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Discurso pelo 109º Aniversário da ABL

A ACADEMIA BRASILEIRA

A Academia Brasileira não precisa de definição — esta a palavra inaugural de Machado de Assis. “Seu desejo” — dizia — “é consertar, no meio da federação política, a unidade literária.” E dava-lhe como regras, “feições”, a estabilidade e o progresso. A tradição, assinalada no batismo das cadeiras com o nome dos patronos, insistia Machado, “é o seu primeiro voto”.

Ninguém poderia ser mais sintético e mais simples do que Machado. Mas o discurso de apresentação coube — expressando provavelmente a vontade de todos, mas seguindo, sem dúvida, o juízo literário e o apreço pessoal de nosso Presidente — coube a Joaquim Nabuco. A amizade entre os dois foi sempre marcada pela admiração de Machado por Nabuco, o jovem e já consagrado escritor prevendo sucesso como poeta ao menino, o viúvo desolado pensando, no leito de morte, no velho embaixador; e também pela devoção de Nabuco por Machado, a quem envia o ramo do carvalho de Tasso como símbolo de sua estatura literária.
 
Nabuco, como Machado, fala da consertação literária, da idéia de que a Academia tem duas faces: uma voltada para o passado, outra para o futuro. Segundo Nabuco, “a Academia está dividida ao meio, entre os que vão e os que vêm chegando; os velhos, sem velhice, e os novos; os dois séculos estão bem acentuados, e se algum predomina é o que entra; o século XX tem mais representação entre nós do que o século XIX.”

Dizia que ele tinha feito uma clara opção pelo passado: ainda não se recuperara da queda da monarquia, tornara-se um católico devoto e praticante, abandonara a luta pelas reformas políticas pelos estudos históricos e literários.

Defendendo sua posição, sustentava que uma “Academia nova é como uma religião sem mistérios: falta-lhe solenidade.” Mas, por outro lado, seguia afirmando que “a nossa principal função não poderá ser preenchida senão muito tempo depois de nós, na terceira ou quarta dinastia dos nossos sucessores.”

Na formação da Academia, Machado e Nabuco não tiveram a iniciativa. Esta coube, como sabem, a Lúcio de Mendonça e Medeiros e Albuquerque. Os dois, entretanto, eram os núcleos em torno dos quais se podia construir um projeto. Os amigos que se reuniam na Revista Brasileira vinham do combate pelo abolicionismo. Machado, que tantas vezes foi acusado de indiferente às suas origens, era, sem dúvida, um exemplo em meio aos intelectuais que haviam participado da campanha vitoriosa. Nabuco, este, fora a sua alma. Machado, por outro lado, era o escritor por definição, total e visceralmente escritor — o funcionário público exemplar nunca disputou, em sua personalidade, a primazia.

No centenário da Academia, Josué Montello escreveu excelente estudo sobre a liderança de Machado de Assis. Essa liderança foi exercida em torno das idéias comuns, que compartilhavam Machado e Nabuco. Não só essa da composição entre os dois tempos, mas uma mais abrangente, que lembra a idéia dominante em nossa vida política: a da conciliação. Nabuco, filho de Nabuco, mais do que ninguém podia falar disso: “Eu confio que sentiremos todo o prazer de concordarmos em discordar; essa desinteligência essencial é a condição da nossa utilidade, o que nos preservará da ‘uniformidade acadêmica’.”

E continuava: “Mas o desacordo tem também o seu limite, sem o que começaríamos logo por uma dissidência. A melhor garantia da liberdade e independência intelectual é estarem unidos no mesmo espírito de tolerância os que vêem as coisas de arte e poesia de pontos de vista opostos. Para não podermos fazer nenhum mal basta isso; para fazermos algum bem é preciso que tenhamos algum objetivo comum.” Até aqui Nabuco.

A Academia Brasileira, modelada, como dizia Machado, pela Academia Francesa, tinha como objetivo fundamental a defesa da língua portuguesa. O estatuto dado por Richelieu em 1635 determinava que “La principale fonction de l’Académie sera de travailler avec tout le soin et toute la diligence possibles à donner des règles certaines à notre langue et à la rendre pure, eloqüente et capable de traiter les arts et les sciences.”
Essa defesa, no nosso caso, levantava a questão da unidade da língua portuguesa, de nossos laços culturais com Portugal. Nabuco, abordando o assunto, sustentava que, nesse aspecto, também vivíamos uma dicotomia: por um lado, nossa Literatura tinha que “sair principalmente de nosso fundo europeu”; por outro lado, não tinha dúvida de que vivíamos destinos literários independentes.

