O Estado de São Paulo (04.11.2003)
Rio de Janeiro - Morreu hoje a escritora Rachel de Queiroz, aos 92 anos, vítima de enfarte, em seu apartamento no Leblon, zona sul do Rio. Segundo sua irmã, Maria Luiza, Rachel passou bem o dia de ontem e amanheceu morta. "Foi melhor assim, porque ela não sofreu. Ontem mesmo perguntei como ela estava, e ela respondeu que só não estava melhor porque não estava no Ceará".
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, Ceará, em 17 de novembro de 1910 e teve seu primeiro livro, O Quinze, publicado em agosto 1930. Escrito durante uma suspeita de tuberculose e publicado com a ajuda financeira do pai, o livro causou grande impacto nos círculos literários. É uma das obras inaugurais do romance regionalista brasileiro. Em entrevista ao JT em 1987, lembrou que o poeta Ascenso Ferreira, querendo elogiar o livro disse: "É um livro de macho". E ela ficou brava. Naquele tempo, "a literatura feminina era feita por senhoras que escreviam histórias comoventes ou poesias apaixonadas". Apesar de se recusar a revelar seus autores nacionais preferidos, Rachel disse que sua heroína predileta era Emília (personagem de Monteiro Lobato), por ser a mais revolucionária e guerrilheira.
Rachel escreveu romances, crônicas, peças de teatro e traduziu mais de 50 títulos, entre os quais, obras de Dostoiévski, que adorava, Balzac, Faulkner e Conrad. Entre suas obras mais conhecidas estão: Memorial de Maria Moura (adaptado em minissérie pela Rede Globo), Três Marias, Dôra, Doralina, O Galo de Ouro, O Homem e o Tempo, Andira, A Casa do Morro Branco, Falso Mar, Falso Mundo, João Miguel, Xerimbabo e, entre outras, Memórias de Menina, lançado em 2003. "Encontro má disposição de frases, subliteratura; sou uma crítica muito feroz do meu trabalho", dizia.
Com O Quinze Rachel alcançou lugar de destaque na literatura brasileira. Acabou tornando-se a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1977, ocupando a cadeira de número 5.
Foi também a primeira cronista da imprensa brasileira e escreveu durante 30 anos na revista O Cruzeiro. Ao retomar esta atividade em 1988 nas páginas do Caderno 2, no Estado, disse ao repórter Gilson Rebello "Me considero mais jornalista do que escritora, afinal escrevo para jornais e revistas há 61 anos". E contou que ao receber o convite de Julio de Mesquita Neto, pediu para escrever não no suplemento de Cultura, mas no Caderno 2 "porque tem uma linguagem atual e dinâmica" e explicou que sua relação com o jornal e com São Paulo "datam de 1934, quando morava no mesmo prédio de Lívio Xavier, que era cronista do jornal. Na época, todos nós éramos trotskistas e vivi intensamente a vida social e política da cidade".
Sua relação com a política foi marcada pela ambigüidade. Ao mesmo tempo em que chegou a ser membro do Partido Comunista em 30, mais tarde apoiou o movimento militar de 64. Depois, preferiu se abster de tecer comentários sobre política e disse preferir ser uma "observadora apaixonada" pelo tema.
Seu corpo está sendo velado na ABL. O enterro, contudo, não será no mausoléu da casa, mas sim, no cemitério São João Baptista, junto ao túmulo do marido, o médico Oyama de Macedo, morto em 1982.
Repercussão de sua morte
Carlos Heitor Cony, escritor: um dos primeiros a chegar ao velório de Rachel de Queiroz, no Salão dos Poetas Românticos da ABL, definiu a escritora como mulher extraordinária e disse que o livro O Quinze é um dos dez mais importantes da literatura brasileira. “A literatura regional nasceu com Rachel de Queiroz sozinha, sem padrinhos, no sertão do Ceará”, disse.
João Ubaldo Ribeiro, escritor: “Tenho pouco a falar nessas horas. Só se pode lamentar. Ela já estava idosa, fraquinha, doente há algum tempo. Era uma figura de legada importância, não só como escritor (escritor não tem gênero), mas como mulher. Foi uma mulher adiante do seu tempo. Ainda mocinha escreveu um romance considerado um clássico, O Quinze, e a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras.Vai fazer falta.”
