicou o escritor, porque já de muito a desmancharam. Casa de quintal e porão, onde – dizem lá por Itaguara – Rosa hospedava bandos de ciganos que, àquela época, tanto percorriam as cidadezinhas rurais: “sempre gostei de estrangeiro”... – confessa Guimarães Rosa, por boca de Riobaldo, em passo de Grande Sertão: Veredas. O conhecimento que exibe da vida errática e do linguajar cigano – fielmente fixado no conto “Corpo Fechado”, em relato autobiográfico do pulha mas artimanhoso Mané Fulô – e mais aqui e ali no restante da obra literária de Guimarães Rosa, deve-o o novelista às pacientes horas passadas na convivência com os “calões” acampados no porão e quintal da casa de Itaguara, aprendendo com eles a gíria arrevesada, as histórias de um viagear aventureiro e sem parada, as tretas no consertar e mercar tachos de cobre, e, especialmente, no pândego passar a perna à caipirada, invencíveis que sempre foram, os finórios dos ciganos, em tramas de cavalos e quejandas malas-artes.
O Capitão-Médico João Guimarães Rosa chegou a Barbacena no dia 3 de abril de 1933. Data de grande festa: todo o povo comparecera à estação da Central do Brasil a assistir ao desembarque do 9.º Batalhão de Infantaria da Força Pública de Minas Gerais, que vinha para aquartelar-se em definitivo.
O frescor do clima, os diversos trens diários da Central do Brasil, a proximidade com o Rio de Janeiro e Belo Horizonte – essas vantagens, facilidades e recursos, faziam de Barbacena, já àquele tempo, uma das mais populosas e adiantadas cidades mineiras. O quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão-nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação – sobrando-lhe prazo para a ocupação a que, desde rapazinho, se vinha dando fervorosamente: o aprendizado de idiomas estrangeiros.
Escreveu a Chiquiloff – seu antigo professor de Belo Horizonte – pedindo livros e mais material de estudo em língua russa; descobriu e passou a cultivar amizade com famílias alemãs para o treinamento de conversação, e iniciou-se em japonês com um Senhor Numia, floricultor local. O francês, aperfeiçoava-o com o poeta barbacenense Honório Armond, e com o Dr. Doux, presidente do Clube Comercial, ponto de reunião de boa sociedade dada às Letras, frequentado por Rosa, que ali fora encontrar, além de inteligentes serões, alguns parceiros de xadrez.
A exata notícia que se tem de uma próxima e total mudança de vida – não se sabe se plano secreto e pacientemente preparado, se fortuita inspiração – transmite-a Guimarães Rosa a um ex-companheiro de pensão e de faculdade ficado em Belo Horizonte – um quase irmão com quem carteia assíduo e muito íntimo – o Dr. Pedro Moreira Barbosa. Em bilhete dirigido a esse amigo diletíssimo, datado de 10 de março de 1934 – menos de um ano, portanto, de permanência no quartel de Barbacena – Rosa prepara-lhe o espírito para séria revelação. Escreve:
Como nunca é bom ficar-se estacionário, já concebi novos planos, desta vez bem mais grandiosos que os de costume, e que surpreenderão muito a você, quando lhos revelar. Por enquanto, só digo que pretendo deslocar-me, muito brevemente, para o Rio de Janeiro...
Dez dias depois, a 20 de março, em agora longa e pormenorizada carta:
[...] se você puder, procure obter para mim, ou com os empregados da Faculdade de Direito ou com algum aluno da mesma, a coleção ou série completa dos Pontos de Direito Internacional Público, síntese das aulas do Prof. Alberto Deodato, prelecionadas para o 3.º ano...
E, mais adiante, abre o coração:
Lembro-me de ter dito a você, parece-me que em Itaguara, que me achava decepcionado com a realidade da Medicina, sentindo até algum arrependimento por não ter estudado Direito, carreira que então já me aparecia como mais compatível com o meu temperamento e com as minhas fracas aptidões...
Em outro tópico da carta, prossegue Guimarães Rosa:
Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Dou Juan, sempre après avoir couché avec... Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol...
