Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > Saudação do acadêmico Alberto da Costa e Silva, por ocasião da entrega do prêmio Senador José Ermírio de Moraes a Luiz Felipe de Alencastro

Saudação do acadêmico Alberto da Costa e Silva, por ocasião da entrega do prêmio Senador José Ermírio de Moraes a Luiz Felipe de Alencastro

 

Acadêmico Alberto da Costa e Silva - "O Prêmio Senador José Ermírio de Morais foi instituído em 1994, para ser outorgado anualmente a autor brasileiro, por obra de qualquer gênero que traga efetiva contribuição à cultura brasileira e tenha sido editada em português, por editora nacional, no ano anterior. Desde 1995, concedeu-se o Prêmio a Roberto Campos, por Lanterna na popa, a Evaldo Cabral de Mello, por A fronda dos mazombos, a Wilson Martins, por A palavra escrita, a Décio de Almeida Prado, por Seres, coisas, lugares, a Cícero e Laura Sandroni, por Athayde, o século de um liberal, e a Gofredo Telles Júnior, por A folha dobrada. São livros inteiramente distintos uns dos outros. Como é deles diferente este, agora premiado, de Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes, que tem por subtítulo Formação do Brasil na Atlântico Sul, séculos XVI e XVII.

Não deveria faltar quem perguntasse por que a Academia Brasileira de Letras o singularizou, entre tantas obras de alto valor publicadas em 2000. E eu responderia que por ser, em primeiro lugar, um livro instigante, provocador, destes que não admitem a leitura descansada, um livro que convida, página sim, página não, ao debate e à controvérsia. Nós o lemos a polemizar com ele e conosco mesmo, com as concepções e dúvidas que tínhamos e temos sobre o passado brasileiro. Não que o livro se estruture de forma polêmica. Na sua narração serena, Luiz Felipe de Alencastro nos propõe, porém, a todo instante, novos modos de perceber a história do Brasil. O livro é, assim, estimulante e desafiador, porque novo em suas concepções e em seu desenho.

Luiz Felipe de Alencastro reclama nossos cuidados para o estarem na África muitos dos começos de enredos da história brasileira e convoca a nossa atenção para o Atlântico. Como já o tinham feito, pioneiramente Nina Rodrigues, para a Bahia, e vários outros, em nossos dias, como João José Reis, com Rebelião escrava no Brasil, John Thornton, com Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, Manolo Florentino, com Costa negras, Joseph C. Miller, com Way of Death, Robert Slenes, com Na senzala, uma flor, e Roquinaldo Ferreira, com o seu livro ainda inédito, Dos sertões ao Atlântico, e nos ensaios que formam o volume Slavery and the Rise of the Atlantic System, organizado por Barbara L. Solow, entre os quais se inclui um do próprio Luiz Felipe de Alencastro, "The apprenticeship of colonization", no qual se prenuncia O trato dos viventes. Em todos e cada um desses trabalhos aponta-se ser impossível um entendimento pleno da história do Brasil e de tantos outros países americanos, assim como da história dos países da África Atlântica, entre os séculos XVII e XIX, sem se conhecer o que se passava, em cada momento, em cada uma das duas margens daquilo a que chamei o grande rio Atlântico, e das conexões e, mais do que as conexões, dos enlaces que entre elas se processavam.

A primeira grande novidade de O trato dos viventes é a de não conceber o Mar Oceano apenas como espaço vinculador, mas o de englobá-lo, juntamente com os territórios portugueses em Angola e aquilo que denomina de "miolo negreiro do Brasil" - de Pernambuco para o sul - numa única área político-econômica, tendo por espinha dorsal o comércio oceânico e por portos principais o Rio de Janeiro e Luanda. O sistema de exploração colonial português seria assim, no Atlântico Sul, unificado, compreendendo, nos dois lados do mar, como se entre eles não houvesse interrupção, de um lado, o de cá, enclaves de produção - os engenhos de açúcar, as minas de ouro, os rebanhos bovinos - fundada no trabalho escravo e, no outro, o de lá, áreas nas quais se produzia e reproduzia a mão-de-obra servil. As decisões políticas da Coroa seriam tomadas, consciente e, às vezes, inconscientemente, a partir da convicção de que sem Angola - isto é, sem o escravo negro - não seria possível manejar o Brasil e sem o Brasil não havia razão para Angola. Não podemos nós, por isso, entender o que se passava no Brasil, sem saber como ia Angola, e vice-versa, as histórias dos dois países compondo, durante três séculos, uma só história.

