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Discurso de posse

Gratidão é o sentimento que me domina quando penso em Cyro dos Anjos. Apenas chegado ao Rio, com 21 anos de idade, vindo da Belo Horizonte natal, recebi de sua mão generosa um apoio que, até hoje, me permite manter o equilíbrio orçamentário. Trabalhar sob suas ordens, no primeiro emprego estável, representou para mim uma completa lição de vida.

Relevem-me principiar o elogio de meu antecessor na Academia Brasileira de Letras pela evocação de virtudes não especificamente literárias. É que, tão bom escritor como respeitável homem público, ele surgiu para mim na sua segunda natureza, embora eu, ainda na província, já tivesse lido O Amanuense Belmiro e Abdias.

Logo promovido a seu chefe de gabinete e depois chefe de divisão, na diretoria do Departamento de Assistência do antigo Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, fiz com ele rigoroso aprendizado, que não se cingiu às normas administrativas.

Cyro, que se desincumbira em Minas de vários cargos de responsabilidade, podia emprestar à autarquia sua ampla experiência e transmiti-la aos colaboradores. Diferentemente da maioria dos intelectuais que procuram no governo uma sinecura, Cyro se desdobrava em incontáveis iniciativas, responsáveis pela criação da rede médico-hospitalar dos funcionários federais.

A faina construtiva, que o levou a lançar sementes por toda parte, não dispensou os cuidados com pormenores. Posso testemunhar que não era fácil redigir um despacho ou um simples telegrama para a assinatura de Cyro. Estilista impecável, ele exigia de uma informação processual uma elegância absoluta. Os memoriais deviam valer como peça literária. E o agradecimento, ao receber um livro, reclamava com frequência diversas datilografias antes de chegar à forma definitiva.
 
Qualquer irregularidade era prontamente sanada. Cyro não tolerava nenhum desvio ou abuso financeiro. Sem alarde, afastava os suspeitos até o final da sindicância. E o inquérito ia sempre às últimas consequências, com a punição dos culpados. Fui, certa vez, interventor num caso delicado, em que Cyro evitou oneroso prejuízo para a repartição. Asseguro, ainda, que o senso de justiça e a incorruptível probidade não sufocavam o caráter humano de seus veredictos.
 
Um quarto de século mais tarde, quando me tornei o primeiro secretário municipal de Cultura de São Paulo, a convite de Olavo Egydio Setúbal, filho de Paulo Setúbal, ilustre membro desta Academia, não foram poucos os momentos em que me socorri da lembrança do tempo passado junto com Cyro para enfrentar uma dificuldade e resolver um problema.
 
Penitenciei-me, às vezes, por querer dos colaboradores um empenho literário que a pressa burocrática não admite. E nunca tolerei um indício de corrupção. Cyro, como prêmio pela longa carreira de bons serviços prestados ao Executivo, aposentou-se como ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
 
Não é sem propósito conjeturar se teria sido outra a obra de escritor de Cyro dos Anjos sem a dedicação plena à causa pública até os setenta anos. Seria fácil supor que lhe sobraria lazer para a elaboração de livros mais numerosos. Sentimos falta deles? Por certo, a leitura de outros textos significaria sempre um novo prazer. Mas – é preciso que se proclame logo – nada há a reclamar do legado de Cyro dos Anjos. As obras-primas que ele produziu constituem um acervo insubstituível. Seu nome está inscrito, ao lado dos mais expressivos, na História da Literatura Brasileira.

No balanço que faz de sua contribuição, entretanto, Cyro se analisa com impiedade. O capítulo 39 da segunda parte de A Menina do Sobrado (Mocidade, Amores), intitulado O Birô, O Espelho, apresenta um retrato cruel da divisão entre o burocrata e o criador:
   
Agora, no fim da viagem, devo lamentar o tempo furtado ao escritor por essa atividade dispersiva, quase sempre vã, que fazia descer sobre os meus dias uma nuvem gris, de frustração e melancolia? Eu era um boi de canga, paciente e aferrado, mas às vezes tinha ímpetos de empinar a cabeça, sacudir o jugo. Rebelava-me, por dentro, contra aquela dissipação de energias do espírito em tarefas tão desencontradas, sufocantes e, sobretudo, alheias às minhas inclinações naturais.
   
Para depois ponderar:
   
Não há o que lamentar. E isso porque, dissipadas as antigas veleidades, vejo-me cônscio, não sem uma ponta de amargura, de que nenhum detrimento veio às Letras nacionais disso de haver sido eu forçado a lhes sonegar algum suplementar produto do meu fraco engenho. Tanto mais quanto não poderia eu garantir que o hipotético produto viesse a lume caso me fossem prodigalizados os vagares com que o literato sonha. O pouco que eu tinha a dizer foi dito. O mais seria crescimento vegetativo.
   
Cyro não maldiz, também, do diabólico Birô, que lhe pedia tudo: “A carta maneirosa, o telegrama diplomático, as cacetíssimas exposições de motivos, e pareceres, discursos, mensagens, projetos de lei, toda a matéria temporal e perecível que, num gabinete de governo, consome pena e papel.” Observa: “Talvez devesse até bendizê-lo. No mínimo, forneceu, ao escritor menor, argumento com que justificasse a sua esterilidade. Quando, por fim, alçado a outras funções, me vi livre dele, que aconteceu? Perdi o meu álibi!” E conclui: “Mas agora, que as forças se foram, já não há como trazer ao sol sequer obras menores. Eis por que liquido, neste volume, as minhas memórias.”

Antes, no segundo capítulo, Cyro já havia mencionado a “insegurança, a autodepreciação, que continuariam a flagelar-me pela vida fora”. Não fosse a sinceridade de seu sentimento, caberia até duvidar de tão duras palavras. Porque elas parecem desconhecer diferenças básicas de temperamentos. Há os caudalosos, que reagem em cada escrito a variados estímulos, e os sintéticos, presos sempre à teia da própria biografia, aprofundando um ideal de perfeição que se mostra inatingível. O mérito, em ambos os casos, pode ser idêntico. Um só livro basta para consagrar um autor. Na História da Literatura, são numerosos os exemplos dos que se tornaram célebres com uma única publicação.
 
Quanto a Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro, o primeiro romance que escreveu, lançado em 1937, já teria sido suficiente para assegurar-lhe lugar de relevo entre os seus pares. Ainda que ele, na sua envergonhada modéstia, confessasse mais tarde que se tornou autor sem querer, um tanto movido pelo acaso. Em Belo Horizonte, e desde o tempo de estudante, praticava o Jornalismo Literário, mas nunca tive o propósito de publicar livros. Aconteceu, porém, que aí por volta de 1933 a 1935, andei escrevendo umas crônicas no jornal A Tribuna, e depois no Estado de Minas, com o pseudônimo de Belmiro Borba.

Cyro acrescenta que “as crônicas acabaram impondo, àquele que as assinava, uma atitude e um estilo”. Belmiro Borba “começou a intrometer-se na vida do autor, trazendo-lhe fantasias, devaneios, desajustamentos com a realidade. Convinha a este último, e com urgência, livrar-se de tão comprometedora companhia, aprisionando o personagem dentro dum livro”. O escritor, de lenta e penosa elaboração, que refazia seus textos vezes incontáveis, daí por diante, preparou O Amanuense em férias ocasionais, durante menos de dois meses.

O diário, forma preferida dos tímidos e introspectivos, foi o veículo ideal para as aventuras solitárias desse gauche lírico, mitificador de amadas inatingíveis, que dispensava o necessário complemento da realidade para a concretização de seus sonhos. Entendo que muita gente, afeita às exteriorizações impositivas, à capacidade de afirmar-se em meio a assembleias estranhas, considere medíocre Belmiro Borba, desajustado amanuense de repartição improdutiva, homem de pequenos horizontes, incapaz de façanha heroica. Permitam-me, contudo, uma confidência: nós, mineiros, por mais que conquistemos o mundo, carregamos dentro de nós, como fardo acalentado e irreprimível, um Belmiro Borba. Daí nosso profundo apreço pela ficção de Cyro dos Anjos, que fixou como poucos essa estranha “mineiridade”.
 