Ciro Gomes, ministro da Integração Nacional: Perdi uma grande amiga.Aprendi a admirá-la a distância, ainda na adolescência, quando, nos bancos escolares de Sobral, li O Quinze. Alguns anos depois, conheci-a pessoalmente, e cresceu minha admiração. Mais tarde, nossa relação de amizade consolidou-se. Rachel foi uma escritora fantástica, uma nordestina cosmopolita e uma mente política arguta que quebrou tabus, inovou, pensou e escreveu sempre à frente do seu tempo.
Luis Fernando Verissimo, escritor: “ Sinto muito. Conheci mais a Rachel cronista e era excelente, uma precurssora.”
Ivan Junqueira,poeta e secretário-geral da ABL: “Muita coisa convergia no destino dessa mulher. Primeiro, foi a verdadeira iniciadora do romance no Nordeste, muito mais do que os outros escritores da geração dela. Segundo, teve uma presença na vida pública intelectual muito intensa. Terceiro, é a primeira mulher na academia, rompendo com a tradição que vinha desde a criação da Casa de Machado de Assis. Foi uma figura marcante, a quem conheci pouco. Mas era de uma simpatia irradiante”.
Ziraldo, cartunista:“Comecei minha vida sob a sombra dela, em O Cruzeiro. Quando lancei a revistinha do Pererê, ela fazia a última página do Cruzeiro. Um dia, fui ler a crônica dela e lá estava uma saudação ao surgimento da Revista do Pererê. Foi meu primeiro momento de glória. Tinha imenso carinho por ela. Ilustrei Cafuti e Pena de Prata (literatura infantil) e sempre prometi dar a ela os originais. Quando Rachel caiu da cadeira, e se machucou, telefonei e ela me cobrou os originais. Fiquei devendo. Agora vou levar para Maria Luiza.
Ignácio de Loyola Brandão, escritor: Sigo Rachel desde a adolescência, quando ela escrevia crônicas para o Cruzeiro. E das crônicas passei a ler os livros, até perceber que ela era uma das fundadoras da literatura moderna. Não podia imaginar que um dia estaria junto dela no Caderno 2. Eu na sexta e ela no sábado. Ficava ansioso para ler seu texto, sempre lúcido e enxuto. Com certeza, uma parte do Loyola cronista devo à Rachel cronista. Nos últimos tempos comecei a sentir sua falta e soube que ela não estava em férias. Essa falta agora vai se eternizar.”
Marta Suplicy, prefeita de São Paulo: “Sertaneja das letras, a pioneira Rachel de Queiroz deixa de herança aos brasileiros a arte que lapidou as inquietações femininas, escancarou para o mundo as entranhas do País, seus costumes e sua gente. O passar dos anos não lhe tirou o humor nem deixou sua obra ultrapassada. Ao contrário, consolidou seu talento a cada geração de leitores por todos os tempos.”
José Sarney, o presidente do Senado disse que ela marcou a história da literatura brasileira como uma figura de vanguarda, não só por renovar a ficção brasileira, com O Quinze, mas também por ter sido a primeira mulher a ingressar na ABL. A Rachel, sendo mulher, foi uma figura que renovou o romance. Politicamente, foi uma figura de denúncia. Era uma mulher muito forte”, afirmou Sarney. Depois de destacar a importância da escritora cearense na literatura, ele falou sobre a amizade entre os dois: “Pessoalmente, sentia por ela uma amizade e um carinho muito grandes. Rachel era uma figura muito doce”.
Alberto Costa e Silva, escritor e presidente da ABL: “Rachel foi não apenas uma grande escritora como uma extraordinária mulher. Foi uma mulher forte, que teve influência excepcional sobre a vida brasileira durante o século 20. A minha geração lia Rachel de Queiroz pelo menos duas vezes por semana, no Diário de Notícia e no Cruzeiro. Com ela aprendemos a ver o Brasil e o mundo. Foi uma contestatária desde os anos estudantis, mas de forma independente. Pensava a partir de sua própria experiência pessoal ou próprios valores. Não sei que é maior, a extraordinária escritora ou a excepcional mulher que ela foi".
06/06/2006 - Atualizada em 05/06/2006