Decorre dessa novidade uma outra - e seminal: a de que o tráfico negreiro conduziu a economia brasileira, pois, por meio dele, se obtiveram não só o trabalho, mas também os capitais que permitiram a exploração da terra. Era o acesso ao negro o que, em última análise, comandava as decisões dos grandes senhores, mazombos ou reinóis, do Brasil.

Dessa novidade deflui ainda outra: a de que o Brasil se formou fora do Brasil, no Atlântico, costurado em ponto miúdo a Angola. Ou ainda, corolário natural, a de que Angola, como hoje conhecemos, se formou fora de Angola, no Atlântico, costurada em ponto miúdo ao Brasil. Antônio de Oliveira Cadornega, na sua clássica História geral das guerras angolanas, escrita no fim do século XVII, já sugeria isso em relação a Angola, porém estabelecendo uma espécie de dependência do Brasil. Não lhe poderia passar despercebido, agudíssimo como era, a seqüência de governadores provenientes do Brasil ou com experiência brasileira, que se sucederam no comando do enclave português, após terem vindo do Brasil as tropas que expulsaram os holandeses de Luanda - Salvador Correia de Sá e Benevides, Rodrigo de Miranda Henriques, Luís Martins de Sousa Chichorro, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros - nem atribuir isso a um simples jogo do acaso. A essa dependência não faltaria quem, na metade do Novecentos, atribuísse, como Ralph Delgado, na sua História de Angola, o atraso da colônia, na qual a Coroa na qual só veria armazéns de depósito de escravos e portos de embarque de escravaria para o Brasil.

O enfoque de Luiz Felipe de Alencastro é, porém, diferente, e as conclusões a que chega, como já se viu, também. Esta nova visão já recomendaria o seu livro como de leitura indispensável. Mas ele não pára aí, uma vez que subjaz no seu texto, a compreensão de que esse espaço unificado do Atlântico Sul fazia parte de um outro, maior, o do império talássico português, e de que por ele passava o grande arco que ia de Lisboa ao Japão, com sua troca de mercadorias, de gentes e de costumes. Era como parte desse império que se reconhecia o português ou o seu descendente, o súdito da Coroa, fosse branco, mestiço, canarim e até, em alguns casos, negro. Ele sabia que tanto podia servir à Coroa em Salvador, na Bahia, quanto em Goa, tanto no Maranhão quanto nos Rios de Sena, tanto na ilha de Moçambique quanto em Benguela, Cacheu, São Tomé, Praia, Valença do Minho, Açores, Macau ou Lisboa. O livro nos incita, assim, a perseguir uma história que não fique centrada na história da Metrópole lusitana, ou na história do Brasil, ou na história da Guiné, ou na história de Angola, ou na história do Estado da Índia, mas seja a história do império, dentro da qual poderemos melhor analisar e compreender os itinerários de Salvador Correia de Sá e Benevides - e é admirável e convincente a interpretação que deste e de sua família faz Alencastro - e de Francisco José Lacerda e Almeida, e dos mamelucos brasileiros que já viviam no reino do Congo nos meados do século XVI, e dos ameríndios que lutaram nas tropas holandesas e portuguesas em Angola, cerca de cem anos mais tarde.

Apesar das convocações de Gilberto Freyre - especialmente em Sobrados e mocambos e em Aventura e rotina - ainda está por se fazer o estudo do influxo da Índia sobre o Brasil. E da China. E do golfo Arábico. E de todas aquelas partes do mundo onde puseram fortes, feitorias, tabancas e paliçadas os portugueses. Mais de uma vez, no correr da leitura de O trato dos viventes, relembrei intuições gilbertianas. Pois Luiz Felipe de Alencastro não nos deixa esquecer Moçambique - e não apenas como fornecedor suplementar de escravaria e como traço-de-união entre o Brasil e Goa - e procura arrastá-lo para o Atlântico. Ao fazê-lo, instiga-nos a pensar que, se as águas do Cuanza, do Zaire, do Níger, do Ogun e do Gâmbia entram pelos rios brasileiros, o Índico chega às nossas praias.

