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Discurso de posse

Ratificando cinqüenta anos depois os sufrágios de tantos dos vossos predecessores, que quiseram então admitir à sua companhia o rapaz de Sergipe que acabava de publicar o seu primeiro livro composto de uma conferência, de artigos e crônicas de jornal, confirmastes, senhores acadêmicos, a existência em mim de uma academiabilidade, de uma vocação a ser dos vossos, da qual, posso dizer, já não me lembrava mais.

Quando há meio século, quase sem sentir e sem pensar, como que arrebatado num redemoinho, achei-me candidato à Academia, meu espírito, governado pelas premências da hora, voltado para outros rumos, não concebia sequer, nem podia conceber – honra tão grande obtida tão cedo. Entretanto, uma voz prestigiosa nesta Casa, a de Afonso Celso, surpreendia-me, antes da publicação daquele primeiro livro, na estrada que eu começara a trilhar ao chegar do Norte, com um chamado atordoante. Concluindo uma carta em que elogiava um dos meus escritos de O País, dizia-me o veterano das Letras e homem de bem: “Candidatando-se à Academia, conte com o meu voto.”

Ao exprimir-vos os meus agradecimentos, não só em obediência às regras de uso, mas com o que há em mim de mais alto, de mais digno de vós, penso também – e com que ternura! – nos vanguardeiros desta consagração, naqueles que aprovaram a minha mocidade e anteciparam o vosso gesto. Penso em Carlos de Laet, em João Ribeiro, em Olavo Bilac, em Graça Aranha, em Rodrigo Octavio, em Afonso Celso, em Félix Pacheco, em Silva Ramos, em Magalhães Azeredo, em Paulo Barreto, convivas mais assíduos da minha memória. Ao relembrar, porém, esse episódio, um pensamento me ocorria sempre, em forma de interrogação, e que nunca pude responder a meu contento. Teria sido um bem ou um mal favor tão prematuro? Como me teria eu movido sobrecarregado de título e dignidade tamanha antes da hora, ao amanhecer da existência? Conquanto a glorificação acadêmica não imponha maiores deveres ou obrigações ao seu fruidor, é evidente que sobre um acadêmico se reflete uma luz condicionada pela altura mesma, pela categoria de ordem social em que o público o situa.

Bem lembrado, porém, estou de que não me mortifiquei por não ter sido eleito. Incorrido desde cedo na fama de pretensioso, a verdade é que jamais o fui no grau que me atribuíam. Era afirmativo. Nos primeiros tempos, desarmado de prudência, magoei muita gente com franquezas supérfluas, defeito de que só me ficou certa intransigência em matéria de julgamento literário.

Em alguns leitores, sobretudo do interior do País, minha ausência desta Casa tornou-se uma espécie de obsessão. “Por que não entra para a Academia?” perguntavam-me. Honrosa para mim, essa preocupação revela até que ponto a Academia penetrou as camadas da população, constituiu-se uma presença não só prestigiosa como sagrada, poderíamos até dizer. A Academia ergue-se no meio brasileiro como um ponto referencial, uma espécie de foco para o qual se voltam os espíritos. Machado e Nabuco estarão contentes lá na imortalidade. Se não realiza o seu fim de “conservar no meio da federação política a unidade literária”, se não se converteu, conforme o sonho de Nabuco, “no órgão de expressão, não só literária mas também do próprio instinto da Nação à procura do seu gênio e da sua originalidade” (a rigor tais expressões dos nossos maiores servem a traduzir possibilidades esquemáticas), certo é que a Academia EXISTE, e existe imensamente, para o povo brasileiro. Está no centro das suas crenças. Ninguém “faz espírito” com a Academia, como foi moda há alguns anos. De enxerida no conjunto das constâncias do nosso viver, a Academia transformou-se numa senhora respeitada. Falar mal da Academia tornou-se prova de mau gosto. E quão racional é que assim seja! A glória dos acadêmicos, sua “imortalidade”, pode ser falaz, mas a idéia de a consagrar não é. Nesta Cadeira para a qual se dirigiram, tão jovens, João do Rio e Ribeiro Couto, e da qual se alteia, estranha, esquálida, a figura de Laurindo Rabelo, sentaram-se Guimarães Passos e Constâncio Alves, um e outro pouco avultantes na lembrança do povo. A Academia os revive, reacende a chama votiva diante das suas efígieis, dos seus nomes, conclama-os de vez em quando pela voz dos recém-vindos aos lugares que eles enaltecem como patronos e como primeiros ocupantes, O povo os recorda por nossas vozes, por vozes diferentes. Aquele que sucede a Couto neste momento diz o que Couto representa para ele, para as Letras brasileiras e para o País em geral; como Couto o disse na sua vez de falar. Outros virão perpetuar o culto que, sem a Academia, sem a coragem e o entusiasmo de Machado e Nabuco, ter-se-ia apagado. A Academia, grande Vestal, mantém aceso o fogo simbólico.

É tempo, senhores acadêmicos, de nos aproximarmos do nosso imortal.

Mas, antes, seja-me permitida uma interrupção determinada por encontro inesperado que devo referir, tal a importância extraordinária que teve para quem como eu sente prazer em admirar. Estavam na minha frente artigos e trabalhos, cada qual mais interessante, destinados a propiciar-me dados, biográficos e outros, necessários à composição deste discurso, fornecidos todos por Odylo Costa, filho, amigo de Ribeiro Couto e meu desde a Faculdade de Direito, onde há trinta anos, de professor e aluno, nos tornamos logo companheiros. Além dos seus “Vocação de Cabiúna”, de 1948, Neto de Imigrante, de 1952, de “Um Menino Pobre”, de Albertino Moreira, retrato do poeta na sua infância e no encanto amanhecente da sua predestinação... espalhavam-se também diante de mim os artigos em torno da celebração dos sessenta anos do poeta, o de Peregrino Júnior, História e Pré-História de Uma Amizade, rico de notações, de sugestões excitantes, no qual vi com enternecimento citado o meu nome. “À tarde, depois de uma volta pelo Alvear, íamos à Gazeta para ver de longe na roda de Cândido Campos as celebridades da época:Gilberto Amado, Antônio Torres, Lima Barreto...”, o do grande Alceu, intitulado O Incrível Sexagenário, aclamação do homem e do artista triunfantes... “Os poetas autênticos não envelhecem...”