Mais adiante, após o desabafo, confessa a aspiração que o empolgava:
Talvez eu esteja exagerando nas cores, mas o que é certo é que hoje toda a minha admiração, fervente, entusiástica, irrestrita, se voltou para outra carreira, a mais nobre e distinta de todas, a mais selecionada, a de mais difícil acesso, talvez – a DIPLOMACIA.
Pedro Moreira Barbosa manda o que Rosa quer – as aulas do Prof.º Alberto Deodato – e, cinco meses depois, a 13 de agosto, recebe a comunicação do êxito do amigo no concurso a que se submeteu no Itamarati para ingresso na carreira diplomática. A importância que dá Guimarães Rosa ao fato leva-o a escrever: “Terminei o primeiro capítulo do 2.º volume da minha vida...”
E acrescenta, no final da carta:
Penso que encontrei ainda a tempo a minha verdadeira vocação. Pretendo seguir o curso de Direito, especializar-se em Direito Internacional e em línguas eslavas, escrever alguns livros de Literatura e ver o mundo lá fora.
É a primeira vez, após quatro anos da publicação de “Caçadores de camurças”, terceiro e último conto de Guimarães Rosa na revista O Cruzeiro, que volta ele a manifestar interesse pela ficção, anunciando o propósito de escrever alguns livros de Literatura. Vê-se – apesar da corrida menção que deixa escapar desse objetivo, misturado com aspirações outras e bem diversas – que as cadernetas de Itaguara mais as informações colhidas no quartel de Barbacena sobre o jaguncismo barranqueiro do Rio São Francisco, tudo era material armazenado para consciente e perseguido fim. Mas, nenhuma precipitação: dois anos depois é que resolveria pôr-se à prova, concorrendo ao Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras com Magma, o volumezinho de versos. Conquista o primeiro lugar, mercê de elogioso parecer de Guilherme de Almeida – não apenas entusiástico relativamente ao candidato vencedor, mas bastante pessimista e até que severo com respeito aos mais concorrentes, pois nem um “aproximador segundo prêmio” admite o relator seja concedido... – e, entretanto, a vitória ainda não satisfaz a Guimarães Rosa. Recebe o prêmio, discursa nesta Casa quando lho entregam em sessão solene, mas não manda à estampa Magma. Um ano depois, por ocasião do lançamento do Prêmio Humberto de Campos pela Editora José Olímpio, Rosa põe novamente de fora a garra, para ver como ela andava: inscreve-se candidato ao prêmio, agora com o pseudônimo de Viator, apresentando livro de contos. Alcança o segundo lugar, provoca os protestos de Marques Rebelo, um dos membros da comissão julgadora, porque este considerava o trabalho de Viator merecedor da primeira classificação, e... desaparece, inidentificado!
O que acaba de dizer-se principia a repetir história conhecida, como já e mais conhecido passa a ser Guimarães Rosa, a partir de sua entrada, mediante brilhantíssimo concurso, no Ministério das Relações Exteriores. Quanto à vida diplomática, hão de ser muitas e bem explícitas as informações do Itamarati, arquivadas em pasta funcionária, e nada difíceis de obter, igualmente, abundantes depoimentos com os colegas de carreira. Depois da atoarda produzida por Sagarana, publicado nove anos após o julgamento de Prêmio Humberto de Campos, aí é que, posto em foco pelo entusiasmo da crítica e interesse dos leitores, bem mais fácil se tornará a tarefa perquisidora dos biógrafos de Guimarães Rosa.
De ajuda a esses estudiosos, pouco, ou quase nada, posso a mais oferecer – se de alguma valia tem sido, até aqui, meu empenho colaborador. Creio, entretanto, ser de vantagem a indicação das cartas escritas por Guimarães Rosa ao amigo Dr. Pedro Moreira Barbosa, hoje importante homem de indústria tecelã, residente em Belo Horizonte. Assinadas pelo primeiro, guarda o segundo cerca de cem cartas, a mais antiga datada de 10 de março de 1934, a mais recente escrita em 11 de julho de 1967, quatro meses antes do desaparecimento do escritor. Extremada afeição ou milagrosa presciência da culminância a que se altearia o ex-colega de pensão e de faculdade, o que importa é o haver o Dr. Barbosa conservado consigo, trancado no cofre, o precioso pecúlio, amealhado em trinta e três anos de amizade e confiança.