Uma passagem do romance me parece elucidativa do caráter do protagonista. O empenhado Redelvim lhe pergunta o que ele é, na ordem das coisas. “Talvez um ‘individual-socialista’”, responde Belmiro certo de ser “um sujeito inofensivo, para todos os regimes...”. Se a explicação enoja o interlocutor, Belmiro continua a estimá-lo. E anota, com a certeza de quem acredita que os sistemas não sobrelevam as relações pessoais:
   
Os companheiros são raros, precisamos conservá-los a todo custo. E quando não possamos ser amigos cem por cento, sejamos cinquenta ou vinte. Quando encontro, em alguém, cinco por cento de afinidade, contento-me com essa escassa percentagem.
   
Sabedoria pacata, de quem não rouba espaço aos outros e tem uma visão cética da existência.

Com O Amanuense Belmiro, Cyro dos Anjos incorporou publicamente ao Modernismo a linhagem machadiana, embora Mário de Andrade, em artigo de 1939, o associasse a Graciliano Ramos, como “dois apaixonados da vida interior”, e adiante escrevesse:
   
Muito mais machadiana que o Sr. Cyro dos Anjos, e talvez sem o querer, me pareceu a Sra. Rachel de Queiroz com o seu romance das As Três Marias, onde o jeito conceituoso, a lapidação cristalina da frase, o próprio mecanismo de pensar, muitas vezes, lembra Machado de Assis.
   
A verdade é que o nome de Cyro se vinculou, na prática, ao do autor de Dom Casmurro, levando-o a afirmar, em 1951: “[...] não me lisonjeia ser fichado como epígono. Nem acho que escritor algum possa ser classificado com facilidade como o fazem no Brasil. Leia-se a obra de Machado, e ver-se-á quão diferente é o seu espírito.” Nessa questão, creio definitivo o juízo de Antonio Candido, em artigo aproveitado como prefácio nas edições posteriores do romance. Eis suas palavras:
   
Falou-se muito em Machado de Assis a propósito de Cyro dos Anjos, insistindo-se sobre o que há de semelhante no estilo e no humorismo de ambos. O que não se falou, porém, foi na diferença radical que existe entre eles: enquanto Machado de Assis tinha uma visão que se poderia chamar dramática, no sentido próprio, da vida, Cyro dos Anjos possui além dessa, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens. O que é admirável, no seu livro, é o diálogo entre o lírico, que quer se abandonar, e o analista, dotado de humour, que o chama à ordem: ou, ao contrário, o analista querendo dar aos fatos e aos sentimentos um valor quase de pura constatação, e o lírio chamando-o à vida, envolvendo uns e outros em piedosa ternura.

Candido chega a apontar, no fundamento da arte do romancista mineiro, “uma qualidade de vida que é superior à de Machado de Assis”.
 
Como se não bastasse empatia tão profunda, emprestando significado especial ao aparecimento de O Amanuense Belmiro, o crítico e historiador, ao comentar, em 1948, a lista dos dez romances preferidos de Augusto Meyer, termina com a seguinte declaração: “[...] preciso guardar espaço para certas amizades – modestas, mas fiéis e inspiradoras, como O Amanuense Belmiro, que, timidamente, eu levaria para a ilha deserta em lugar de grandes figurões.” Em outra oportunidade, Antonio Candido repetiu ser o Amanuense um dos seus romances mais queridos – ao lado do Lucien Leuwen, de Os Possessos, do Temps Perdu, de A Ilustre Casa. [...] Esse livro de capa amarela, na edição da mais simpática editora do mundo, “Os Amigos do Livro”, de Belo Horizonte, tem-me acompanhado, desde a publicação, como companheiro e amigo. Quando viajo, levo-o junto, não raro, e apesar da sua atmosfera já ser minha, sempre faço qualquer pequena descoberta, que me dá tanto prazer quanto o reencontro das descobertas antigas e já agora familiares.
   
É de se imaginar que estreia tão festejada, responsável por copiosa fortuna crítica, criasse enorme expectativa para Abdias, o segundo romance de Cyro dos Anjos, editado oito anos depois, em 1945. No cômputo geral dos comentários, a acolhida favorável superou em muito as restrições, ainda que Antonio Candido, considerado por Cyro o melhor exegeta de O Amanuense, se mantivesse distante do entusiasmo anterior.
 
Álvaro Lins, outro crítico de incontestável autoridade, publicou em jornal, em 1946, artigo que, alterado, se tornou depois apresentação de Abdias. Com agudeza, o estudo afirma que Cyro pertence à família dos escritores de um só livro em vários livros, com obras que se desdobram e se comunicam como se fossem uma só. Isto não é um defeito, e sim um caráter, uma espécie de criação literária. Abdias não é a repetição de O Amanuense Belmiro, mas o segundo romance continua o primeiro, embora os personagens tenham outro nome e novas situações sejam apresentadas.

Ao enumerar as semelhanças entre os dois livros, Álvaro diz que a personagem Gabriela, do segundo, tem muito de Carmélia, do primeiro, para ir mais longe nas suas ponderações: “Abdias, este então bem se poderia chamar Belmiro.”

Acresce que de novo a narrativa adota a técnica do diário e registra os parcos acontecimentos e sobretudo as ilações por eles despertadas. Só que, agora, Abdias não é o solteiro disponível para os mitos femininos, mas um homem casado, que divide a sua afetividade entre a esposa Carlota e a adolescente Gabriela. O romance acompanha o crescimento da paixão impossível do professor pela aluna, até que ela escape de sua órbita e case com um jovem. Página antológica do livro é aquela em que, morta a esposa, Abdias assim inicia um retrato de sua solidão: “Carlota, a vida é um tecido de equívocos. Foi preciso que morresses, para eu saber que te amava e que éramos felizes, na monotonia dos nossos dias. Nessa monotonia, formada de coisas simples e permanentes, encobria-se a felicidade.”

O despontar do sentimento de Abdias por Gabriela é pintado de maneira admirável, sintetizando com perfeição um dos motivos do ideário do escritor:
   
A moça resumiu, para mim, naquele momento, todas as antigas namoradas, e sua casa representou os misteriosos palácios que as escondiam. É possível que a amada seja uma só e apenas exista em nosso espírito. Nela se encarnarão transitoriamente formas femininas que se lhes assemelham, mas essas formas passam, fugazes, e a amada permanece idêntica a si mesma, dentro de nós, fora do tempo.
   
Sem ser crítico literário, e contrariando juízo quase genérico, ouso pensar que Abdias representa um progresso em relação a O Amanuense Belmiro. O romance é mais orgânico e se concentra na análise psicológica dos protagonistas, que se modificam paulatinamente, acrescentando novas facetas aos dados antes transmitidos. As personagens constroem-se com total nitidez. Cyro tem consciência de seu processo de composição, sobre o qual fornece uma pista explícita:
   
A divisão destas notas em parágrafos tem muitas vezes fugido à cronologia e, de ordinário, dissocia fatos que, encadeados no tempo, talvez devessem ser alinhados seguidamente no papel, para maior fidelidade de exposição. É que, no comum, eu me abandono a um fluxo caprichoso que vem do inconsciente e, à semelhança das correntes marítimas, certamente tem o itinerário determinado por diferenças de densidade e temperatura.

Nesse procedimento, Cyro se aproxima dos grandes ficcionistas que revolucionaram o romance moderno.
 
Em autocrítica severa, Abdias confessa o que deve à mulher:
   
Quanto Carlota fez por mim! Eu era indeciso, tímido, incapaz de enfrentar a vida. Ela transformou-me, tornando-me um ser útil, ajudando-me a vencer minhas dúvidas e dissipar o sentimento de inferioridade que me tolhia e angustiava. Como retribuí seu amor e sua sobre-humana dedicação? À primeira fantasia que me veio, desfiz-me dela, moralmente, rompendo os laços que nos prendiam...
   
O caráter de Abdias, moldado pela esposa, é uma das explicações para o passo adiante que o romance representa em face de O Amanuense.
 