Eu ia lendo tanta coisa bem escrita, tão justa e ao mesmo tempo tão carinhosa. As páginas de Paulo Rónai, “Ribeiro Couto, Tradutor de si Mesmo”, começando com estas palavras tão indicativas do dom de Ribeiro Couto de ser ele próprio, isto é, de fazer bem.. “Já contei, há anos, num artigo, o muito que devo a Ribeiro Couto, principal responsável pela minha vinda para o Brasil...” arrancaram-me este murmúrio:

“Bravos, Couto, por este bom presente que você nos fez...” Logo me caía nas mãos “O Inumerável Ribeiro Couto” de Raimundo Magalhães Júnior, esta outra brasa sempre acesa no fogão votivo ao poeta – rememorações preciosas cosidas pelos fios de seda da maior ternura, dentro das quais também apareço em boa circunstância, alegre de recordar. E ainda: “Ribeiro Couto, Irredutível Brasileiro”, de Dante Costa. Ainda outros. Oh, quanta matéria! Ao lado estava na mesa um exemplar da coleção da Academia com a oração de posse e a resposta de Laudelino Freire, que eu leria mais tarde. Ao abri-lo, achei-me com os olhos no discurso de recepção de Alcântara Machado, que eu desconhecia (aí o encontro a que me refiro), confesso essa falta determinada sem dúvida por minha ausência do País (1933 foi o ano da Conferência Pan-Americana de Montevidéu e das minhas lições na Faculdade de Direito de Paris, de que terão tido notícia os leitores de Dias e Horas de Vibração, editado por Ariel e hoje parte dos Três Livros, edição recente de José Olympio). Senhores acadêmicos! que surpresa! “Oh, milagres do Brasil!” disse para mim mesmo à medida que ia lendo, a vibrar. Que mestria, que arte, que força, que graça! Exprimindo-se com uma ciência de profissional da arte de escrever, sem traço mesmo longínquo de amadorismo, em períodos densos até o máximo sem prejuízo sequer mínimo da sua leveza, na execução de um trabalho de circunstância, Alcântara Machado, que não escrevia para o público, com a mão afeita apenas à exposição de teses jurídicas, ao jargão dos arrazoados, sentia-se à vontade na atmosfera da criação artística autêntica, senhor de todos os recursos da técnica mais perfeita, das astúcias todas do estilista. Literatura alta mesmo.

Mais uma vez o meu amor a São Paulo, que deve ser o de todo brasileiro (quem não ama São Paulo não é, não pode ser bom brasileiro; e haverá brasileiro que não ame São Paulo?), deu-se motivo a si mesmo. Ali, naquele planalto, desde a colônia, São Paulo cria Brasil, o Brasil destinado a durar, o da verdadeira independência, que é a econômica. Levantada a cortina de... cortiça que insonorizava o Brasil e lhe tapava os ecos do mundo, arrancadas enfim das bocas brasileiras as rolhas do Reyno, desde que o Brasil pode falar e uma tipografia deixou de ser crime no Brasil e às mãos das crianças pôde chegar o alfabeto, ali, naquele planalto, o Brasil começou a falar, a ser Brasil na voz de São Paulo. Através de poetas, cientistas, criadores de todo gênero, São Paulo abre caminhos. Um século depois da Independência, de onde explodiria o brado renovador, o BASTA às velhas parnasidades da nossa Literatura? Dali, do planalto onde todas as semanas são “semanas modernas”. Ali o sopro do Gênesis não pára. Cada minuto de São Paulo é um Fiat. A luz está sempre a nascer naquela terra de Promissão. Terra onde os ricos de nascença, como Paulo Prado, prezam acima de tudo os livros, não os de luxo mas os infólios, os cartapácios dos arquivos onde dorme o velho Brasil. Terra em que o gênio de Assis Chateaubriand requintando no seu dom encontra clima para criar o Museu de Arte Moderna. Terra multíplice e politônica onde a Poesia pode falar tão diferentemente na mesma língua e encantar-se todo o tempo: encantar-me como em Menotti, de quem guardei de cor poemas, alguns insuperados, ao meu ver, pelo frescor das notações verbais e ao mesmo tempo pela solércia com que as palavras são chamadas pela experiência a exprimir a ingenuidade; encantar-me em Guilherme de Almeida, superior a modas e escolas, domador do verbo, soberano na sua arte, graças à qual consegue engastar o universo num camafeu, e o maior tema numa miniatura. E que dizer de Cassiano Ricardo, habitante das regiões do inóspito, sobre cujos amores urrantes “cai a noite usando estrelas douradas”, terreno grumoso, em que fermentam formas larvares do nunca dito, criações riscadas por faixas de uma luz jamais sonhada? São Paulo, terra destes poetas, São Paulo... terra de Ribeiro Couto.

E... eis enfim, senhores acadêmicos, o primeiro tema que me cabe desenvolver nesta solenidade. Paulista não de quatrocentos anos, não do planalto milionário, mas do litoral, da pobreza, daquela sucursal de Sergipe que era ao tempo do seu nascimento a cidade de Santos, paulista, sim, mas sem estrondo, em cuja garganta o bandeirante não brada do fundo dos séculos; indiferente ao “histórico”, ao “heróico”, ao grandioso, procurando nos fatos e nos fastos sobretudo a nota “intimista”, o menos “político”, o menos militante, o menos capaz de alistar-se em qualquer regimento, falange ou célula ideológica, Couto manteve-se fora do alcance das ressonâncias dramáticas do passado, e durante todo o tempo, no curso do seu viver, distante das áreas perturbadas pelo encontro das paixões. Prefere ao romântico o prosaico, que transforma em “Poesia”, na sua Poesia-registro-direto da realidade comezinha.