Para que se tenha ideia da fartura de subsídios extraíveis dessa correspondência, vai aqui a transcrição de um pedido de Guimarães Rosa ao amigo de Belo Horizonte, em carta remetida de Paris em 19 de julho de 1949. Antes, porém, curta explicação: havia, nas Pindaíbas, fazenda dos pais de Pedro Barbosa, em Paraopeba – lugar a que Rosa, ao tempo de estudante, costumava ir com o colega de Faculdade – havia lá um empregado, de nome Hermenegildo, alcunhado de Mechéu, cujo serviço era cuidar do quintal e dos porcos, rachar lenha, ajudar na cozinha, levar comida para as turmas da lavoura...: o perfeito modelo do tradicional e indefectível peão caseiro e quintaleiro – típica personagem de qualquer história campestre. De Paris, vinte anos depois de o ter conhecido, Guimarães Rosa lembra-se do Mechéu, precisado dele para um de seus contos – é em Tutameia, o último livro de Rosa, que irá aparecer o zelador de porcos das Pindaíbas – e manda buscar-lhe a ficha completa. Eis o que pede Rosa ao Dr. Pedro:
Mas, meu velho, antes que eu me esqueça, acuda aqui ao seu parente. Estou, afinal, pondo em papel a biografia romanceada do grande MECHÉU, e preciso, sem falta, de mais alguns dados. Por amor-de-Deus, mande-me, pois, o seguinte:
I – Como era, mais ou menos, a fisionomia dele?
A expressão?
O aspecto?
(Sei que era alto e magro, mas gostaria de saber também o formato da cabeça, cabelos, se tinha pescoço fino ou grosso, cor e tamanho dos olhos, barba ou não barba, cor da pele, formato das orelhas, e outras peculiaridades que ocorram).
II – Que fazia ele, em geral, à tarde, acabado seu serviço?
III – Além de tratar dos porcos, preparar a boia suína na masseira, levar comida à roça, para os camaradas, tinha ele mais algum serviço?
IV – E aos domingos, que fazia?
V – Era religioso? Supersticioso?
VI – Andava descalço?
VII – E em matéria de vestir-se?
Que chapéu usava, por exemplo?
Gostava de vestir roupa velha que vocês lhe dessem?
VIII – Tinha algum modo especial de caminhar?
IX – Dedicava alguma especial inimizade aos cachorros? Maltratava os animais?
X – Que coisas gostava mais de comer?
Gostava de cachaça?
XI – Na fala: gaguejava? Ria muito ou pouco?
Que é que lhe dava mais raiva?
Nada de preguiça, oh Peréra! Forneça-me isto e mais alguma coisa marcante ou engraçada, que lhe vier à lembrança, sobre o inolvidável Hermenegildo. Recorra também ao nosso Américo. E eu bendirei mais uma vez o pronto e eficaz auxílio (que dá sorte). Você está lembrado do questionário sobre as “vozes de comando” do carreiro, com o qual você me espanou a memória, para o Sagarana?
Assim trabalhava Guimarães Rosa. Não lhe bastava a memória pronta, tampouco a recheada capanga das suas cadernetinhas de apontamentos. Gostava de conferir e reconferir tudo, distribuindo questionários – escrevendo ao pai, parentes e amigos, em permanente e preocupada busca: as figuras que decidia admitir em seu mundo novelesco, e o cenário onde as colocar – nada podia carecer de ser exato.
Quando se dispõe a partir para a estupenda aventura de Corpo de baile e Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa não o faz sem antecipada e até que exagerada preparação. Material sobrava-lhe – a colheita de Itaguara e do quartel de Barbacena, e mais os questionários respondidos por informantes de confiança. A pena de escrever, essa, Rosa já a tinha afiadíssima. Mas sabia faltar-lhe, ainda, o essencial: o reconvívio com seu pago e sua gente, de tudo apartado pelos muitos anos de exercício diplomático no exterior. E precisava também de ver, com olhos próprios, nem que fosse o começozinho do sertão de suas fantasias de criança, os descampados sem fim que principiavam além, muito além-tombada dos morros de Cordisburgo – lá aonde iam e de onde vinham os forasteiros apeados do trem para o almoço ou o jantar no Hotel da Nhatina: a terra das sangrentas correrias de Indalécio, Rotílio Manduca e Antônio Dó, o palco em que sonhava encenar a epopeia do amor de Riobaldo e Diadorim, e da eterna e terrível batalha de Deus e do Demônio.