No autorretrato que fez para as “Notícias Literárias da Semana”, veiculadas na imprensa por José Condé, em 1946, Cyro dos Anjos anuncia que seu próximo livro terá outro feitio. Alude ele, expressamente, a Antonio Candido, “a quem o Abdias pareceu apenas um eco de O Amanuense”. Ao invés de mostrar-se magoado, por motivo de eventual incompreensão, o romancista digeriu bem as palavras do crítico, e juntou: “De qualquer modo, sua advertência valeu, porém, como um convite a tentar novos rumos.”

Esses novos rumos consubstanciaram-se uma década mais tarde, em 1956, com a publicação de Montanha, romance que suscitou numerosas polêmicas, de fontes várias. Aí, Cyro abandonou a narrativa na primeira pessoa, como se não quisesse mais filtrar a vida exterior pela mente privilegiada de um indivíduo, confiando-a ao exame do romancista neutro. O título é o apodo de Minas Gerais e, através de suas tramas políticas, desenha-se um painel histórico da vida brasileira moderna.

A primeira edição esgotou-se rapidamente, porque o romance transcendeu o público habitual da Literatura para interessar a camadas mais amplas. A descrição objetiva dos métodos políticos praticados no período da ditadura provocou uma onda de repúdio aos donos do poder. Os leitores excitavam-se na bisbilhotice de identificar as figuras da realidade transpostas para a ficção. Esqueciam-se de antigo pressuposto estético de Cyro, segundo o qual “de ordinário, o personagem de ficção se forma assim como um mosaico. Constitui-se de partes justapostas apanhadas aqui e ali, nas mais variadas fontes. Sua ‘realidade’ será produto de uma combinação feliz dos materiais”. E exemplifica: “Às vezes sucedem coisas imprevistas. O autor enxerta num tipo masculino certo traço de caráter observado em uma mulher. Pode ocorrer também o contrário.”

O político Aliomar Baleeiro, de oposição, declarou, enfaticamente: “Não permitam os deputados da maioria que o Brasil continue a ser o país mui justamente retratado e pintado pelo romancista Cyro dos Anjos no livro Montanha. Nossa Pátria é realmente aquilo que o escritor traça, é aquilo em que se tornou pelo domínio de vinte anos dos homens que formam o PSD.”

Em entrevistas divulgadas na imprensa, Cyro admitiu: “Nesse livro, aliviei a minha consciência de escritor que participou, eventualmente, de um sistema de coisas a que era infenso.” Em outra oportunidade, confessou que sem ter nenhuma tendência ditatorial, havia eu aceito os fatos de 1937, passivamente, como a maioria do povo no país e no novo regime cheguei a postos de destaque. Entrosado, desde jovem, na estrutura estatal, ligado, sem querer, a grupos com que não tinha afinidades, vivia desencantado, mas sem meios ou sem ânimo de romper com o sistema que me envolvia.
   
O amigo Carlos Drummond de Andrade, companheiro de geração, desde as mesas de jornal em Belo Horizonte, saudou efusivamente o livro:
   
Porque Pedro Gabriel (o protagonista do romance) não é esse ou aquele, mas o político, tal como o nosso habitat o engendrou, nossas instituições o emolduraram e o romancista o modelou, acrescentando um tipo à nossa galeria literária, a que faltava um estudo de conjunto no meio político, e o aprofundamento de seus caracteres, sem deformação caricatural ou satírica.
   
O romancista, porém, conhecedor íntimo de suas legítimas inclinações, não demonstrava muita certeza quanto ao alcance de sua aventura na Política. Ao dedicar-me o livro, quando o lançou em São Paulo, ele o chamou de pas-de-quatre da política de Montanha. E pediu que eu deixasse de lado a fauna que lida com ela e prestasse atenção “à minha Ana Maria, na qual pus as complacências de escriba cinquentão. É a maior paixão de minha vida. Amores serôdios, que são os grandes amores”.

A recepção a Montanha atesta o conflito produzido pela mudança de linha do autor. Era inevitável associá-la a John dos Passos e aos newsreel roubando-a do universo de Proust, Anatole France e Amiel, entre outros. Cyro enveredara, de fato, para uma pesquisa mais contemporânea, que procurava abarcar o homem e a sociedade. Com procurada objetividade, ele pintou o universo da oligarquia política e sua contrapartida social, nas carências e nos reclamos dos desfavorecidos. E sem deixar de lado as sutilezas do temperamento inquieto de Ana Maria – ponto de contato e continuação de sua obra anterior.
 
Muitas vezes os capítulos se alimentam de diálogos, que abolem a interferência direta do narrador. É como se ele quisesse anular-se em benefício da objetividade do retrato. Os múltiplos ambientes, do palácio ao botequim, testemunham o propósito de abarcar a realidade mais ampla possível. Cyro não quis furtar-se a nenhuma experiência.

Se o seu domínio natural é a autoanálise impiedosa, é preciso convir que, em Montanha, achando-se em causa o jogo do poder, os recursos ficcionais precisariam alterar-se. O mergulho interior não se ajusta bem a personagens que devem manter uma aparência vitoriosa, numa imagem pública mais importante que suas possíveis dúvidas. E não é fácil alcançar rendimento literário uniforme, lidando com a superfície.

O romance contorna a dificuldade, promovendo verdadeira colagem de técnicas diferentes. Grande parte da presença de Ana Maria se contém no seu diário. Ainda aí, Cyro inovou: não mais o diário masculino de Belmiro e Abdias, mas o de uma mulher – longe do mito de Arabela ou da adolescente virgem e curiosa, e, sim, dentro da sua pureza incontaminada, amante de um homem casado, prática tão incomum na Minas daqueles anos.

O reencontro, no Rio, de Ana Maria e Everardo, antigo apaixonado da cidade natal, na província distante, torna o capítulo XXXII um dos mais belos do romance, pela delicadeza do diálogo, tecido em meios-tons, que evitam os transbordamentos discutíveis. A confidência sincera une essas criaturas separadas pelo tempo, e ela se interroga se um dia viria a amá-lo. Que ele não vá embora – pede a sua solidão. E Ana Maria surpreende-se maternal, chamando-o “meu filho”...

Adiante, ela confessa ao diário: “Meu ideal: viver ao pé de Everardo como irmã. Não permitir que se case com outra. Unirmo-nos para o resto da vida, numa longa conversação. Encontro em mim o mesmo egoísmo absurdo, que reprovava em papai.” As páginas finais do romance pertencem ao diário de Ana Maria. Depois de anotar nele os seis versos mais famosos de A Vida É Sonho, de Calderón de la Barca, a heroína retifica: “A vida nada tem de sonho. É uma realidade tremenda, Señor Calderón!” A última frase do livro, deixando em suspenso o futuro, é: “Um problema, Everardo!” Não seria gratuito conjeturar que, no desfecho, Montanha se abre para uma promessa otimista. Acima dos conciliábulos turvos da oligarquia política, impõe-se o encontro afetuoso de duas solidões.
 
Os que não aprovaram o romance puderam mobilizar vários argumentos, que vão da caricatura da Política de Minas à falsidade das personagens, da falta de emoção e do conteúdo dramático neutro ao pedantismo, à alienação ideológica do autor. Preocupado com essa última assertiva, repassei os três romances de Cyro e cheguei à conclusão de que não só a subjetividade de O Amanuense Belmiro e Abdias tem sempre o contraponto social dentro dos próprios romances, como Montanha promove dura crítica da alienação ideológica de certo gênero de nossos políticos.

Documento de qualquer forma admirável, o livro sempre será leitura obrigatória para se conhecer determinada fase do País. Para mim, a colagem resultou algo híbrida, e não são todos os capítulos que guardam o mesmo nível. A evolução da trama às vezes claudica, criando-se hiatos de relativa frieza. Diante da perfeição formal dos dois primeiros romances, é justo que eu, como muitos leitores, os prefira a Montanha. Que vale ainda pelo empenho do autor em renovar-se.

Cyro não mais voltou ao romance. Aparentemente, não encontrou novas reservas ficcionais que o motivassem. Severo consigo mesmo, preferiu silenciar no gênero, embora sua produção literária abarcasse outros veículos. Não se pode esquecer, por um lado, a permanente colaboração jornalística, ao longo de muitos anos, a merecer um crivo, para ser reunida em volume, a partir do material que ele doou à Fundação Casa de Rui Barbosa e ali se encontra carinhosamente preservado.