Passando ao estudo da obra no intuito de acentuar-lhe os característicos, terei de escusar-me logo de início perante os senhores acadêmicos de não me ocupar detidamente do chamado “movimento modernista” do qual, na opinião de todos, foi Ribeiro Couto magna pars. Não desconhecendo o valor desse extraordinário episódio, marcador de uma etapa importante no evolver literário do Brasil, do qual Afrânio Coutinho num dos volumes de A Literatura nos oferece um quadro admirável, reluto enredar-me em assunto de que jamais me ocupei. Tenho receio de errar, de ser impreciso, o que não gosto de ser. E... por que não confessar claramente que se trata de gênero de discussão que não me interessa? Para mim, o mérito de Couto, seu valor, o de sua obra não se condicionam à escola a que pertenceu, à corrente em que foi levado, às influências que recebeu. Respeitando os críticos científicos, os enquadradores das direções literárias, seus esquemas ou sinopses, permaneço fiel a outras preocupações muito mais simples... Que Ribeiro Couto tenha sido um pernumbrista, como foi qualificado no seu tempo, me interessa menos do que indagar se ele foi ou não um bom penumbrista. Naturalmente ajuda: a qualificação recordadora da fase, da época em que o escritor escreveu, ajuda. Esclarece. É útil, mas não é essencial. E... para não perder associação que me ocorre: Baudelaire foi durante algum tempo considerado satanista. Que importância tem isto hoje? Nenhuma. Sirvo-me de conceitos de T.S. Eliot, maior ensaísta talvez do que poeta e o mais lúcido aquilatador literário que já teve a Inglaterra depois de Matthew Arnold, em que diz:

O “satanismo” (as aspas são de Eliot) da missa negra estava muito no ambiente; exprimindo-o, Baudelaire era voz do seu tempo; mas servia-se dele ao contrário de seus semelhantes para fins diferentes. O problema para ele era mais sério: era o problema do Bem e do Mal. Baudelaire percebeu que o que tinha importância, the what matters, eram o PECADO e a REDENÇÃO.

Para não divagar e não carregar o discurso com o que não lhe é indispensável, vou logo dizendo que Ribeiro Couto era livre de afastar de sua visão, ao escrever O Jardim das Confidências, a luz crua e imensa que o envolveu desde a infância. Nascido em terra de sol – e que sol, o de praia, crescido sob ele, molhando de suor por obra dele a camisola de garotinho, mesmo dentro de casa, pois raio de sol de Santos não respeita janelas nem persianas –, nem uma vez a ele se refere nos seus poemas. Engano-me. Corrijo. O astro-rei aparece uma vez, uma mas com essa qualificação: “sol frouxo.” Tendo escolhido a bruma como objeto principal dos seus escritos, Couto manteve-se, com inflexível coerência, fiel a seu propósito. A observação faço-a com um empenho, uma intenção que me apresso em consignar. Quando anos depois, muito depois, Couto começou a mostrar-se de óculos pretos, em luta com a moléstia em que perderia a vista, mais de uma vez me perguntei, tendo na memória o belo esgazeamento dos seus olhos, se podia ter havido qualquer relação entre aquela ausência de sol nos seus poemas e a cegueira que o ameaçava. Tratar-se-ia de uma espécie de premonição, uma advertência da sensibilidade visual contra o seu inimigo... o sol, violento, feridor de pupilas, abrasador de retinas? Mas a idéia só me ocorreu mais tarde, muito mais tarde.

Qualquer que tivesse sido o motivo, impulsão inconsciente ou deliberação meditada, o fato de Ribeiro Couto fechar-se à presença do sol e abrir-se de preferência, ou só e só, à da penumbra, do nevoeiro, não teria relevância para quem, como eu já naquele tempo, o da publicação d’O Jardim das Confidências, admitia a liberdade irrestrita do poeta na escolha dos seus assuntos. Por igual e em consequência, despreocupava-me saber se os poemas que o acometiam e o dominavam provinham de leituras estrangeiras, de sugestões de Natureza estrangeira. O não ver claridade, o desdenhar tons gritantes, o só reagir aos surdos apelos das meias-tintas corresponderia à atitude dos parnasianos que viam no Brasil mais ciprestes e Partenons do que senzalas e mangueiras. Mas... assunto não vale nada. Nossos parnasianos, como seus mestres franceses, morreram como morreu a pintura acadêmica no anedótico, no pitoresco, porque uma realidade nova não lhes nascia do verbo e o seu Fiat não era o do Gênesis. As palavras de que se serviam nada REVELAVAM.

Conheci o homem antes de conhecer o poeta. Conforme relembra Raimundo Magalhães Júnior no artigo já citado em torno da celebração do sessentenário, fui em 1918 uma tarde à Gazeta de Notícias ao sair da Câmara para felicitar Cândido Campos, o diretor, pela reportagem da chegada ao Rio de Epitácio Pessoa, recém-eleito presidente da República. Fui logo dizendo: “Notável! A introdução... perfeita. Belo jornalismo. Quem fez?”

– “Foi um rapaz de Santos que está trabalhando aqui conosco. Couto!” – gritou. Vi então diante de mim aquela graça ainda adolescente, aqueles olhos de antílope, aquele sorriso que me foi direto ao coração.

Que estaria no noticiário? Não posso recordar. Devo ter-me impressionado pelo que mais prezo em trabalhos do gênero – a objetividade. No redemoinho, no remelexo popular, na profusão de coisas a ver e anotar, a preensibilidade do talento pode exercer-se à vontade. Uma certa fantasia, respeitosa da justeza do registro, aviventa o texto e lhe dá sabor. No canto da sala para onde corremos logo depois dos abraços, a voz que ouvi era solta, alta, estridente quase, cheia do sol de Santos, ressumante de trópico.

O contraste entre o homem e o livro não se revestia de maior importância nem poderia influir na minha apreciação. Mas para gostar d’O Jardim das Confidências faltava-me disposição natural. Eu vivia em contato com uma Poesia totalmente oposta. Meu temperamento, respeitando a delicadeza, nunca a separava da força. Interessava-me a doçura dos que podem ser rudes. Tendo concordado em que era preciso torcer o pescoço à eloqüência, eu vinha contudo de uma formação em que certos acentos e valores não se haviam ainda desapreciado de todo. Mocinho em Pernambuco, eu declarava que a metáfora de Castro Alves

Quando a fanfarra tocas na montanha,
A matilha dos ecos te acompanha,
Ladrando pela ponta dos penedos

valia mais do que livros e livros de “Poesia” no Brasil.

Certo, o choro, as lágrimas podem ser e têm sido Poesia. As de Ribeiro Couto eram:

Olhando agora o céu da noite adormecida
pus-me a chorar, silenciosamente,
sofrendo a dolorosa ironia da vida.