Como se o grande mural não lhe bastasse, Luiz Felipe de Alencastro nele inseriu uma seqüência de pequenos quadros, de micro-ensaios com informações, leituras, interpretações e idéias inovadoras. Os parágrafos que dedicou ao papel da farinha de mandioca no comércio transatlântico, por exemplo, cheiram a tinta nova. Já aqueles em que analisou o tráfico negreiro para Buenos Aires, como acesso à prata do Peru, e os que consagrou aos búzios baianos dão matéria para um largo debate. Pois este é um livro que não deixa sossegar o leitor e desata a sua imaginação. E tanto é assim, que lhe cobramos mais. E cobramos mais a nós mesmos, ao terminar a sua última página. E cobramos a Luiz Felipe de Alencastro, que tão merecidamente recebe este Prêmio Senador José Ermírio de Morais, que venha logo o livro que a este dará prosseguimento."

Discurso proferido em 16.08.2001, na Academia Brasileira de Letras, em resposta à saudação do acadêmico Alberto da Costa e Silva, por ocasião da entrega do prêmio Senador José Ermírio de Moraes ao livro, O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, Companhia das Letras, São Paulo, 2000.

 

A narrativa histórica

Luiz Felipe de Alencastro - "Refletindo sobre a teoria e a prática da disciplina histórica, Michel de Certeau, grande historiador, jesuíta e amigo do Brasil interrogava-se: "Por onde passa a separação entra a História, a Ciência e a Ficção?" (Michel DE CERTEAU, "L'Histoire, science et fiction", Le Genre Humain, nn. 7/8, Paris, 1983).

Na realidade, os historiadores devem começar por admitir que a questão essencial da narrativa histórica permanece envolta numa grande subjetividade. Tal subjetividade alimenta os debates existentes entre as diferentes escolas historiográficas, de um lado, e as querelas entre historiadores e especialistas da literatura, de outro lado.

Como observou o historiador francês François Hartog, a escola dos " Annales " praticamente renunciou à reflexão sobre a narrativa histórica, sem nunca ter se interrogado sobre a matéria (F. HARTOG, "L'art du récit historique", Autrement - 'Passés recomposés', n. 150-1, janvier 1995). Num registro similar, o ensaísta americano Hayden White notou que os historiadores diferenciavam-se dos outros especialistas não literários pelo fato de que a maioria dentre eles escolhe o modo narrativo para apresentar suas pesquisas. Para White, os historiadores não comprendem as implicações dessa escolha, que marca a especificidade de sua disciplina no campo das Ciências Humanas : "muitos historiadores parecem incapazes de analisar a dimensão discursiva de seus escritos e, mais ainda, recusam a idéia de que tal dimensão possa existir " (Hayden WHITE, "Response to Arthur Marwick", Journal of Contemporary History, v. 30, n. 2, 1995).

Tentarei abordar estas questões a partir do tema do meu livro, o Brasil no Atlântico Sul. Juntando um verso de Fernando Pessoa, " minha língua é minha pátria ", e o título de um livro do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie, " O território do historiador ", penso que o território do historiador brasileiro é o espaço intercontinental abrangido pela documentação portuguesa da Época Moderna, pela expansão ultramarina lusitana. Nessa ordem de idéias, como procurei demonstrar em meu livro, o pesquisador brasileiro perde uma parte da história do Brasil se desconsiderar os eventos desenrolando-se em Angola. Mas, ele também ficará alheio à percepção de nossa sociedade se desconhecer a historiografia e os documentos sobre o "Estado da India", imensa constelação de feitorias ligando Moçambique a Macau através da capital de Goa ; se não tiver lido, por exemplo, "O Soldado Prático" (1593-1610), de Diogo do Couto, o qual, sem nunca se referir ao Brasil, apresenta-se, entretanto, como um livro fundamental para a compreensão da história luso-brasileira, na sua análise da administração colonial portuguesa e das ambições dos expatriados no ultramar.