Em 1956, o mesmo ano em que Montanha veio a lume, Cyro publicou A Criação Literária, pequeno e substancioso ensaio de pesquisa estética, nascido de uma pergunta que, cerca de uma década atrás, lhe formulara um aluno da cadeira de Literatura que ele regia na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais: – Por que escreve?

A indagação levou o professor a ler numerosos livros, no afã de encontrar resposta para si mesmo. A bibliografia comentada é bastante extensa, podendo-se afirmar que engloba a maioria dos estudos acessíveis para um pesquisador brasileiro familiarizado com as Línguas Neolatinas e o Inglês. Observe-se a sucessão de nomes comentados por Cyro, o que dá uma medida do erudito que ele foi, circunstância, aliás, incomum entre a maioria dos nossos ficcionistas: Valéry, Huizinga, Delacroix, Flaubert, Malraux, Grassi, Ribot, Tilgher, Lado, Alain, Tristão de Athayde, Platão, Jacques e Raíssa Maritain, Bergson, Benda, Croce, Hegel, Dilthey, Proust, Bourget, Focillon, Pirandello e – certamente o autor mais discutido naqueles dias – o Sartre de Qu’est-ce que la Littérature?. A lista não esgota o número de fontes recrutadas em A Criação Literária.
 
Vê-se que Cyro passeia com muita desenvoltura pela obra de filósofos e estetas e não recua ante a dificuldade de certos tratados. Seria legítimo pedir que ele não se cingisse ao quase resumo dos estudos lidos, a propósito de muitos autores, e se aventurasse numa formulação mais pessoal do problema. O que não o impediu de reconhecer que “a ideia de ‘dom’ que, de uma ou de outra forma, repontara aqui e ali, no curso destas notas, voltou a obsidiar-nos”. E Cyro menciona, quanto a “dom”, “vocação”, uma passagem de Malraux, em Les Voix du Silence: “a relação do artista com a Arte pertence ao domínio da vocação. E uma vocação religiosa não se sente como resultado de uma ‘escolha’, e sim como ‘resposta’ ao apelo de Deus.”

Reconhecendo que lera “talvez demasiado, e, contudo, muito havia ainda por esgravatar nos intermináveis livros dos doutores”, “o temerário professor” pensou:
   
Eis o que se chama Filosofia: um longo giro que frequentemente nos devolve ao ponto de partida. Por que o artista cria? Ora esta, porque criar é próprio de sua natureza, e assim quis, decerto, aquele Demiurgo dos gnósticos, que, não podendo conceder aos homens a alma racional, lhes conferiu a sensitiva...
   
O último parágrafo do livro encerra com ironia a questão: “Jamais perguntem a um romancista por que escreve romances. Melhor é pedir, como certo personagem de Shakespeare, que sejam os mesmos bem encadernados e nos falem de amor...”

Cyro incursionou pela Poesia em 1963, quando foi vítima de um enfarte, escrevendo doze Poemas Coronários. Na dedicatória de um dos cem exemplares, belissimamente preparados pela Universidade de Brasília, no ano seguinte, por iniciativa do acadêmico e então Reitor Darcy Ribeiro, o autor esclareceu a uma afilhada que, “pensando que ia morrer, permiti-me a aventura destes versos. Como peça literária, nada valem, mas funcionaram, naqueles dias, como alívio à dor da despedida”. Na explicação inicial do volume, chamando-se Belmiro Montesclarino, Cyro qualificou a empreitada de “lira ingênua”, de alguém que é: “Imperito nas Artes Poéticas / Mas / Em Temerário Assomo / Quis Dar Expressão / às Visões e Efusões / das noites / em / claro.”

Os poemas não alteram, de fato, a História da Poesia, mas testemunham, à sua maneira, o permanente bom gosto do escritor. Sua natureza religiosa, de católico sempre fiel à Igreja, teve oportunidade de expandir-se, desde o primeiro poema, “Louvado seja o irmão dia”, que a autocrítica feroz considera um pasticho inepto de São Francisco de Assis. O cético afirma que, “se não há um Deus Padre Todo Poderoso, / Criador do Céu e da Terra, / mister é que Ele exista, / eu O reclamo, careço Dele”. Não pretende nada que “difira de ninguém no seio da terra. / Contudo, se quiserem algo na lápide, / escrevam: “Aqui descansa um homem errado, que sempre tentava emendar-se”. O gauche não deixou de ser fiel a si mesmo.

Linda a confissão do poeta: “Dependo de tudo e de todos, absurdamente. / Que ser frágil veio ao mundo! / Estou a desmoronar-me a cada instante.” Ao Anjo da Morte, que viu outra vez, ele confidencia: “Já vi o que não quisera ver / e nem das coisas belas tenho mais curiosidade.” Em outro poema, Cyro se abre: “Não sei quem sou nem o que valho, / qualquer opinião me afeta / qualquer esquivança me agrava.” Aos amigos, confia que “o Cavaleiro da Triste Figura / tem-na, agora, ainda mais triste”. Se a morte foi vencida provisoriamente pelo corpo, sem eximir-se “a trabalhos, dores. Alegria, minério raro!”, ele sabe que “logo me erguerei contra mim, / serei meu pior inimigo / recriminatório, batendo os punhos no peito, carregado de culpas, / atormentado de não ser o que desejara”.

Sob a inspiração confessa de Carlos Drummond de Andrade, Cyro presta contas ao pai e informa que “nos arrumaremos no azul” e que todos os irmãos responderão “Presente!” quando forem chamados. Finalmente, no último poema, deixa claro: “Se fiz verso ou prosa, importa pouco, / fui à raiz da aflição, descarnei-a.” E pede aos poetas de ofício: “Não castigueis com vosso reproche a Belmiro Montesclarino, / menestrel dos mais pobres.” O escritor se abandona à poesia imprevista como se pedisse desculpas. Só um leitor desatento não percebe que ela, no seu feitio particular, pode ser entrevista já no lirismo de O Amanuense Belmiro.

Cyro dos Anjos despediu-se do livro em 1979, com as memórias de A Menina do Sobrado. Seria normal pensar que, terminada a obra romanesca, ele se debruçou sobre as lembranças para promover um balanço da vida. Não é verdadeira a verificação. Em 1952, ele havia publicado um pequeno volume, em que evocava a infância passada na imaginária Santana do Rio Verde (pseudônimo de Montes Claros), sob o título Explorações no Tempo. A nota introdutória esclarecia que se tratava de “crônicas, escritas descontinuamente, sem ideia de livro, e agora aqui reunidas com a só costura da tipografia”.
 
Em 1963, adotando o mesmo título de Explorações no Tempo, Cyro lançou um volume alentado, de que o pequeno caderno anterior foi o embrião, segundo se esclarece de início. E A Menina do Sobrado se compõe de duas partes – a primeira, denominada Santana do Rio Verde, que reproduz Explorações no Tempo, e a segunda, inédita, Mocidade, Amores, continuação da autobiografia começada. O próprio autor, no capítulo final, resume o conteúdo melhor do que ninguém:
   
A primeira parte deste volume explorou o país da infância; esta entrou pelo da adolescência, até a zona indecisa em que ela parece ter acabado, e não sabemos se começou já a maturidade. Parou no exato instante em que a menina do sobrado pôs termo à carreira do malsucedido Don Juan.
   
Em outras palavras, as memórias se encerraram com o anúncio do casamento.

O matrimônio, o Birô, os filhos, a passagem pela Administração e pela Política eram assunto “para uma terceira parte não magra, nem gorda, mediana como as duas primeiras. Tendo pouco de si para contar, o autor contaria do alheio, diria de pessoas e de fatos em que o seu espírito se deteve”. Mas preferiu não ir adiante. Talvez lhe faltasse estímulo especial, porque Montanha, anterior na publicação a A Menina do Sobrado, era sem dúvida, na cronologia, um passo à frente nas memórias. Não é exagero reconhecer que tudo o que Cyro escreveu foi fruto de experiência pessoal.
 