...............................................................................................................

Ah, como é suave e brando
o tormento de adivinhar – quem o faria?
as palavras que estão dentro de nós, chorando.
Chove dentro de nós... chove melancolia.

A minha alma à mercê de velhas mágoas
é um pássaro ferido mortalmente
que vai sendo arrastado pelas águas.

Enquanto estas melodias chorosas me acariciavam o ouvido achei-me a pensar em Álvares de Azevedo, que “sofrera” ainda mais. Não tinha vinte anos e já não suportava o existir:

Farto da vida breve serei morto!

[...] gemia o adolescente que numa terra de pioneiros, do São Paulo inaugurador ainda estremunhante da longa sonolência colonial, iria inscrever-se nas páginas da História-Pátria, conforme assinalou Sílvio Romero, como o pioneiro por excelência, o criador da linguagem poética nacional. Extinguia-se aos 21 anos sem esperar o seu Missolonghi aquele Byron em cuja alma feita de música surgia na língua velha o verbo novo.

Couto continuaria a sofrer, e muito, mas em verso. Naquele sofredor em Poesia, naquela urna de pranto literário, morava uma quermesse, um festival permanente. Só se queixava nos poemas. Na vida era só exaltação e... heroísino. Esta palavra me veio o ano passado a propósito do nosso último encontro em Paris. “Posso ir almoçar?” – soou-me no quarto de hotel, na manhã invernosa, a voz tão conhecida e tão inconfundível. “Couto!” exultei. “Venha! Venha! Já!”.

Na mesa, falando sem parar, a cabeça erguida como a dos cegos, os óculos pretos enormes, sem acertar com o pão, tocando piano na toalha à procura do garfo, possuído da verve gigantesca que era a sua, nem um instante, nem por sombra, dava idéia de que para ele existisse infelicidade no mundo. A volúpia com que saboreava as viandas, os patês, os egrégios queijos de França, com que sorvia o bom bourgogne branco logo seguido de um grande bordeaux rouge, não lhe tolhia – ao contrário, propulsava-lhe o fluxo verbal. Vinham-lhe do fundo lírico frases e frases belas. Tendo-o praticado tantas vezes não me lembrava de o ter visto nem ouvido tão exuberante e tão festivo. Sua alma era uma manhã de Páscoa: todas as aleluias cantavam nela.

Durante todo o tempo, nesse almoço, derradeiro encontro que tivemos, dois meses antes da sua morte, embalde pensei que ele fosse aludir à perda da vista. Nada. Absolutamente nada. Tristeza? Estava tão longe dele quanto estaria de uma criança absorvida no brinquedo. Sua joie de vivre extravasava no ambiente. A voz estralava, as risadas faziam voltar-se para nós os rostos. Os garçons que nos serviam, o maître d’hôtel pasmavam. Os óculos pretos ainda o tornavam mais conspícuo.

Quando o pus no automóvel, já no fim da tarde (como sempre acontecia, o nosso almoço durara horas), ao afastar-me para que o veículo largasse notei que ele não me via! O adeus que me dava, porém, era um clangor. “Até a sua volta de Genebra! Ainda estarei por aqui.” O porteiro do hotel que o ajudara a entrar e acomodar no carro (quanto engordara!) voltou-se triste para mim: tinha notado a direção errada do gesto. “Oh, colosso!” pensei, com a garganta cerrada. Aquela grandeza, orgulho ou humildade, aquela aceitação, jubilosa quase, diria eu, da desgraça remexia-me até o fundo das entranhas, provocou-me lágrimas, que não pude conter. Senti necessidade de comunicarme com amigos ainda mais próximos dele do que eu. Escrevi a Manuel Bandeira e a Odylo Costa, filho, prevenindo-os do choque que iam receber ao vê-lo de novo.

Vencendo as minhas idiossincrasias desde muito já me havia eu conciliado com a sua Poesia, pelo menos em grande parte dela. Descomplexara-me e, se não sentindo como os da sua geração, deixando-me impregnar intelectualmene dos vários encantos que ela me oferecia. A leitura total do volume da edição recente de José Olympio facilitara-me a apreensão, numa vista de conjunto, dos cimos da paisagem.

Marcavam-se no panorama aspectos que me haviam escapado nas leituras anteriores. Além daqueles títulos, unanimemente reconhecidos, que o consagraram e que Rodrigo Octavio Filho recenseia no seu excelente estudo do terceiro volume da A Literatura Brasileira, isto é, o de ter “incorporado à nossa Poesia os motivos de vida simples, o cotidiano, sem nenhuma ênfase e nenhuma oratória”, além dos títulos que essa especificação compendia, outros me foram aparecendo na sua grande significação, revelando-me no Couto que eu apreciava, um Couto que me pus a admirar. Naturalmente quando Rodrigo estatui que O Jardim das Confidências e os Poemetos de Ternura e de Melancolia “são os melhores documentos da época”, o meu teorismo, ou melhor, os meus preconceitos relativos à distinção entre Prosa e Poesia voltavam-me, queriam impor-se de novo. Mas interpretei logo, como me cumpria, em obediência ao que deve ser, que documentação, elemento de Prosa, pode tornar-se substrato poético desde que, graças aos milagres do verbo, crie no espírito do leitor aquele estado deleitoso, produza aquele abalo, aquela embriaguez, aquele encantamento que só a Poesia, como a exaltação amorosa, produz. Compreendi que inclusa na apreciação estava o princípio de que refletindo o seu cotidiano, os objetos que lhe povoavam a visão, estava ele, Couto, exprimindo-se a si próprio. Na leitura apurada, fui me detendo no que de documento se lhe transformara no íntimo em Poesia, naqueles poemas em que a expressão supre a realidade vista pela realidade deformada; diria, assim, a realidade de todo o mundo, a da Prosa, por uma realidade única: a da Poesia. Fui deixando de lado enunciações lançadas no papel para o álbum da memória, lembretes de folhinha, cromos, estampas, litografias, o que está longe de ser Poesia, que é realidade ajuntada à realidade. Para reproduzir o que está, basta um fotógrafo, não precisa pintor. Mas um fotógrafo não apanharia esta maravilha:

Recife, cidade menina, vestida de cores (oh, quantas cores!)
Com suas ruas endomingadas de palacetes
Indo à tardinha ver o folguedo dos bairros pobres,
Em que os mocambos, pobres negrinhos, têm os pés n’água
E brincam de esconde-esconde com os coqueirais.

