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A Cidade Curinga

 

São Sebastião do Rio de Janeiro é uma das cidades mais inquietas e inabordáveis do mundo.

Basta nomeá-la para que prontamente se dissolva e fuja por entre os dedos.  Não é como tantas cidades, que vestem folgadamente o corpo de sua inteira jurisdição. A geografia carioca desconhece limites. Não há tecido capaz de cobrir sua nudez. Trata-se menos de uma cidade do que um manancial de metáforas, uma coincidência de opostos. O Rio é uma enorme federação de desejos, atraída pelo futuro, e a ele devotada, sem nenhum sinal de resistência.   
      
Adicta do futuro, em vista do qual não mede esforços para apressá-lo, é ao mesmo tempo saudosa de um passado incerto, de que se percebe exilada, ou amnésica, pelo tanto que apagou com seu apetite demolidor. Uma Roma em guerra com a barbárie da especulação. Machado de Assis resume a vertigem de que sofrem os cariocas: “Mudaram-me a cidade ou mudaram-me para outra”.
      
Mas a cidade é tatuada na pele do presente, antes de assumir o passado que perdeu e o futuro entressonhado. Porque o Rio vive, uma vez mais, um novo redesenho, desde os anos 90. Ampliou seus tentáculos, e promove, dentro de sua identidade polifônica, todas as vozes e os centros que a constituem, da Cidade de Deus, de Paulo Lins, aos subúrbios de Lima Barreto, cuja “falta de percepção do desenho das ruas põe no programa um sabor de confusão democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as habitavam”. Uma pós-metrópole, em franca expansão, que se espera mais solidária e democrática, com grandes desafios para os quais se mobilizam novos atores urbanos, formando um arquipélago de identidade e resiliência, da Mangueira ao Alemão, do Santa Marta à Rocinha.
      
Uma cidade ferida de contradições, que não perde a força lúdica, ao dançar a vida, cantando, ao mesmo tempo, a cidade possível e desejada.  Podemos atingir a cidade  que virá numa perspectiva coral: nas letras de Vinícius e Cartola, no sonho de liberdade das prisões, no desenho das crianças, em que  não falta sol, na procissão de São Jorge, com seu vermelho inconfundível, nos grafites urbanos, que fazem da cidade um livro aberto, anônimo e coletivo, na parada gay, nos rituais de candomblé, nos rostos das mães, que perderam brutalmente os próprios filhos, nos projetos que não saíram do papel, como o túnel Rio-Niterói, nos tempos de dom Pedro II.
      
Não se poderá jamais esgotar as possibilidades de conjugação de tempos e modos de uma cidade curinga, como a nossa, filha de metamorfose plurissecular, que cresce nas alturas para sequestrar horizontes e que se alonga, por toda a parte, com artérias novas e meios velozes.

Como não amar o Rio?  Amá-lo com certa mágoa e devoção, pois, como disse o poeta, o rosto da cidade muda mais rapidamente do que o nosso coração.

O Globo (RJ), 04/03/2015