Durante boa parte do século XX, os livros de Charles R. Boxer constituíram o ponto de encontro entre os impérios lusitanos do Oriente e do Ocidente, permitindo aos historiadores brasileiros de seguir os debates e as pesquisas sobre os dois impérios efetuadas por autores de várias nacionalidades. Depois disso, as coisas evoluíram. A obra de historiadores indianos, como Kirti Chaudhuri e Sanjay Subrahmanyan, impuseram-se no estudo da Índia portuguesa, ao mesmo tempo em que pesquisadores australianos, como Michael N. Pearson e Anthony R. Disney, aprofundaram nossos conhecimentos sobre o oceano Pacífico lusitano.

Perdendo o meridiano de Londres, tão bem indicado por Boxer durante tanto tempo, este frutuoso diálogo de historiadores australianos e indianos tem poucos ecos em Lisboa e, menos ainda, no Brasil.

No Atlântico Sul, uma cilada historiográfica enfiou os eventos no escaninho das histórias territoriais e misturou as pistas: unido durante três séculos por grandes deslocamentos de homens e de mercadorias, o passado da região afigura-se, hoje em dia, fragmentado e quase impenetrável. O procedimento que consiste apenas em justapor a história de Portugal, a história do Brasil e a história do Brasil não reconstitui a realidade da história transcontinental luso-afro-brasileira. A simples soma das partes não reconstitui o todo. É preciso reconstruir toda a problemática do Atlântico Sul para alcançar sua verdadeira dimensão.

Diante da fragmentação gerada pelas abordagens puramente nacionais e territoriais, nós ignoramos no Brasil as novas fronteiras políticas, econômicas e culturais que a historiografia recente, asiática, africana, americana e européia vem fixando ao ultramar lusitano. Os próprios historiadores portugueses, confrontados aos traumatismos da descolonização na África e às atrações da União Européia - reorientam-se cada vez mais para o estudo de seu passado continental, abandonando as pesquisas sobre o ultramar.

Desse modo - e chego agora à narrativa história propriamente dita - já é tempo que os historiadores brasileiros, assimilando os versos de Fernando Pessoa, passem a considerar sua língua como sua pátria. Já é tempo que eles explorem as imensas jazidas documentais formadas pela história da África e da Ásia portuguesas. Nas caixas de cartas e de relatórios, nos livros redigidos entre os séculos XVI e XIX há partes inteiras da história da formação do Brasil, mas também, tesouros da língua portuguesa.

A propósito, ouso afirmar que a "Peregrinação" (1614), de Fernão Mendes Pinto pode proporcionar a seus leitores brasileiros a mesma deleitação literária que Roland Barthes encontrava na obra de Proust : a exemplo de " À procura do tempo perdido ", os volumes da " Peregrinação " podem ser abertos e lidos em qualquer capítulo, pois o prazer do texto estará sempre presente, sempre renovado. A mesma coisa poderia ser dita da "História de Japam" (1584-1594), do grande missionário jesuíta Luís Fróis, obra fundamental para compreender a sociedade japonesa e os meandros de nossa língua materna.

A experiência multirracial e o hábito adquirido pela informalidade do português falado e escrito no Brasil dará aos historiadores brasileiros mais facilidade para captar o sentido e a riqueza da documentação do ultramar português. Freqüentemente escritos por luso-africanos e luso-asiáticos estabelecidos há gerações em longínquos enclaves, esses textos contém variações de sintaxe e de vocabulário que proporcionam à língua portuguesa do Brasil um pólo de referência distinto daquele da metrópole.

Acredito que o contato com a documentação, a transcrição do estilo e das sínteses elaboradas pelos funcionários, missionários e moradores desse outro ultramar, facilitarão outras narrativas, outras formas discursivas aos historiadores brasileiros. Enriquecidos por essas contribuições à escritura ultramarina, eles poderão evitar o pedantismo do estilo universitário e reduzir o fosso que separa a língua escrita e a língua falada no Brasil. Partindo para os outros territórios dos Descobrimentos, nossos pesquisadores exercitarão sua reflexão à escala mundial. A especificidade dos historiadores brasileiros com relação aos outros cientistas sociais - sua escolha do método narrativo e, talvez, sua recusa de certas limitações temáticas - encontrará assim nas próprias fontes documentais sua significação e sua razão de ser.

Fundar a originalidade da narrativa histórica na originalidade das fontes, não é esse o sonho de todo historiador-escritor?"

 

13/06/2006 - Atualizada em 12/06/2006