Aí o poeta tira da paisagem, do cenário, Poesia. A prosopopéia, investindo de humanidade os mocambos pobres, leva-nos além do fato observável e comezinho àquilo que Claudel chamava a “transcrição dos objetos contingentes e passageiros ao mundo eterno”. O anedótico se espiritualiza e se engrandece.

Em quase todos os poemas do Nordeste, Couto transfigura o óbvio pelo fazer jorrar sobre ele, sobre a evidência ressaltante, tão patente que não a vêem os olhos – raios que como sob certos jatos de luz de Van Gogh tornam as coisas naturais criações de sonho. A banalidade incrivelmente banal, arrancado o véu que a escondia, a banalidade mais neutra, o objeto mais comum e mais familiar, surge-nos diferente como se nunca o tivéssemos visto. “Poesia é ver, e fazer ver, pela primeira vez, o que olhávamos sem ver”, como dizia Shelley.

Meu empenho ao longo dessa leitura consistiu em procurar sob o literato o poeta autêntico; sob a aparência, a substância; nas manifestações do sentimental, o que havia de realidade artística; sob as lágrimas, o poder do poeta de fazer do seu pranto a alegria de outros. Nenhuma dor de poeta logrou prevalecer na admiração humana senão pela beleza que revela. António Nobre prevaleceu por esse motivo.

Ao tema do exílio que reinou no espírito das gerações, quiseram amigos de Couto associar-lhe a musa. Mas não insistiram. O poeta não os animou, suponho. Repugnava-lhe à delicadeza e ao bom gosto equiparar a desterro a existência de diplomata brasileiro na Europa. Guimarães Passos tinha motivos para se considerar exilado... em Montevidéu e Buenos Aires: não lhe sobravam dólares. (A propósito: que discurso o de Paulo Barreto ao ocupar a Cadeira de Guimarães, esta Cadeira! Que abundância de vistas, que movimento de prosa, que teor, que obra de escritor! Grande João do Rio!)

Meu intuito ao tocar nessa tese do “exílio”, que desde Gonçalve Dias a Casimiro de Abreu não cessou de influenciar a musa romântica, foi mostrar até que extremos de exagero essa moda que durou tanto pôde chegar. O patrono desta Cadeira, considerado “gênio” no seu tempo, tão célebre que uma edição de obra sua trouxe o título Poesias do Dr. Laurindo, dramática figura bracejante nas águas mortas do Império, não precisou sair do País para “sofrer” as dores do exílio... O poema que começa pelas linhas famosas:

Já do batel da vida
Sinto tomar-me o leme a mão da morte...

continua assim:

A morte é dura,
Porém longe da Pátria é dupla a morte.
... Não é perder o mundo
O que me azeda os pálidos instantes
Que canto por gemidos. Meu tormento,
Minha dor, é morrer longe da Pátria...

O desterro, o lugar de exílio... era a Bahia! onde tinha ele ido, do Rio, estudar Medicina. É claro que sob a expressão “Pátria” toam os grandes motivos “mãe, irmãos e amigos”, mas apesar de assunto, como já disse, não assumir a meus olhos maior importância, a Bahia... exílio para um brasileiro!

Couto defendeu-se, limitou-se nos seus deleitosos colóquios com Afonso Arinos no sanatório suíço à nostalgia natural, à saudade das gostosuras distantes.

A todo momento no procurar o poeta sob o literato, eu me enriquecia. Colheita abundante. Acompanhando-lhe os passos vi como ele marcha lentamente, às vezes parando diante do inessencial ou do inimportante, reservando sempre suas preferências para o sutil e o delicado, fiel aos sentimentos que a tradição preconiza. O drama da inteligência na ânsia de compreender ou da ação procurando caminhos para a ambição e o desejo sob todas as suas formas contingentes, sob todas as possibilidades da nossa fraqueza, mantinham-se fora do alcance da sua alma voltada para o estável, o prescrito, o determinado.

Nem creio constituísse preocupação do homem modestíssimo, doce e honesto que celebramos, ultrapassar-se, transcender os domínios e territórios nos quais se movia tão natural e encantadoramente. O gosto de sentir-se “sofrer” o privou de impaciências dramáticas. Nenhuma PASÁRGADA luziu de longe ao seu olhar, falou-lhe de longe. A melancolia do manso crepuscular no esvair das coisas – bastava-lhe. Jamais saiu a correr, louco, como Bandeira, em busca da estrela da manhã, andou esburacando o mundo à procura do seu sentido e sua razão de ser como Drummond ou como Schmidt querendo encontrar na música da noite as inocências mortas e o caminho de novas esperanças para os destinos humanos.

Deixando de lado numerosas amenidades inofensivas cujo encanto, apesar de persistente e indubitável, não me transportava, detive-me diante de poemas em que Couto ombreia com os maiores. Quero referir-me àqueles do Cancioneiro do Ausente (1932-1943), sob o título “Segredos”, em cinco partes, depoimento íntimo autocruciante.

Nestes poemas Couto atinge, como em alguns dos sonetos tão bem classificados de “enxutos” por Manuel Bandeira, a plenitude da expressão com o mínimo de palavras, como é dever do verdadeiro poeta. E a propósito, o seu “modernismo” não o inibiu de conservar-se fiel à tradicional forma de expressão de Petrarca, seguida por Shakespeare e Camões. Segundo certos críticos da Inglaterra de hoje, o soneto constitui sinal de vitalidade poética dos povos. É nas épocas de força, de arranque, de renascença, afirmam esses entendidos, que o soneto floresce. Não endosso in totum o conceito mas o menciono com prazer.

Ribeiro Couto não teria sido do seu tempo se não tivesse adotado também o verso livre e corrido o risco de tentar fazer Poesia sem base rítmica alguma. Desde PRUFROCK e as observações que suscitou o poema de Eliot, é geral e assente o conceito de que nenhum verso é “livre” para o artista desejoso de honrar o seu ofício e cumprir o seu mister. No vers is “libre” [em francês no texto] for the man who wants to do a good job. Quanto a mim, recuso toda a condenação de um e de outro, do verso regular ou do verso livre. Agarro-me à Poesia onde a encontro, seja aprisionada numa estrofe, solta nas cavalgadas de um Whitman ou num verso bem contado e medido ou mesmo nos desenfreios hipermétricos de alguns contemporâneos.