O memoralista é minucioso na reconstituição do passado. E a presença das lembranças é tão intensa, que um cotejo entre A Menina do Sobrado e os romances comprova como elas se introduzem na ficção – tarefa cumprida por Afonso Henrique Fávero, na dissertação de Mestrado “A Prosa Lírica de Cyro dos Anjos”, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1991. Cyro sempre escreveu memórias na sua ficção? Ou são em grande parte ficção as suas memórias? Provavelmente, umas e outras se interpenetraram, fornecendo chão sólido para os livros. Resultando em boa literatura.
 
Santana do Rio Verde reconstitui magnificamente a pacata vida do interior de Minas – e, sem dúvida, de todo o Brasil – nas primeiras décadas do século. E “Mocidade, Amores” estende as observações a Belo Horizonte, nova capital do Estado, por volta dos seus trinta anos. Sem ser crônica de costumes, A Menina do Sobrado pinta os hábitos de um país que não estão nos livros usuais de História. Subsídios para o melhor conhecimento da alma brasileira.

Depoimento muito revelador da vida familiar e das primícias amorosas. Se o autor atribui ao seu temperamento a tendência de transformar a amada em mito, pode-se dizer que ela era comum a mais de uma geração, que separava o amor do sexo. Mais tarde, com a liberação feminina, alteraram-se as coordenadas do relacionamento. Imagino que um jovem de hoje estranhe que Cyro aluda a “desesperados amores que nem mesmo aspiravam a ser correspondidos, pois a amada, por definição, havia de sobrepairar, distante e inatingível como uma deusa. Amores que se alimentavam de sua própria chama, encontrando em si mesmos o seu objeto”.

Ainda em Montes Claros, Cyro teve acesso a obras de Machado, Eça, Camilo e Herculano, primeiras referências do futuro escritor. Belo Horizonte não dissipou as dúvidas quanto à carreira a seguir: “Das profissões liberais, nenhuma falava aos meus pendores. Tendia mesmo é para as Letras, ofício suspeito, nada recomendável a quem buscava meio de vida. Demais, as Letras me tentavam antes como consumidor que como produtor.” Há uma ponta de ironia no sentimento de conquista da Capital. Cyro confessa: “Não tinha os desígnios de um Rastignac. O herói balzaquiano queria tudo e, de quebra, ainda as bonitas damas. Do herói de Santana do Rio Verde se poderia dizer que nada pleiteava, exceto as damas bonitas.”

O Jornalismo, a repartição pública vão inscrevendo o futuro bacharel em Direito na vida da Capital, mesmo que ele não se sentisse privilegiado fisicamente. Aos poucos, entrosou-se nas rodas literárias, admirando no Café Estrela, desde 1925, os rapazes de A Revista – Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus, Emílio Moura, Pedro Nava, Abgar Renault. Na visão de Cyro, o movimento modernista “pouco ou nenhum eco teve além-Mantiqueira”. 
   
De qualquer modo, o Modernismo não terá caminhado de São Paulo para Minas. Pode-se conjeturar que tenha chegado a Belo Horizonte pelo diurno do Rio. [...] Parece que a vanguarda de Minas só travou relações com a paulista em 1924, quando Mário de Andrade visitou Belo Horizonte, Sabará e Ouro Preto, em companhia de Cendrars, Oswald e Tarsila. E tem história à parte o levante de Cataguases, promovido por alguns rapazes de talento, entre os quais Guilhermino César.
   
Sem figurar na roda de A Revista, Cyro não se filiou, por outro lado, à Semana de Arte Moderna de 1922. Ele, que nunca andava inteiramente convicto de nenhuma ideia, fez esta reveladora confissão:
   
Na verdade, eu não me engajava naquele movimento já a desintegrar-se: seguia a Carlos e João, sob o fascínio da poesia de um e os encantos da prosa do outro, ricas, originais, mensageiras ambas de uma novidade autônoma, que nada, em substância, devia às inspirações e aos mandamentos do sectarismo literário. Uma adesão, portanto, a pessoas, não a princípios.
   
A Menina do Sobrado completa o perfil literário de Cyro dos Anjos, escritor refinado, dono de prosa clássica, lidando com a palavra como poucos autores em nossa Língua. É invejável a pertinência com a qual ele desencava vocábulos e atualiza arcaísmos, emprestando-lhes sabor de perenidade. Difícil encontrar uma página sua que não ilustre, com brilho, uma antologia.

Desde a estreia literária, foi ele unanimemente reconhecido como um dos talentos indiscutíveis do País. Sua fama espalhou-se por toda parte, transpondo também as nossas fronteiras. Várias versões dos romances enriquecem a bibliografia estrangeira. Eles passaram a figurar nos estudos universitários. O governo francês incluiu O Amanuense Belmiro no programa do concurso nacional de Agregação, destinado a recrutar professores da literatura de Língua Portuguesa. Cyro nunca deixou de ser julgado um dos grandes da moderna Ficção Brasileira.

Cabe ser ressaltada também sua atuação no Magistério. O escritor levou para o ensino a grande bagagem acumulada e a rica experiência do ofício. Não se preocupou, exatamente, em galgar os postos sucessivos da carreira universitária. Colaborou com o que sabia, estimulando possíveis vocações ou, em qualquer hipótese, o espírito crítico. Tanto na permanência em Belo Horizonte como em Brasília – cuja Universidade foi ideia sua – e, depois de aposentado no cargo de ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, ele lecionou Literatura ou dirigiu oficinas literárias. A convite do Itamaraty, regeu de 1952 a 1954 a cadeira de Estudos Brasileiros, junto à Universidade do México, transferindo-se a seguir, durante um ano letivo, para igual posto na Universidade de Lisboa.
 
No trabalho burocrático, ainda em Belo Horizonte, além de outras funções, Cyro exerceu os cargos de diretor da Imprensa Oficial e de presidente do Conselho Administrativo do Estado. Diretor do IPASE, no Rio, foi nomeado, em 1957, pouco mais de um ano depois de regressar de Portugal, subchefe do Gabinete Civil da Presidência da República, por indicação, aliás, do então ocupante do cargo, o atual Presidente da Academia, Josué Montello, que ia cumprir missão em Lisboa. As funções de conselheiro do Tribunal de Contas de Brasília, até a aposentadoria compulsória, encerraram a contribuição de Cyro dos Anjos ao serviço público.
 
Uma existência plenamente realizada em qualquer campo. Alguém que dignificou tudo o que fez. E que será certamente reverenciado enquanto houver um admirador da Literatura Brasileira.

Coube a Cyro dos Anjos suceder, nesta Casa, a Manuel Bandeira, um dos maiores poetas do nosso Modernismo, ou, melhor, um dos maiores poetas da nossa História Literária. Admiro-o junto a uns poucos, desde a adolescência, quando o nosso grupo da província devorava os seus livros. Prendia-nos a todos o seu lirismo, a aparente simplicidade da sua composição, a voz pura de uma poesia que transfigurava o prosaísmo do cotidiano em algo eterno. Bandeira era alimento diário da nossa geração.
 
Já em A Cinza das Horas, publicado em 1917, aparece o grande poeta, que seguia os cânones do Simbolismo e do Pós-Parnasianismo. Quem não se lembra da “Epígrafe”, com os dois versos iniciais, “Sou bem nascido. Menino, / Fui, como os demais, feliz.”? Ou dos versos que principiam “Desencanto”, “Eu faço versos como quem chora / De desalento... de desencanto...”? “Renúncia”, o soneto final da coletânea de cinquenta poemas, é um dos mais belos de nossa Língua.
 
Dois anos depois, em 1919, Bandeira lança Carnaval, em que Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Athayde, ou simplesmente o nosso querido Dr. Alceu vê não apenas o simbolista marcado por Laforgue e Cesário Verde, mas o poeta “pessoal e espontâneo”. Curiosamente, os modernistas vão buscar nesse livro uma espécie de manifesto da liberdade poética pretendida pelo seu movimento. Ronald de Carvalho recitou, na noite de abertura da Semana de Arte Moderna, no dia 13 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, o poema satírico “Os sapos”, voltado contra a rigidez parnasiana. Tanto assim que o sapo-tanoeiro, “Parnasiano-aguado”, diz: “Vai por cinquenta anos / Que lhes dei a norma: / Reduzi sem danos / a formas a forma. / Clame a saparia / Em críticas céticas. / Não há mais poesia, / Mas artes poéticas...”

