A queima de fogos deu ao Rio de Janeiro uma espécie de passaporte global para integrar o prestigioso número das grandes capitais da Terra por onde ingressa o Novo Ano, acompanhado pela escolta das grandes multidões, a fanfarra em altos decibéis e a sempre mais complexa, quase barroca, e cada vez mais longa pirotecnia.
Pagou-se, contudo, um preço elevado: o quase eclipse das religiões africanas, que coloriam nossas praias, no dia 31 de dezembro, com uma carga poética inesquecível, para quem as alcançou. Todo um arquipélago de velas brilhantes, que pontilhavam a areia de luz e sombra, com os perfumados barcos de Iemanjá, boa parte dos quais azulados, e os tambores cadenciados, ao mesmo tempo suaves e vigorosos, que se confundiam com as batidas do coração.
Mas outra praia resiste e cresce. A um mês do Carnaval, vejo com alegria que o grupo Olodum prestará homenagem à Etiópia, dentro de seu projeto de trabalhar com as vozes da África, que constituem a espessa camada negra e polifônica de nossa História. “Lalibela Olodum” é o título da música, deliciosa de pronunciar, como um mantra, apoiado na letra “l” e na fartura de vogais.
Lalibela ou Lalibäla é uma das cidades mais fascinantes da Etiópia, com suas igrejas esculpidas na pedra, por ordem de um antigo rei, que sonhava edificar uma nova Jerusalém no coração da África. A igreja ortodoxa da Etiópia é uma das mais antigas do cristianismo, com uma visão de mundo original, calendário próprio, Juliano, e não Gregoriano como o nosso, com três livros a mais do que o Antigo Testamento, como o livro de Enoque, por exemplo, e uma liturgia de rara beleza.
Tão aberta para abraçar distintas narrativas, a Bahia é uma espécie de irmã da Etiópia, que também recebeu diversos influxos, sem abdicar de nenhum deles. A começar pela comunidade muçulmana, além dos “falashas” ou “beta Israel”, que são etíopes judeus, a igreja ortodoxa, “tewahedo”, com seus ícones luminosos e formidáveis cruzes de procissão, além das tantas expressões religiosas no vale do Oromo.
Tenho para mim que a Etiópia é uma das últimas reservas poéticas do Ocidente, onde os mitos ainda vivem com toda a plenitude, com a beleza ao mesmo tempo sublime e selvagem, entre a esfera celeste e terrestre, onde as estrelas do céu e o curso dos rios se confundem com a própria história dos deuses e o perfume das flores. Todos podem dizer, como certo poeta, que cresceram nos braços dos deuses.
Pode ser que o Olodum represente também o desenho do elegante alfabeto etíope, que é dos mais interessantes dentre os alfabetos silábicos. O que importa de fato é a retomada do diálogo com a Etiópia, não como quem olha para um museu, mas sim para uma poética viva, densa e arraigada, que aponta para sábias resistências contra uma homogeneização global, com as lições de um povo que se manteve independente e não perdeu a própria voz, numa leitura original de uma parte esquecida do Ocidente.