Devo passar agora, por força do tempo de que suponho já ter abusado, ao Couto prosador. Nada poderia dizer sem parafrasear, repetir, plagiar mesmo o que disseram tantos sobre o contista, autor de Baianinha e outras Mulheres, d’O Crime do Estudante Batista, do Largo da Matriz e sobre o romancista de Cabocla. Do que disseram tantos julgadores competentes não acho como me afastar, tão condicente com a opinião deles é a minha. Notarei apenas que no poeta o que primeiro se vê, o que eu vi, apesar da sua originalidade, são as influências. Nos contos e em Cabocla o mesmo não ocorre. Um crítico observou: “que, seguindo a tradição de Machado, de Lima Barreto, talvez ele se aproxime mais de Katherine Mansfield”. Não contestarei. Há parecenças mas tão submergidas pelas dessemelhanças que não vale a pena ao meu conceito demora-mo-nos sobre elas. Quanto a Machado de Assis, que autor de contos existiu ou pôde existir no Brasil que não o lesse ou não aprendesse com ele não só a escrever contos, como a escrever tout court?

Couto leu e aprendeu a escrever contos lendo Machado mas compreendeu que entre os dons do autor da “Missa do Galo” um se destaca: a inimitabilidade. Não tentou imitá-lo. Nem precisava. Tinha muito de próprio, de seu. Obra-prima literária é aquela que se relê, que se procura por uma compulsão inafastável de espírito empenhado em satisfazer-se, como o sedento procura o refrigério, um copo de água, uma bebida.

Quantas vezes já li “O Baiano”, prisioneiro de Sapucaí! Nesse trabalho temos um documento impressionante de psicologia brasileira. O prisioneiro foi trazido para a praça para ser linchado:

– Tira uma lasca desse assassino!
– Cachorro
– Como é que tu te chamas, baiano barato?
– Fala, negro

Queriam que o baiano desse informações sobre as tropas legalistas a que pertencia. O baiano sorria sem arrogância, mas sem o menor temor. Arrancaram-lhe o saco de aniagem que lhe rodeava a cintura.

– Fala, diabo! Nós te perdoamos a vida!

Afinal o baiano falou:

– Eu só sinto... – fez uma pausa longa. – Eu só sinto que me façam passar por esta vergonha. Matar, podem matar. Mas me matem vestido e não com as minhas partes de fora.

Aí, com essas palavras proferidas com a tristeza de dignidade moral ofendida em face do martírio, Ribeiro Couto, acaso sem querer, ao meu ver querendo, fotografou certo aspecto da alma do Brasil. O povo, os maiorais da aglomeração, o juiz de Direito, o coronel chefe político, o homem da venda que viera correndo para tomar parte na execução, todos se juntaram no estupendo virar da onda emocional brasileira.

“– Baiano, antes de morrer, me dá um abraço!” gritou um dos que, segundos antes, queria comer vivo o prisioneiro. Este, de mãos amarradas, oscilou ao receber os abraços; ia caindo, foi amparado. No clarão de beleza irrompente da conduta do homem, iluminaram-se os corações e a generosidade brasileira assumiu a direção dos acontecimentos. Ninguém pensou mais no objeto prático da reunião – arrancar do prisioneiro informações de natureza estratégica ou tática. Brasileiramente, foi mandada às favas toda preocupação de utilidade. O que era preciso, o que prevaleceu daí por diante foi a necessidade de que cada um dos linchadores se achou possuído de honrar a coragem, a nobreza do soldado apreendido. O que urgia era festejar o caboclo decente.

“– O mulato é homem até na hora da morte!”

O chefe político aderiu imediatamente ao sentimento popular: “– Venha comigo, baiano. Vamos ali em casa buscar umas roupas”. Um dos presentes, para impedir que as moças, às janelas, pudessem vê-lo naquele escandaloso estado, em completa nudez, envolveu-lhe o torso no seu paletó. Ao lado do coronel, enquanto em torno o povo respeitoso fazia roda, o baiano atravessou a praça. De repente, do fundo do horizonte rebentou o grito repetido: “Aleguá! guá! guá!” Eram os rapazes do esporte náutico que vinham saudar o prisioneiro. Na venda do Maximiano, reconfortando-se com um gole de cachaça, o baiano era alvo da admiração. A cada instante chegavam meninos com presentes que mandavam as famílias: lata de goiabada, sequilhos, fumo de rolo. O prisioneiro agradecia, canhestro. Ao sorrir mostrava através da barba hirsuta de mulato uns dentes brancos, pontudos, de uma ferocidade pacífica. A espaços, escutava-se trazido pelo vento o eco de um tiro perdido, vago refrão da guerra civil. Quão longe estamos de Katherine Mansfield!

O Crime do Estudante Batista, como Cabocla, fornece-nos ainda exemplo do poder que adquiriu Ribeiro Couto de conter-se, para, dizendo o menos, dizer o mais. Não quero deixar de mencionar as crônicas do Barro do Município nem os Ensaios como o de publicação recente sobre Portugal.

Quanto ao Cabocla, tenho uma palavra para a definir: frescor. Nenhuma outra produção literária no Brasil me dá a sensação de baunilha, de resedá, de bogari, de malmequer, de manacá, de beira de riacho, do que este episódio romanesco de feliz desenlace, idílio de um Lamartine sem solenidade com uma graziela da roça, mais rápida e sabida do que a italiana. Obra-prima sem dúvida. E que réplica jovial do prosador desenvolto, ao elegíaco, ao chorador das Confidências!