Apesar desse grito antecipado de emancipação, Bandeira vai considerar O Ritmo Dissoluto, editado em 1924, junto com os dois volumes anteriores, sob o título geral Poesias,
   
um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas ideias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte a que por isso mesmo chamei Libertinagem. Em O Ritmo Dissoluto prossegui em certas experiências de Carnaval, como rimas toantes, mistura de versos brancos e versos rimados, coisa de que depois tomei horror.

Muitos poemas de O Ritmo Dissoluto figurariam, entretanto, em qualquer antologia do poeta: “Noite morta”, “Berimbau”, “Os sinos”, “Madrigal melancólico”, “Meninos carvoeiros”, “Na Rua do Sabão”, entre muitos outros.

Libertinagem, de 1930, é feito inteiro de obras-primas, do primeiro poema, “Não sei dançar”, ao derradeiro, chamado “O último poema”, passando sobretudo por “O cacto”, “Pneumotórax”, “Poética”, “Porquinho-da-Índia”, “Mangue”, “Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, “Tereza”, “Cunhantã”, “Andorinha”, “Profundamente”, “Irene no céu” e “Vou-me embora pra Pasárgada”. Bandeira vive então gloriosa maturidade, que se confirmará nos livros sucessivos – Estrela da Manhã, Lira dos Cinquent’anos, Belo Belo, Opus 10, Estrela da Tarde, trajetória de plenitude e de lenta preparação para a morte. O grande poeta mostra a sua percepção e o seu virtuosismo exemplares até nos versos de circunstância de Mafuá de Malungo.

A prosa de Bandeira não fica atrás da poesia em precisão, encanto e sutileza. Desde as Crônicas da Província do Brasil a Flauta de Papel e Andorinha, Andorinha, livro comemorativo dos 80 anos do poeta, preparado por outro grande poeta e prosador, Carlos Drummond de Andrade, amigo de admiração recíproca. E o extraordinário conhecimento que tinha Bandeira de seu ofício está expresso no ensaio Apresentação da Poesia Brasileira, de 1945, que trata dos jesuítas até os estreantes daquela quadra, para os quais mostrou sensibilidade. A erudição literária permitiu-lhe editar diversas antologias de poetas brasileiros de várias fases, além de A Autoria das Cartas Chilenas e as Noções de História das Literaturas, bem como Literatura Hispano-Americana, De Poetas e de Poesia, Obras Poéticas de Gonçalves Dias e, para a coleção “Nossos Clássicos”, da Agir, o livro Gonçalves Dias. Num labor quase incompreensível em quem muito jovem foi acometido de moléstia então quase incurável, Bandeira ainda escreveu sobre As Artes Plásticas no Brasil e elaborou um Guia de Ouro Preto. Sua curiosidade intelectual não admitia limites.

Como crítico de teatro, devo confessar a enorme dívida do palco para com o tradutor Manuel Bandeira. Na década de 1950, ele desdobrou-se na transposição de vários textos fundamentais da história da Dramaturgia, assim como de outros, destinados a atender a uma encomenda de empresário, que se empenhava em montar um trabalho consciencioso, de quem conhecia o original e dominava o vernáculo.

As traduções de Bandeira não são mero registro bibliográfico, mas peças literárias que passam a enriquecer também a Literatura Dramática em Língua Portuguesa. Mencionem-se Maria Stuart, de Schiller; MacBeth, de Shakespeare; D. João Tenório, de Zorrilla; A Máquina Infernal, de Cocteau; Juno e o Pavão, de O’Casey; O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht; O Fazedor de Chuva, de Richard Nash; Auto do Divino Narciso, de Juana Inés de la Cruz; O Colóquio-Sinfonieta, de Jean Tardieu; e A Casamenteira, Thornton Wilder. Um repertório vasto de problemas e soluções.

Quando dirigi a série Teatro Universal da Editora Brasiliense, tive oportunidade de obter do poeta os direitos de publicação de Juno e o Pavão. Lamento que a coleção se encerrasse no 34º volume, porque havia a promessa de serem aproveitados outros títulos. E a maioria continua inédita até hoje, num prejuízo incalculável para o nosso Teatro. A dívida do palco só será paga quando, além da publicação, um estudioso se detiver no exame do cuidadoso trabalho de Manuel Bandeira.

Sucedeu ele, nesta Academia, a Luís Guimarães Filho, cujo nome foi herdado do pai, Luís Guimarães Júnior, também membro desta Casa. A implacável decantação do tempo não inclui, nas histórias literárias, o nome desse antecessor na Cadeira entre os expoentes de nenhuma escola que floresceu no País. Talvez se possa aplicar-lhe o mesmo juízo que fez, no discurso de posse, da imagem do pai: “Não foi parnasiano nem romântico da Decadência: foi simplesmente um Poeta, um desses seres privilegiados.” Se atribuiu os sufrágios que o elegeram a uma homenagem prestada ao progenitor ilustre, tamanha modéstia só diz bem de seu temperamento.

O melhor roteiro para o contato com a obra de Luís Guimarães Filho encontrei no elogio de Manuel Bandeira, ao preencher sua vaga. Lembrou ele que seu antecessor, educado em Portugal, ainda estudante em Coimbra, poeta desde os 15 anos, publicou Versos ÍntimosLivro da Minha AlmaIdílios Chineses e A Aranha e a Mosca, marcados pelas incertezas da adolescência. A verdadeira estreia se daria em 1900, quando, achando-se na Pátria há três anos, publicou o volume Ave-Maria.

A Aranha e a Mosca, de 1897, é uma fantasia em verso, que se passa numa Atenas lendária, com cinco personagens: Lydia, formosa ateniense, de preciosos cabelos dourados; Aristeu, pastor do Egito, apaixonado por Egina; Egina, escrava favorita de Lydia; e Nisêa e Scyria, escravas de tez bronzeada.
 
Num cenário irreal – câmara suntuosa forrada de púrpura –, Lydia, invejada pela deusa Afrodite, “da bela Helena a única rival”, cujo “corpo é rival dos mármores de Fídias”, sente-se atraída por um pastor e diz: “Hei de tê-lo esta noite!”

A segunda cena passa-se num “lago límpido como uma pedra preciosa”, onde o pastor Aristeu tange a lira, informa ter deixado as cabras no verde Egito porque o amor por Egina o arrastou a esse exílio. Consolam-no um regato, uma rosa, uma ave e duas lágrimas, que escorrem pelo seu rosto. Até que, na terceira cena, surge Lydia, tentando seduzi-lo. A princípio, o pastor a recusa, para finalmente ceder à fascinação da mulher. Aristeu cinge Lygia pela cintura e exclama: “És a estátua do amor! Envenenas e brilhas!” Amara Egina, porque não a havia achado ainda. E as Árvores, qual coro, pronunciam os últimos versos: “Os homens são tolos em coisas d’amor, / São moscas que caem no laço traidor / Da teia da aranha...” Eis a razão do título.
 
O resumo da trama deixa clara a ingenuidade da inspiração. Não chega a organizar-se um conflito dramático, e o diálogo não se presta naturalmente ao destino cênico. Trata-se, em verdade, de uma fantasia adolescente, de quem se maravilha com o encanto feminino e ao mesmo tempo o teme. Uma experiência que, ao que parece, não teve continuidade.

Se não consigo ser sensível à proposta poética de Ave-Maria e nem de Pedras Preciosas, em cujo volume Manuel Bandeira afirma “que as gemas luzem requintadamente parnasianas na faiscação das rimas escolhidas a dedo para ofuscar os olhos e seduzir os ouvidos”, os livros nascidos da atividade diplomática de Luís Guimarães Filho me parecem muito interessantes, pelo poder de observação e pela elegância da narrativa. São eles Samurais e MandarinsA Holanda e Fra Angélico, captadores de realidades tão diversas, com espírito de requintado repórter.
 
Samurais e Mandarins, como o nome sugere, refere-se ao Oriente, que o escritor analisa não com a superficialidade do turista nem do funcionário que ficou preso às tarefas rotineiras e às recepções sociais, mas empenhado em surpreender as suas características secretas. Lê-se sobre as cerejeiras, a gueixa, os crisântemos, a cerimônia do chá, uma crítica ao Teatro Japonês falsamente ocidentalizado e, também, entre outros temas, sobre a sabedoria extraída das visitas ao filósofo Chiba. De forma leve e agradável, o leitor é introduzido nos mistérios de uma civilização que lhe era muito mais distante, no início do século.
 