Essa união na diversidade, tão cara hoje no universo ibérico e ibero-americano, fundava-se na uniformidade da língua escrita. Nesse sentido nossa tradição se firmou, tanto nos grandes trabalhos que resultaram nos acordos gramaticais entre os dois países, Brasil e Portugal, como nos estudos ortográficos e de dicionarísticos — como dizia o nosso Antonio Houaiss.

A escolha dos patronos de nossas cadeiras — tradição que, na Academia Francesa, é representada pelos primeiros ocupantes — marcava o caráter de reunião de amigos das academias. Foi sugestão de Nabuco. Este escolheu Maciel Monteiro, não seu modelo literário, mas a lembrança do ídolo mundano, que compartilhara com Castro Alves. Machado fez a escolha literária que a gratidão e a amizade com o filho — Mário de Alencar — impunham: José de Alencar. Mas Machado sugeriu, com a autoridade inafastável, que Filinto de Almeida escolhesse Artur de Oliveira, numa de suas demonstrações de que, em sua escala de valores, a amizade vinha em primeiro lugar.

A amizade é um elo fundamental da Academia Brasileira. Perdemos todos, neste ano, queridos amigos e companheiros. Miguel Reale, o grande jurista, mestre do Direito brasileiro, o Reitor da USP, o filósofo, o paulista, partiu aos 96 anos. Ele nos deixa uma lição de vida em que o Estado de Direito, a Lei, se sobrepõe como regra fundamental da sociedade, sem a qual não é possível alcançar a justiça social. Seu trabalho incansável, em temas constitucionais, tratando do Código Civil, debatendo todos os problemas do Judiciário, auxiliando e discutindo os mais diversos projetos de lei, as mais diversas leis, examinando a jurisprudência, constitui-se em passagem fundamental do ordenamento jurídico do século XX.

Morreu também Josué Montello, o último escritor de uma geração que, na expressão de Oswald de Andrade, eram os “búfalos do norte” que invadiram a Semana de Arte Moderna, deixando-a de lado para sustentar todo um período brilhante, talvez o mais fecundo, da ficção brasileira que se chamou o romance nordestino. Embora a sua temática fosse diferente daquela trabalhada por Franklin Távora, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, mais voltada para os problemas sociais e a denúncia da seca e da miséria, Josué Montello seguiu a continuidade do romance citadino machadiano e aqueles de seu tempo, como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto e tantos outros. Josué iria agregar uma temática nova, da reconstrução do tempo, vinculada à vida cotidiana do Maranhão, com livros extraordinários, o maior deles, os Tambores de São Luís, que, com um século de atraso, é o magistral romance sobre a escravidão.

Josué Montello, dentro dessa linha, situa-se entre os maiores nomes da Literatura brasileira de todos os tempos. Foi um operário da cultura, um trabalhador indormido da arte de escrever. Publicou mais de cem livros, abordando todos os gêneros literários, como poeta, teatrólogo, romancista, contista, jornalista, conferencista, memorialista, ensaísta, historiador. Seus estudos sobre Quixote e Machado são trabalhos memoráveis. Machado era sua devoção maior; sobre ele escreveu e estudou tudo.
Em sua dedicação à cultura foi um ativo militante. Fundou o Conselho Federal de Cultura, dirigiu durante muito tempo a Biblioteca Nacional, onde foi autor de seu projeto de reforma; fundou o Museu da República, foi embaixador na Unesco e presidente da Academia Brasileira, um dos mais jovens que ali tiveram assento e onde permaneceu durante 52 anos, dos 37 aos 88 anos, sendo o decano da casa.

Josué Montello, também, aliou a sua tarefa de escritor ao compromisso com a causa da educação, à qual dedicou uma vida inteira como professor e batalhador pela modernização do ensino e reformas educacionais.
Sua longa vida e obra criaram a aura de uma figura legendária e iconográfica da cultura brasileira de nosso tempo.

Tinha saber enciclopédico e memória fotográfica. Eu sempre lhe dizia que ele sabia tudo e de tudo. Como historiador, conhecia como ninguém nossa história literária. Bravo, tinha o gosto pela polêmica e não recusava o debate quando atingiam as coisas em que acreditava. Vinha de palmatória na mão, mas sempre pronto para o terreno das pazes.
Homens como Josué Montello são obra do tempo. É preciso um trabalho secular, e por isso mesmo poucos aconteceram.