Couto surpreendente e vário! O adolescente de olhos garços, passo leve e riso à flor dos lábios, promotor de localidadezinhas do interior, presença alerta no Largo da Matriz, o noivo de D. Menina, que, sua esposa, continuou sempre a ser a menina dos seus olhos, o visitante dos terraços de cura das montanhas suíças, o auxiliar de Consulado em Marselha, o diplomata, o poeta, criador, nos seus contos e no seu romance, de gente logo incorporada ao nosso viver nacional, de Baianinha e Zuca, aportes novos à galeria de meiguices brasileiras, nosso Couto, profuso, sempre o mesmo, porém essencialmente, humanamente, único mocinho magro ou corpulento sexagenário, repórter pobre ou excelência respeitada, para as afeições que teve o dom de inspirar e que em nenhum instante deixaram de o acompanhar, de estar a seu lado, de o envolver..., companheiros de escola primária, de molecadas nos cais de Santos, de noitadas na Lapa, de tertúlias de cabarés, de cidadezinhas de Minas, os seus colegas escritores, testemunhas dos seu começos, êmulos da sua glória alvorecente, continuaram com ele, vivendo na sua ausência as horas que ele presente tanto animara, e nas quais se tornara o ponto de convergência de tantos brasileiros. Através dos escritos que lhe dedicaram os amigos, poderíamos segui-lo passo a passo. O que não farei, pois devo terminar.

Senhores acadêmicos,

Na energia física e no vigor moral do homem cuja obra acabamos de percorrer, sobrevivente na infância à orfandade e à pobreza, na mocidade à moléstia, no triunfante embaixador seguro dos seus meios de ação diplomática, angariador de simpatias para a sua Pátria, no herói que perdeu a vista e não quis que sofrêssemos por isso; nos seus versos, na sua Prosa, no seu modo de ser e de viver, no que Ribeiro Couto escreveu e no que ele foi pessoalmente, eu vejo, vê-se um Brasil tão bonito, tão enternecedor dos nossos corações, tão Brasil de nossos avós, o d’ “A Moça da Estaçãozinha Pobre”, d’ “O Baiano”, prisioneiro de Sapucaí, de São Paulo iniciador, de D. Didi junto à máquina de costura ou na soleira da porta da casinha de Santos recomendando juízo e cuidado a Cabiúna que saía para a escola, do Brasil doçura de colmeias, de canaviais em flor, de “Nossa Mãe Bahia”, de “Recife – Cidade Menina”, de Bilu, de Das Dores e das outras meninas namoradas, de Nossa Senhora Aparecida, dos “Trens que Vêm de Bauru”, dos cafezais rutilantes de riqueza, Brasil bom, Brasil simples, Brasil do nosso orgulho, Brasil dos homens de bem, para os quais a palavra DECÊNCIA e a palavra HONRADEZ tinham sentido, Brasil como era, como devia ser e que cremos será, Brasil dos nossos maiores e dos nossos melhores, Brasil da FEB, dos mortos de Pistóia, Brasil, Pátria da paciência, da boa-fé e das esperanças sempre a ressuscitar e a reflorescer das maiores tristezas e decepções, Brasil em que os meninos pobres podem tornar-se embaixadores e não precisam tornar-se embaixadores para entrar nesta Casa e sentar-se nas Cadeiras de Machado de Assis e de Joaquim Nabuco, Brasil do nosso amor, Brasil de Ribeiro Couto...

Senhores acadêmicos,

Base, motivo, assunto dominante em quase tudo o que escrevi, pensei ou falei, assunto de solilóquio e assunto de diálogo, esse Brasil de Ribeiro Couto e meu, a nos unir, a nos atirar um para o outro, oh, como nos enchia as horas em nossos encontros no estrangeiro! Pertencendo ambos à categoria de indivíduos que não se separam da Pátria quando ausentes dela e, ao contrário, se sentem mais junto, mais abraçados com ela quanto mais longe se acham, viver fora do Brasil para nós era viver pensando mais no Brasil... acontecia-nos, a mim, diante de uma catedral, estar vendo projetado na fachada grandiosa o humilde rosto da igrejinha do Sergipe da minha infância e a Couto, numa praça de Florença, sentir-se no Largo da Matriz dos seus contos, das pequenas cidades de Minas. Esse Brasil de Cabiúna, filho de D. Didi, e do discípulo de Sá Limpa na escola primária de Itaporanga, filho de Donana e de Seu Melk, oh, o que não se tornava ele no vidro de aumento, na macroestesia da nossa evocação! Falando do Brasil, Couto redobrava de eloqüência; tornava-se, disse-lhe eu uma vez rivalizando com ele em ênfase elogiosa – não um João Crisóstomo, mas várias “bocas de ouro” abertas num roseiral de mel capaz de parar os colibris e fazer lutarem entre si as abelhas em torno das corolas. A espaços, calavase, tomava ares de mistagogo... parecia orar procurando interpretar mistérios iniciáticos. Irrompia dos silêncios com uma garotada das que se refere o seu companheiro Alberto Deodato, sergipano típico pelo talento, pela verve e pela capacidade de amar. Leitor fiel e carinhoso, dava-se ao prazer de salientar em cartas que escrevia naquela letra tão bela o que lhe agradava num escrito ou noutro. Guardava na memória trechos que inesperadamente nos recitava. Durante algum tempo muitos dos nossos diálogos em Paris realizavam-se no adro de Notre-Dame, à noite, ao sairmos de um restaurante do cais, ali perto, onde jantávamos. A catedral onde Victor Hugo jovem, em plena exasperação romântica seguindo as idéias de seu tempo sobre a Idade Média pôs o seu drama lúgubre... era para mim a “mocinha”, a meninota, a garota mais faceira de Paris, na primavera coqueteando com o sol menino de maio, no verão envolta no seu véu de andorinhas. Não sei como, efeito de uma frase lida havia muito, não me lembro onde, “Notre-Dame é ainda o que há de mais novo em Paris”, daquela maneira a qualificara eu a brasileiro amigo que visitava a França pela primeira vez... “Já foi ver a ‘mocinha’?... Não demore! Vá quanto antes olhar para aquela belezinha de Nosso Senhor”, disse eu, pensando naquela música presa na pedra e onde vibra e respira o maior poder humano, o do artista criador. Adotando a qualificação que lhe transmitiram, Couto passou a mandar-me lembranças para a mocinha, para a moçoila, a ragazza, se escrevia da Itália. Naquele cenário denso que os séculos povoam bafejado pelos sopros do gênio, ao clarão das lâmpadas modernas, servidores da beleza eterna e dela respeitosas, debatíamos sem parar, Brasil, Brasil... Nossa gesticulação tropical e o ressôo às vezes estentóreo do vozear de Couto faziam voltar-se um e outro transeunte. Falávamos do governo que tínhamos, do que deveríamos ter, dos programas a iniciar ou iniciados e não seguidos, dos avanços logo frustrados, arremessos e recuos, dos “problemas fundamentais do Estado”, e das “necessidades urgentes” que em vão Tavares Bastos bradara nos ouvidos moucos da Monarquia e que em publicação de 1910, sessenta anos depois, dizia eu que continuavam “necessidades urgentes”. Dos motivos de tristeza saltávamos às razões de ufania. Exaltávamos a “unidade nacional”, preservada na sua esplendidez – povo, língua, religião. Nada puderam contra ela!... contra a obra do colonizador branco e do trabalhador negro, contra a obra dos mulatos, padres, doutores, coronéis, que deles provieram, produtos da nossa feliz miscigenação, mulatos “instáveis” uns, sem caráter, sem capacidade de esforço, conformes à psicologia e generalizações de etnólogos; mas também mulatos, e em grande número, sem dúvida por obra e imposição do meio, mulatos sólidos, graves, dignos, alguns rígidos até como suecos expoentes de virtudes morais, expressões altas de humanidade, desmentidos concludentes das teorias beócias a respeito de superioridade ou inferioridade de raças. Unidade nacional, obra da Igreja, do Exército e da Marinha, a que se juntou a da Aeronáutica, elos fixa- dores, núcleos, bases, peças orgânicas da Nação. Nenhuma força erosiva pôde corroer ou carcomer esse bloco de matéria infriável e infrangível, porosa contudo a todos os fluidos e osmoses. Seria um não acabar nunca prosseguir recordando o que nós dizíamos Couto e eu nestes colóquios imensos. Seu espírito e gosto de louvar chamavam-me à lembrança passagens de livros meus. “Entre as reformas a serem empreendidas quando o Brasil começar a organizar-se a criar a sua técnica, em concorrência com a formação científica, o pensamento puro, a filosofia que o exprime, as Letras que o valorizam, as artes que o ilustram...” “Povoar, mantendo a unidade material do País, isto é, povoar no amplo sentido da palavra, pela utilização econômica do braço, pela utilização positiva do espírito, o que vem a ser em síntese utilização política do homem... tudo animado da consciência da Pátria, da compreensão da nossa formação particular, pela aderência concreta ao que é nosso para resolver o que é nosso por um modo nosso, a fim de sermos úteis à humanidade, como Brasil...