Chico Moreira, velho amigo e meio-parente seu, de Cordisburgo, programa-lhe a viagem. Por terra, a cavalo, coisa de uns dez ou doze dias, cinquenta léguas de estrada boiadeira, em trecho bem escolhido do antigo caminho por onde descia o gado curraleiro dos campos-gerais do São Francisco. Isso, em 1952. Chegado havia pouco de Paris, com 44 anos de idade, ministro-conselheiro e chefe de gabinete do Ministro de Estado, Guimarães Rosa enfia o gibão de couro, calça espora, e, tal e qual um peão-de-gado comum, inclui-se na comitiva que o aguardava na Fazenda da Sirga – camaradagem, tropa de trezentas e muitas reses – no lugarejo de Andrequicé, às margens do Rio São Francisco.
Zito – João Henrique Ribeiro é seu nome de batismo – cozinheiro da comitiva, passa horas contando casos e mais casos dessa viagem. É ainda moço, e muito esperto e muito falador. Zito pode ser encontrado em uma furna enfeitada de bonita vereda de buritis, fresco lugar chamado Barroca, pertinho da recente represa de Três Marias. Não se esquece do novato que lhe arranjara o patrão Chico Moreira, do camarada de caderneta pendurada ao pescoço por alçazinha de barbante, a caçar assunto, ora com um, ora com outro cavaleiro... O doutor acaba por arrancar – refere Zito – de todos os companheiros de viagem, o que muito bem quer: do Manuelzão, o capataz, desde meninote a tanger boiada pelo sertão do São Francisco, anota-lhe, tim-tim por tim-tim, a aventurosa vida – tão bem aproveitada em “Uma Estória de Amor”, de Corpo de Baile; do Bindoia, cantador de modas, o inteirinho repertório; do Santana, do Gregório, do Sebastião de Jesus...
Zito fala com saudade do Dr. Rosa. Conta como o pobre suportou, sem queixa, a dura peripécia: à noite – a viagem ocorreu em friíssima quadra do mês de maio! – era o derradeiro a ir dormir, ocupado em pôr ordem nas anotações do dia, óculos muito chegados ao papel, à luz ruim da lamparina. Foi assim nas Toldas, no Catatau, Riacho das Vacas, Fazenda Santa Catarina, Meleiro, Retiro dos Brabos, Barreiro do Mato, nas Tabocas, na Taboquinha... Dez pousos, em rebaixas de chiqueiro, em devassados paióis, até de simples pelego estendido ao pé do apaga-não-apaga foguinho do acampamento.
De Araçaí, onde Manuelzão entregou a boiada ao Chico Moreira, Guimarães Rosa seguiu para Cordisburgo.
A estaçãozinha é a mesma, o mesmo é o letreiro do oitão achalezado: “Distância: 743.467 – Altitude: 664,000.” Os morros muitos já pelados do mato, mas acolá estava, acaçapado entre eles, o telhadão enferrujado da Fazenda do Brito Velho. A casa da esquina da Rua de Cima com o beco... – ah, haviam-lhe tirado o alpendrezinho da esquerda da fachada, trocado por uma segunda janela uma das cinco portas da venda!... E tinham mexido no acrescente da cozinha e no muro de pedra solta, derrubado o jenipapeiro...
Como poderia Guimarães Rosa escrever “Campo Geral” se não houvesse regressado àquele tempo? Se, ao deixar a casa, que já não era a sua, não tivesse vivido de novo, olhos fechados para sofrê-la fundamente, a cena da despedida, menino outra vez, agarrado à mão do avô, na hora de tomar o trem para ir estudar na escola de Belo Horizonte?
Fr. Esteves, Mestre Candinho, os vizinhos e fregueses da Venda do Florduardo, o inseparável amigo de infância Juca Bananeira. A Mãe, Tio Cândido, a criançadazinha, os cachorros, o papagaio. O Pai, esse precisava de disfarçar as lágrimas: “Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre, Miguilim...” Trinta e seis anos, e tudo reponta, inteiro e latejante, na página final da estória de Miguilim: “Nem sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe doces de leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava.”
