Na ressaca da eleição que dividiu o país, vitoriosos e derrotados se preparam para seguir adiante. Os mais sensatos buscam diminuir as sequelas da campanha carregada de ataques que geraram contra-ataques. Lembram o respeito a quem venceu, com 54,5 milhões de votos. E também que, descontadas as abstenções, houve 58,2 milhões de eleitores (de Aécio, nulos e brancos), que tiveram todas as chances para isso mas se recusaram terminantemente a votar na ganhadora. E nem assim se dispõem a desistir do Brasil.
Ao mesmo tempo fortalecida pela vitória e pressionada pela força da rejeição expressa nesses números, a presidente reeleita, que durante os meses de campanha teve de deixar de lado a gestão cotidiana desta nação de 39 ministérios e 28 partidos, não tem mais como adiar providências prementes. Sabemos todos que encontra dois enormes desafios à sua frente. Na economia, baixo crescimento, inflação alta e preços administrados artificialmente contidos. Na política, o escândalo da corrupção na Petrobras, à espera do que trarão as revelações da delação premiada quando puderem ser divulgadas. Além disso, todos os outros problemas urgentes e graves que precisam ser resolvidos e em vão levaram multidões às ruas em 2013, clamando por serviços públicos de qualidade.
Enquanto Dilma toma fôlego diante de tanto problema, e enquanto quem não votou nela tenta se recuperar da pancada na cabeça, depois de tanto barulho nessa disputa, o país podia aproveitar e pensar em alguns silêncios. O da água que deixa de correr, por exemplo. Espera-se que o momento permita algum debate sobre isso e aceite troca de ideias sem desqualificação de adversários. A bandeira branca pode começar pelo resgate das bandeiras verdes.
Para mim, pensar em águas é pensar em mata. Nasci no bairro carioca de Santa Teresa, encravado na Floresta da Tijuca. Cresci íntima da Mata Atlântica na serra fluminense (meus avós paternos moravam em Petrópolis) e no vale do Rio Doce (meus avós maternos eram capixabas). Não consigo deixar de ligar arvoredo e umidade, fios d’água, cachoeirinhas. Ou de relacionar falta de chuva com falta de mata.
Não sou técnica no assunto, mas diante da seca que nos assola, é inevitável examinar o desequilíbrio climático relacionado a fatores ambientais. Então tento me informar. Descubro que o desmatamento voltou a crescer no Brasil após ter caído durante dez anos. Leio que a polícia descobriu que grande parte dos incêndios na serra fluminense tem origem proposital — sejam criminosos para especulação imobiliária, sejam ignorantes para fazer pastagem ou roçado. Têm a ver com modelos econômicos perversos e educação inexistente.
A redução da proteção às matas ciliares deixa rastros: rio precisa ter corredor de árvores às suas margens. A largura desse corredor não pode ser objeto de troca em votações no Congresso.
É muito bom ter campos plantados, produzindo e exportando alimento. Mas há que se atentar para a proteção do delicado equilíbrio ecológico do cerrado, onde nasce grande parte dos riachos que irão formar as principais bacias brasileiras — a amazônica correndo para o norte, a do Prata para o sul, a do São Francisco que atravessa Minas e Bahia em busca do nordeste.
Os jornais dão notícia de um horror inimaginável: na atual estiagem, secou uma nascente do São Francisco — tradicionalmente chamado Rio da Unidade Nacional. A causa não é a inexistência de unidade nacional. Mas de umidade natural. O pesadelo está ligado à falta de consciência ambiental.
Ainda outro dia, o “Globo Rural" mostrou a degradação das veredas em Minas Gerais, causando perda das fontes de água. Em recente artigo aqui no GLOBO, José Miguel Wisnik cita o professor goiano Altair Sales Barbosa, apontando o que ocorre: a destruição dos reservatórios subterrâneos que alimentam os rios, lençóis freáticos e artesianos dos aquíferos, esses tesouros líquidos que volta e meia regurgitam mananciais de fios d’água, riachinhos, regatos, córregos, arroios, frescas águas cantantes, nascentes de vida que “rebrotam desengolidos num bilo-bilo fácil”, nas palavras de Guimarães Rosa lembradas por Wisnik.
Mas esse “riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado no fino, com regozijo e suazinha algazarra” também pode sumir, “perdendo o chio”, lembro eu citando o mesmo autor. Em cada um de nós deve doer , “de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho.”
A fonte de Rosa reabilita as palavras. Não há por que evitar o termo “racionamento” por sua conotação negativa ou só se preocupar com os vazamentos de depoimentos sobre corrupção, e esquecer os dos canos que desperdiçam água. Há que olhar a situação de frente. Poupar água, incentivar seu reuso. Planejar a recuperação de rios, ter projetos de fortalecimento das bacias.
Se a hora é de fazer pontes, que sejam sobre as águas e não sobre leitos secos.