Senhores acadêmicos,

Os homens de minha geração cresceram com a palavra Nordeste nos ouvidos e nos lábios. Desde Pernambuco, em 1908, falávamos do Ceará, das secas e das suas obras, em termos de ansiedade e imediação. Cumpria-nos resolver o problema do Nordeste, objeto de palpites dos governos, Epitácio inaugurando, outros esquecendo, problema eterno que agora ultrapassando as nossas fronteiras ecoa pelo mundo oferecendo ao julgamento áspero do estrangeiro ocasião para nos desservir no conceito e respeito dos povos.

Senhores acadêmicos,

Nesta hora de tanta solenidade, um pensamento me vem, que me sorri, que me faz sorrir. Figuro-me lá na eternidade ao lado de Ribeiro Couto prosseguindo nossa convivência, recordando as horas vividas juntos, nossas impaciências, nossas esperanças. Que festa (imagino) não será a nossa, lá onde estivermos, quando Couto e eu ao descermos ou ao elevarmos os olhos para o Brasil do nosso amor pudermos nele ver o Brasil dos nossos sonhos! Que celebrações! Que momentos não viveremos de novo! Com os grandes olhos claros restituídos à plenitude da visão o poeta irá percorrendo tudo. No Nordeste, tudo verde, tudo palpitando, tudo rumoroso, fábricas, usinas por toda parte, eletricidade muita. Fome, dir-se-ia jamais houvera por ali tal a abundância, a fartura que uma política de competentes soubera propulsar na aridez do deserto, transformando aquela Palestina dos nossos desenganos em Israel para nosso maravilhamento. Não haverá paus-de-arara ou candangos transportados como mercadorias pelas estradas ermas do planalto. Nem haverá estradas ermas. Aldeias, mesmo cidades, juncarão de todos os lados aqueles desertos hoje confrangedores de coração. “Couto” – gritar-lhe-ei – “não há um só caboclinho do Amazonas ou um peão do Rio Grande que não saiba ler! Escola não falta, uma só, no sertão! Nas universidades há mais estudantes de Física, de Química, de Matemáticas do que de todas as outras matérias! Está vendo aquele edifício enorme na vila da comarca de que você foi promotor?“ Couto estará vendo. “É um centro de pesquisas no qual inúmeros brasileiros se aplicam a estudar o comportamento dos prótons e nêutrons em vez de passar o tempo a estudar na esquina o comportamento dos mortais.” Iremos de estusiasmo em entusiasmo; pararemos às vezes diante de realidades como esta: nas Bolsas e Mercados do mundo a moeda brasileira possuirá cotação internacional como o dólar, a libra esterlina, o franco, o florim, o marco alemão, a coroa sueca, o peso mexicano. Couto pulará, não cabendo em si.

Assim me figuro eu, me represento ao lado de Cabiúna lá no Além, nos anos que hão de vir. O poeta, que me ouvirá querendo sempre interromperme (quem pôde nunca falar com Ribeiro Couto sem ser interrompido?), tomará afinal a palavra. Falará! Falará! A palavra Brasil ressoará, ressoará na sua voz pelo infinito.

Eu o ouvirei inebriado na felicidade de descobrir no Brasil que ele deixara em luta com os problemas um Brasil de problemas resolvidos... economia organizada, riqueza bem distribuída, saúde, ordem interna assegurada e aceita na satisfação popular, justiça social efetiva, pobres tornando-se ricos, ricos contribuindo para a prosperidade geral, tudo certo, tudo equilibrado, num grande ritmo, dentro da grande luz. Oh, que abraço não será então o nosso, o do menino de Santos e do menino de Itaporanga, naquela exultação, os olhos cheios das imagens e visões que povoaram a nossa vida!

29/8/1964