A Holanda mostra a tenacidade de um povo que venceu a fúria das águas e também os moinhos, as tulipas, as bicicletas, as toucas, um pouco da história do país, a vida e a morte de Rembrandt (indicando a familiaridade do escritor com os valores das Artes Plásticas) e até a indignação diante da película Rio de JaneiroAspectos da Cidade. O Movimento nas Ruas, a que ele assistiu, num teatro de Roterdã, a convite de um jornalista. Ao invés de exibir as nossas riquezas e as nossas belezas, a fita era “uma daninha propagandista dos méritos” de nosso povo, expondo-nos à “galhofa universal”. Queixa-se Luís Guimarães Filho de que “as fitas que se apresentam na Europa e nas Américas relativas ao Brasil são de fazer chorar os próprios cegos!” E, diplomata que nunca perdeu de vista a sua origem, ele anotou:
   
Há, todavia, um amor que, às avessas de todos os outros, cresce em tamanho e fortaleza com o tempo e com a distância: é o amor à Pátria. Quanto mais longe da Pátria, mais próximos dela nos sentimos. [...]  Viver longe da Pátria é viver dolorosamente no exílio. [...] A nostalgia é, sem dúvida, o mais atroz dos padecimentos!
   
A bibliografia indicada no fim do livro comprova a seriedade com a qual o escritor elaborou Fra Angélico. À biografia minuciosa do religioso e pintor, corresponde uma análise objetiva das obras-primas por ele realizadas, sem que seja esquecido o contexto histórico no qual se insere a Ordem de São Domingos. Labor dos mais louváveis, que deveria deixar o rol das obras esgotadas. Manuel Bandeira menciona mais um livro de prosa de Luís Guimarães Filho – Mala Diplomática, infelizmente inédito até os nossos dias.
 
O Fundador da Cadeira que passo hoje a ocupar foi Garcia Redondo. A diversidade de interesses levou-o a deixar uma obra múltipla, que ele próprio dividia em literária – contos, crônicas, teatro, impressões de viagem – e sobre assuntos diversos, compreendendo relatórios a respeito de serviços de água e esgotos de São Paulo, ferrovias (ele era engenheiro), cultura da vinha e Botânica Elementar, lei do orçamento, conferências a propósito da inteligência dos animais e das plantas e, justificando ter sido fundador do Instituto Histórico de São Paulo, memória histórica sobre a primeira concessão de estrada de ferro dada ao Brasil e uma palestra sobre a descoberta do País.

No prefácio dos “contos ligeiros” de Arminhos, o autor esclarece que eles foram primeiramente publicados em folhetins no Diário de Santos, entre 1874 e 1881. A princípio, desconhecia o estilo dos escritores naturalistas e começava apenas a ler Flaubert. Zola, Daudet e Goncourt só veio a cultivar mais tarde, e os processos de sua escola aparecem nas últimas histórias curtas. Como “o Naturalismo é uma bela cousa, mas não deixa de ter os seus inconvenientes, [...] estendeu uma das mãos a Lamartine para entregar a outra a Zola” e, assim, colocado entre as duas escolas, “buscou imitar o que havia de bom em uma e evitar o que havia de mau na outra”.

As páginas íntimas de Carícia sugerem um recuo ao Romantismo, e os contos de A Choupana das Rosas, não obstante a leitura agradável, não acrescentam novos valores ao perfil literário de Garcia Redondo. E o humor de Cara Alegre, editado no Porto, em 1912, é sem dúvida menos ambicioso sob o prisma artístico. Provavelmente por conhecer esses livros, Paulo Barreto, ou João do Rio, ao receber nesta Academia Luís Guimarães Filho, teve sobre Garcia Redondo este severo juízo: “Ele foi engenheiro e professor, cuja literatura não passava de féria boêmia, dando a rever na sua imperfeição.”

Não vou negar, porém, que li com imenso prazer as crônicas e os bilhetes postais de Através da Europa, livro que dá conta das impressões de viagem a uma dezena de países no ano de 1906. Agradaram-me particularmente as reminiscências da juventude em Portugal, quando privou com Guerra Junqueiro e Cesário Verde, entre outros. É saborosa a narrativa do modo como ele, indo de Coimbra ao Porto, em 1870, fez relações com o romancista Camilo Castelo Branco. Para os companheiros do vagão, Garcia Redondo criticou acerbamente O Retrato de Ricardina, que não fazia justiça ao autor de Amor de Perdição. Um passageiro do mesmo carro, “homem picado das bexigas, com pince-nez de vidros escuros”, aproximou-se da roda para ajudar na catilinária contra o livro. Depois, em virtude de um incidente, esse homem convidou o brasileiro para ir no seu veículo até o Porto. De convite em convite, revelou-se a identidade do desconhecido, ao saudarem-no amigos num concerto: era o próprio Camilo Castelo Branco, que apresentou Garcia Redondo como o seu crítico mais sincero. E acrescentou: “O que disse do meu livro é a pura verdade; aquilo é um romance de fancaria, feito a vapor para satisfazer a exigência de um editor indomável.”

Em Paris, reportando a Conferência do Conselho Internacional das Mulheres, Garcia Redondo escreveu que “o feminismo, ao cabo destes últimos anos de luta tenaz e sem tréguas, impôs-se e provou a sua vitalidade, fazendo jus ao respeito e à consideração dos intelectuais e das classes dirigentes”. Uma legião de 10 milhões de mulheres, que aderiram a mais de duas dezenas de Conselhos Nacionais femininos, provoca o seguinte comentário do escritor:
   
Este número, já elevado, dentro de alguns anos estará dobrado ou triplicado e então a mulher há de impor os seus direitos como nós impusemos os nossos, em detrimento dos dela, há de conquistar o seu lugar ao nosso lado, há de votar e ser votada, há de subir à tribuna parlamentar como já sobe à tribuna das conferências e do júri, há de ditar as leis como nós as ditamos, há de administrar, dirigir e julgar, mostrando finalmente que tem capacidade para o fazer, que é o ser equivalente e não o ser inferior que nós outros – os césares caricatos – queremos que ela seja.
   
Garcia Redondo exorta as senhoras ilustradas do Brasil a se agremiarem também, “a fim de engrossar a falange dos que trabalham para nivelar os direitos dos dois sexos, estabelecendo o humanismo completo e integrado”. Postura admirável, em 1906, que atesta o espírito progressista de uma personalidade de múltiplas facetas.

Li ainda, de Garcia Redondo, a comédia Moléstias e Bichos, representada pela primeira vez, por amadores, no Clube Germânia de São Paulo, no sarau musical e artístico promovido pelo autor e realizado na noite de 27 de janeiro de 1899. Admito que o título me assustou, sendo improvável associá-lo, por exemplo, a um espetáculo da carreira comercial. À medida que se avança nos diálogos, verifica-se que a peça se inscreve na legítima tradição do nosso Teatro de Costumes. As moléstias, sempre contagiosas, são invenção de um caça-dotes arruinado financeiramente, que procura isolar a família da noiva daqueles que poderiam denunciá-lo. E os bichos pertencem à galeria do popular jogo brasileiro, cultivado às escondidas pela mãe da noiva, com o objetivo de presentear o marido. Só que as peripécias da mulher, a fim de consumar as apostas, confundem-se para ele com sintomas de adultério. Uma bela hora, como em todas as comédias, os equívocos se esclarecem, para que surja o happy end.

O amor sincero, à maneira da maioria das obras do gênero, é no final recompensado, castigando-se o vilão. O comediógrafo não tentou, em nenhum momento, renovar os procedimentos da comédia. Sua preocupação se resumiu ao objetivo de provocar o riso dentro dos preceitos conhecidos. As personagens estão talhadas em formas sintéticas e precisas. Seu horizonte não ultrapassa as fronteiras da vida doméstica. Registrem-se o dinamismo e a propriedade das situações. E o humor do entrecho, em que o marido ciumento, convencido do ridículo de suas suspeitas, dá a última réplica ao vendedor do jogo do bicho: “Hoje, vai o burro, que é o que eu tenho sido. Pode trazer, logo, quatro dezenas.”