O traço marcante e indelével de sua personalidade era, contudo, o seu amor ao Maranhão, o encanto e a fascinação pela sua terra, para quem sempre reservou um lugar de reverência em tudo que escreveu.

Josué era uma convivência admirável. Meu amigo da vida inteira, tinha o gosto da conversa: viva, brilhante, erudita e afetuosa.

O Brasil perdeu um pedaço de sua paisagem cultural; o Maranhão ficou menor com a sua morte; eu, um amigo, uma parte da vida.

Entre dever e amizade, a tarefa da Academia Brasileira resumia-se, num primeiro tempo, na própria sobrevivência. A Academia representava a “profissão literária”, isto é, o valor dos autores na sociedade que entrava no novo século. A vida de Machado, passando do obscuro ajudante de tipógrafo ao sóbrio diretor de secretaria, mais do que tudo, representava bem a transição que o papel do escritor sofrera, da obscuridade dos bastidores às luzes do proscênio. 

O nosso papel fundamental de promoção da língua portuguesa e da Literatura brasileira não se faz, simplesmente, na construção, necessária, dos acordos ortográficos e dos vocabulários. Ele se desenvolve na criação literária, na soma de nossas contribuições individuais. Lembrando sempre os que aqui não quiseram vir, como Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Ferreira Gullar e Oscar Niemeyer, creio que podemos dizer que a obra literária brasileira passa pela Academia. Ainda em seus primeiros dias, sustentada no que haviam realizado seus fundadores, a Academia acolhe um novo autor com a primeira obra de gênio a se revestir de uma originalidade que alcançava valor universal: Euclides da Cunha com seu Os Sertões. Em meados do século passado, recebíamos João Guimarães Rosa com o seu sertão que estendia as veredas de nossa criação literária a mares nunca dantes navegados.

Nossa contribuição, entretanto, não se deu ou se dá simplesmente nesses momentos excepcionais em toda literatura e em qualquer língua. Cada um de nós participa, com sua obra, de uma construção, lenta e segura, que faz da língua portuguesa um dos grandes identificadores culturais da humanidade e dá ao Brasil um lugar central nesta obra.
Mas a Literatura brasileira não se constitui somente dos que fazem parte desta Casa. Por isso é uma antiga tradição da Academia premiar os grandes livros do ano e, a cada ano, um conjunto de obra. O nosso prêmio mais prestigioso leva o nome de nosso primeiro escritor. É, de certo modo, a um só tempo, uma homenagem que prestamos à sua generosidade com os outros escritores e uma homenagem aos premiados, por lhes darmos o nome do mais completo de todos nós.

O Prêmio Machado de Assis deste ano é concedido a César Leal. Diz a Comissão Julgadora: “A poesia e o ensaio de César Leal sabem operar esse equilíbrio nervoso, ao qual se une a severidade do olhar crítico. Por isso, o trabalho de César Leal, o trabalho encantado da linguagem, é das construções mais convincentes da nossa Literatura contemporânea.”
Cearense de Belmonte, participando, durante um tempo, do círculo mineiro de Abgar Renault e Emílio Moura, há tempo se integrou à cultura pernambucana. Lá no Recife, ensina Teoria da Literatura, na Universidade, e nos ensina poesia. Tive a oportunidade de, Presidente da República, nomear César Leal para o Conselho Federal de Cultura. Ensaísta, autor de um famoso estudo sobre Dante, conhece a poesia por seus dois caminhos, penetrando seus mistérios e causas, suas palavras e sentidos, seus tempos e modos.

Pode aplicar-se à sua poesia uma frase sua: “em que se associa ao resplendor musical a clara consciência de uma potência interior mais capaz de falar ao futuro do que ao presente”. Preocupado com o tempo, com sua percepção e sua expressão, César Leal escreve, na Carta aos Rinocerontes, uma anti-arte-poética:

Quanto a mim continuarei sozinho,
solitário como um estranho rio
de um território ainda não visitado pelos geógrafos,
abrindo sem descanso a minha estrada
certo de que alguém um dia
– anjo ou demônio –
caminhará por ela até a porta do meu nome.