Senhoras e senhores,
Confesso-vos que me sinto, agora, ao ter de cerrar-me, tal como me sentia, não faz muito tempo, ao dar por findo o improvisado serviço de peão alongador, saído a bater os passos do grande Mestre. Convencido do muito que tentei, mas certo, por outra parte, do pouco que logrei. A esperança de algum proveito são as marcas, que ficaram à borda dos trilheiros: esses galhos quebrados de árvore e esses talhos a facão que é costume fazer nos troncos mais à vista. Ao menos de referência, hão de servir para alheias e mais úteis caminhadas.
À minha despedida, permiti-me manifestar a orgulhosa satisfação de minha cidade, em-antes sertaneja como o era a cidadezinha serrana de João Gujmarães Rosa: Monte Carmelo, minha terra, que, aqui, veio alinhar-se ao lado de Cordisburgo, ao lado da gaúcha Cachoeira, de João Neves da Fontoura, ao lado também da maranhense Caxias, de Coelho Neto. É o Brasil interiorano – genuíno de nascença e vibração – a ocupar, sem quebra de continuidade, a Cadeira de Álvares de Azevedo, tradição que esta Casa houve por bem manter.
São Paulo é quem virá saudar, por procuração desta Academia, o quarto ocupante da Cadeira cujo patrono é também um paulista. Nós, os mineiros do Triângulo, é muito gratamente que cultivamos as boas relações de vizinhança e convivência com São Paulo, filhos de quem já fomos, no passado. Cândido Mota Filho, amigo muito querido, falar-me-á ao coração de forma especialíssima. Das mãos de Múcio Leão – prestigiosas mãos que tanto me ajudaram a chegar até esta Casa – receberei o Colar Acadêmico, o que, também, sobremaneira me comove.
Senhor Presidente, senhores acadêmicos,
Uma vez – já faz muito tempo – Guimarães Rosa ajustou comigo uma viagem de avião ao sertão urucuiano. Declarou-me, então, precisar de conhecer, de pelo menos sobrevoar baixinho, seguindo-o volta por volta, croa por croa, o seu sonhado Urucuia: comprido e calado de águas – o verde, o azul rio de suas histórias. Bom seria se pudéssemos aterrissar – pediu Rosa – nem que fosse apenas para “molhar as mãos, o rosto, beber um gole de água...” Eu costumava ir a uma fazenda urucuiana, bem à beira do rio, onde a gente podia descer de teco-teco. Levá-lo-ia até lá, sim, à hora em que o desejasse.
Ao ler, recentemente, as cartas por ele escritas ao seu amigo Dr. Pedro Moreira Barbosa, em uma delas, datada de 8 de agosto de 1956, encontrei a seguinte referência ao passeio concertado:
“E, para agora, estou tentando por uma excursão ao sertão, ao Alto Urucuia, com o Deputado Mário Palmério; mas será via Uberaba; ainda dessa vez Belo Horizonte ficará ao largo e ao longe...”
Mas o tempo foi-se escoando, escoou-se, e Rosa ficou sem ter ido ver o seu rio.
Fui eu, então, pois algo dentro de mim teimava em garantir haver ainda jeito de cumprir o combinado. Levantei voo, e, sozinha, a bússola procurou o norte exato, o justo rumo de Cordisburgo... Sim, Rosa estava ao meu lado, viajava comigo. Passei-lhe os comandos – o mancho e os pedais – e foi ele quem dirigiu o avião o tempo todo. E sempre e sempre para o norte: Curvelo, Corinto, Pirapora, o Rio São Francisco. A barra do Paracatu, São Romão, depois – Vila Risonha de São Romão –, logo em seguida a barra do Urucuia. “É verde, é azul... é azul, é verde...” – eu o ouvi, então, a ele Rosa cantar o refrão das araras do seu Grande Sertão: Veredas. É verde, é azul, é azul, é verde... – sim, foi uma bela viagem: viagem de pausa, de maravilha e de saudade.
Meu caro Guimarães Rosa,
Deus nos permitiu, a ambos, realizássemos o velho desejo: você pôde matar a vontade, pude eu pagar a promessa. E muito, muito obrigado, por me haver acompanhado até aqui.
22/11/1968