A intenção inicial de Garcia Redondo era a de escolher Patrono da Cadeira Cesário Verde, amigo de mocidade em Coimbra. Homenagem mais que justa, por todos os títulos. Como o poeta se tivesse naturalizado português, tornou-se Patrono de nossa Cadeira Júlio Ribeiro, figura literária e humana de minha permanente admiração.

Ultimamente, debruçado sobre a obra de meus antecessores, receio que se passe comigo o fenômeno da metempsicose. Estabeleceu-se entre mim e todos, a partir de Júlio Ribeiro, uma verdadeira identidade de almas. A suposta transmigração me trouxe árduas exigências: eu gostaria de vasculhar-lhes as intimidades, apossando-me de seus mais secretos sentimentos. Pena que essa curiosidade seria saciada somente num longo ensaio, depois de um mergulho profundo.

Com Júlio Ribeiro, vislumbro especial parentesco. Nas palavras endereçadas ao leitor, que precedem o romance Padre Belchior de Pontes, escreveu ele: “Mineiro por nascimento, paulista por criação, eu voto às províncias de Minas e São Paulo um amor ardente, intenso, bairrístico até.” Se já me transferi adulto para São Paulo, atendendo a convite, meus laços afetivos não são de outra natureza (discordo apenas, radicalmente, do separatismo político de Júlio Ribeiro). O romancista, no dia 28 de julho de 1889, um ano antes de morrer, asseverou à mãe, em carta dirigida do Rio de Janeiro: “Estive muito doente em São Paulo, e vim à Corte, não para procurar remédio, mas para procurar meios de sair de São Paulo, cujo clima irregular me está matando. Aqui tenho gozado de muito melhor saúde.” Se não chegou a mudar para o Rio, fugindo do clima hostil, terminou seus dias em Santos, aos 45 anos de idade, em 1890.
 
Vida extraordinária, marcada pela excepcionalidade, desde o nascimento em Sabará, filho de um artista de circo norte-americano e de uma professora mineira. Poucas décadas de existência bastaram-lhe para residir em diversas cidades do interior de São Paulo, acumulando os trabalhos de professor, jornalista, político, filólogo, gramático, romancista e polemista. Republicano intransigente, não admitiu em seu jornal de Sorocaba anúncios sobre escravos fugidos. Precursor da ecologia, criticou acerbamente a destruição das matas. Quanto ao estudioso, afirmou-se que ele deu à “gramática portuguesa a elasticidade indispensável para o ajustamento aos moldes do linguajar nativo”. Não obstante o temperamento rude e pouco diplomático, diferente daquele que se costuma atribuir aos mineiros, pôde reconhecer: “Das polêmicas que tenho ferido nem uma só foi procurada por mim; eu não sei atacar, eu só sei defender-me, eu só sei vingar-me.”

Padre Belchior de Pontes é, no dizer do próprio autor,
   
um romance essencialmente histórico em sua máxima parte: tirados alguns anacronismos necessários ao enredo, algumas ficções e um ou outro personagem de imaginação, tudo o mais teve vida, ‘passou-se mesmo’ como poderá ver quem quiser dar ao trabalho de compulsar expressiva bibliografia, meticulosamente enumerada. Tem o livro como pano de fundo a guerra dos emboabas e uma romântica história de amor entre o protagonista e Branca Rodrigues. Apenas, separados na infância, quando a inclinação recíproca era soberana, coagiram D. Branca a casar com outro, enquanto obrigaram Belchior de Pontes a tomar o hábito da Companhia de Jesus. Passados 63 anos, no vestíbulo da morte, eles se reencontraram, para a última confissão de amor, que explodiu contra todas as conveniências. D. Branca não se furtou ao cumprimento dos deveres conjugais, dizendo embora que “o afeto íntimo” do coração, “o amor de mulher”, nunca pôde dar ao marido. E padre Belchior secunda-a: “Amamo-nos, Branca, e nosso amor foi puro demais para que nele tomasse parte a matéria... A terra negou-se-nos, vamos amar-nos no céu... No seio imenso de Deus não nos alcançará a garra venenosa dos discípulos de Loyola...” O ressentimento é contra os jesuítas, alvo da crítica do escritor.
 
Falta ao romance maior equilíbrio na alternância entre os episódios propriamente históricos e as peripécias que envolvem o itinerário dos protagonistas. Sinto que um pequeno ajuste propiciaria perfeita coesão ficcional. É sumamente curioso que o autor economize o processo da narrativa na terceira pessoa, em que sua presença se mostraria mais atuante, para incorporar a técnica do diálogo – e um diálogo muito vivo –, que transporta a personagem para o primeiro plano e quase dispensa a mediação dele. Uma objetividade que Júlio Ribeiro vai aprimorar com a descoberta do Naturalismo.

A Carne, o romance que espelha os princípios dessa escola, creio que a esta altura já superou quaisquer preconceitos. Na distante época do ginásio, minha geração o lia às escondidas. Eu nunca havia voltado a ele, por achar saciada a curiosidade. Retomei-o agora, para o preparo deste discurso, e a surpresa foi grande. Não se trata de livro datado, ou de obra que escape ao domínio da Literatura. Há nele uma verdade pungente, que está na raiz das obras-primas.

Júlio Ribeiro paga alguns pecados do Naturalismo, erigido em valor absoluto, como se vê na dedicatória a Émile Zola. Certas minúcias de pendor cientificista hoje não figurariam mais na narrativa. Encontram-se no Romance, por sorte, quase apenas em duas longas cartas, a primeira das quais de 27 páginas impressas. Lenita, a destinatária desta, leu-a, segundo relata o autor, com impaciência: “Os dados exatos, as apreciações científicas de Barbosa sobre Santos, sobre a serra irritaram-na; passou por aquilo tudo rapidamente, nervosamente, sem aprofundar, como quem percorre um catálogo.” Não estaria o romancista fazendo aí uma autocrítica dos exageros da escola?

Sob o prisma moral, se a entrega de Lenita a Manuel Barbosa, impelida pelos reclamos da natureza, poderia provocar censura, o próprio autor tratou de corrigir o excesso. Ao descobrir, numa caixinha, os segredos de Barbosa, que fariam dele “um D. João de pacotilha” e dela “uma de suas muitas amantes”, Lenita tem a súbita consciência de que transgredira antiga lei social e exclama:
   
É loucura quebrar de chofre o que é produto de uma evolução de milhares de séculos. A sociedade tem razão: ela assenta sobre a família, e a família assenta sobre o casamento. Amor que não tenda a sacrificar-se pela constituição da família, pelo casamento legal, aceito, reconhecido, honrado, não é amor, é bruteza animal, é desregramento de sentidos. Não, ela não amara Barbosa, aquilo não tinha sido amor. Procurara-o, entregara-se a ele por um desarranjo orgânico, por um desequilíbrio de funções, por uma nevrose.
    
No desfecho de A Carne, Júlio Ribeiro submeteu-se por inteiro à ética de seu tempo, não sem ter feito antes, no corpo do romance, uma admirável análise da atração dos sexos, e num estilo de mestre. Por isso, o Patrono de nossa Cadeira, sobrevivendo aos detratores de todas as épocas, é um clássico.
   
Senhores acadêmicos,
   
resta-me agradecer vossa generosidade, trazendo-me para o convívio desta Casa. Nunca me passara pela cabeça a ideia de candidatar-me a uma vaga, não por qualquer tipo de prejuízo antiacadêmico, mas em razão do desejo de levar a cabo os livros que um cotidiano excessivamente trabalhoso obrigava a adiar. A solicitude de vários confrades, instando-me a postular a Cadeira de Cyro dos Anjos, me sugeriu que a persistência na recusa poderia ser mal interpretada. Entendi, também, que a eventual escolha de meu nome representaria a primeira homenagem da Academia àqueles que se dedicam precipuamente à tarefa de críticos e historiadores de Teatro e com eles compartilho a honra que me foi conferida. Espero corresponder à confiança da Casa de Machado de Assis e a todos os que me elegeram desejo exprimir minha profunda gratidão.

25/7/1995