Essa visão do autor solitário, essencialmente hermético ao outro, que o leva a declarar sua despreocupação com o leitor, não o impede de ser um estudioso dos outros poetas, e alguns dos que chamaríamos “difíceis”. É evidente sua intimidade com Eliot, Pound, ou com Jorge de Lima, a quem considera o maior poeta brasileiro, e cuja Invenção de Orfeu compara à Divina Comédia.

Na tradição românica, César Leal é influenciado pelos ritmos populares e mostra a amplitude de seu domínio poético. Vejam este começo do belíssimo Romance do Pantaju (Autobiografia):

Nasci numa casa grande
dos Inhamuns, no Ceará,
terra onde engorda e cresce
o melhor gado que há
em todo o Brasil-Nordeste
se a seca não o devasta:
é o vale do Jaguaribe,
terra dos Feitosa e Monte,
terra dos Caracarás,
dos Leal, dos Cavalcanti.

Muito jovem fui treinado
nas artes do pastoreio
— criei cedo um nobre estilo
no desafiar de peito
ao cinzento aço bicórneo
que se aos homens degrada
no perfil nobre de um touro
o faz belo e respeitado.

A Academia Brasileira, ao dar o Prêmio Machado de Assis a César Leal, reconhece, mais uma vez, a grandeza dos poetas pernambucanos, terra de Joaquim Cardoso, Ascenso Ferreira e Carlos Pena Filho, e, aqui na Academia, de Mauro Mota, João Cabral e Manuel Bandeira.
Por falar em Bandeira, o autor do belíssimo estudo de Forma e Alumbramento: Poética e Poesia em Manuel Bandeira, Rui Espinheira Filho, teve o seu último livro, Elegia de agosto e outros poemas, escolhido para o nosso prêmio de Poesia. O poeta baiano, já várias vezes premiado, com justiça, é considerado uma das grandes vozes da Poesia baiana. Rui Espinheira é um lírico, e isso já diz, na tradição de Bandeira (e, para ele, Drummond, Mário de Andrade…), de seu compromisso com uma poesia que pode ser lida por todos, mas capaz de uma extrema sofisticação de forma e fundo.

Olho do Rei, de Edgar Telles Ribeiro, foi o premiado em Ficção, Romance, Teatro e Conto; em Ensaio, Crítica e História Literária, escolhemos Dioniso crucificado, de Per Johns; em Literatura Infanto-Juvenil, Cartas Lunares, de Rui de Oliveira; o estudo do Cântico dos cânticos, de Geraldo Holanda Cavalcanti, ganha o prêmio de Tradução; e Independência do Brasil na Bahia, de Luís Henrique Dias Tavares, o grande mestre da História da Bahia, o de História e Ciências Sociais.

Premiar escritores e livros é promover o que de mais elevado acontece na vida cultural de nosso País. Não há – é uma coisa que tanto tenho repetido que talvez todos já me tenham ouvido dizer – não há mais alta invenção na história da humanidade, mais alta tecnologia, que a do livro. Não precisa energia, é portátil, cai e não quebra, reúne toda a cultura e todos os sonhos. Sem o livro não seríamos: ele foi, ele é o instrumento das transformações culturais, sociais, políticas.

A Academia Brasileira realiza-se na medida em que fazemos, nós todos, essa imensa obra publicada, em que passamos de uma entidade virtual e um projeto de ser para a realidade concreta das bibliotecas e para a mão dos leitores. É no livro, portanto, que nos realizamos. A língua, que expressamos e carregamos em sua grandeza, realiza-se no livro. Ela, que é viva e evolui a cada dia no falar das gentes, mas que é permanentemente marcada de efêmero, toma-se de uma permanência superior que atravessa os tempos e, no livro, se torna substância da imortalidade.

Se a língua é nosso objeto, o livro é a nossa medida. A língua é o espaço em que se desenvolve nossa cultura; mas nossas fronteiras, nossos eixos, nossas raízes, língua posta em cruz, pedra como sinal ao tempo assentada, paraíso reencontrado, o que fica e nos faz ser é o livro.

É ele, em síntese, o ícone, o símbolo de nossa Academia. Nesses 109 anos de existência, nossa vela votiva é a ele dedicada. Sua luz, ao contrário da luz de velas, é fundida à verdadeira luz, massa do universo, de energia e estrelas, e não se apaga nunca.

Acadêmico relacionado : 
José Sarney